ZIP 100: meus 15 quadrinhos favoritos

ZIP 100: meus 15 quadrinhos favoritos

O que eu vejo nos quadrinhos que se difere das outras formas de expressão? É uma pergunta dura, cheia de armadilhas, mas seu aspecto capcioso está, na verdade, correto: o quadrinho é a forma de arte que nos permite abolir uma linha distintiva entre as subjetividades infantil, adolescente e adulta. Permite uma formação cíclica, nietzschiana, de uma ética humana sem fronteiras disciplinares, institucionais. Charlie Brown, Mônica, Calvin, Mafalda: são crianças que rompem estes muros que nos formatam como “cidadãos”. E Crumb, Alan Moore, Al Capp, etc., são crianças grandes que imaginam e escrevem para nos alertar disso. E assim falou Zaratustra.

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O que podem os quadrinhos?

por Ciro I. Marcondes

Qual não foi minha surpresa quando, ao ler um artigo de Richard Abel, pesquisador do primeiro cinema, descobri que o filme “Regador regado” (Arroseur Arrosé, 1895), dos irmãos Lumière, havia sido “muito provavelmente” baseado em uma história em quadrinhos de Christophe, um famoso pioneiro da HQ francesa? Este filme, uma piada registrada em uma só tomada, é do ano da primeira exibição pública cinematográfica, e do ano da primeira publicação americana em quadrinhos, o Menino amarelo de Richard Outcault. Mais interessante: é considerado o primeiro filme de ficção, ou seja, a primeira vez que se apresentava ao público uma encenação cinematográfica, e, agora, provavelmente é também a primeira adaptação cinematográfica. A partir de uma história em quadrinhos.

Krazy Kat

O dado histórico é interessante porque afunila ainda mais as relações já tão próximas entre HQ e cinema, colocando ambos não apenas dentro de um patamar comum, que os gerou – o advento da modernidade, dos avanços científicos e da cultura de massas no fim do século 19 –, como também localiza os dois meios de expressão dentro de uma origem no mesmo gênero: a comédia. Esta ligação não seria à toa e não perderia a continuidade em mais de 30 anos de trajetória dos quadrinhos. Sabe-se, em primeiro lugar, que de Töpffer, a Ângelo Agostini, ao próprio Christophe e a uma infinidade de tabloides britânicos do séc. 19, as raízes dos quadrinhos se localizam no cartum, na charge, nas publicações de humor da primeira fase industrial da imprensa. E sabe-se que, desde o Menino amarelo até os anos 30, quando impactam os quadrinhos de aventura, são especialmente formas de humor – seja de um tipo anárquico (Sobrinhos do capitão), arquetípico (Krazy kat) ou até surrealista (Felix) – que predominam nas publicações de jornal.

Christophe

Félix

Estes quadrinhos se juntavam a outros modelos que alçavam voos substanciosos para fora do gênero, como a delirantemente óptica Upside downs, que mudava de sentido quando se virava a tira de ponta-cabeça (flertando com a arte moderna da época), ou a obra-prima Little Nemo, de Winsor McCay, verdadeiros poemas surrealistas em linda art-nouveau, um fenômeno inclassificável. A primeira era dos quadrinhos, portanto, longe de ser um anedotário vintage de velharias de curiosidade somente histórica, foi um fenômeno que passeou no campo fértil da criação selvagem, ainda sem um grau de imposição que os restringisse ao mercado infantil ou à desqualificação atribuída aos produtos de massa, mesmo que ainda não se cogitasse enxergar aquilo como “arte”.

Yellow Kid

Agostini

Tudo isso serve para se pensar que, antes que os quadrinhos tivessem seu espectro de atuação muito reduzido pelas censuras dos anos 50 (no mundo todo), estas matrizes no humor, na poesia e no surreal que se instalaram nas origens se desenvolveram até a forma de potentes narrativas de guerra, ou inacreditáveis contos de terror, no fim dos anos 40. Mesmo aprisionados pela condição de cultura “menor” e pelos termos da indústria editorial, a trajetória histórica comprova bem o potencial expressivo dos quadrinhos, tudo a partir de uma relação que de certa maneira se opõe ao “primo rico” cinema: sem grandes efeitos de tecnologia, tudo se resume à “química” que se pode produzir entre duas coisas: sequências de imagens paradas e palavras.

A simplicidade do processo material de produção das histórias em quadrinhos acaba sendo proporcional à sua maleabilidade expressiva, e à capacidade de representar a partir da transformação do traço. Ao contrário do que argumenta Scott McLoud, a maioria dos quadrinhos se utiliza de traços cartunescos ou caricaturais não porque haja algum tipo de “identificação icônica” (uma abordagem nada semiótica) entre nós e o cartum, mas sim provavelmente porque as HQs surgiram no ambiente da charge, onde estas deformações eram premissa, e depois migraram para histórias de humor, nas quais esse tipo de ilustração é obviamente adequado. E por que isso se tornou um axiomático para esta forma de arte? Ora, porque... é fácil fazer assim, e se pode fazer assim. Como o cinema registra imagens fotográficas, foi natural que ele se tornasse uma narrativa gráfica de premissa mais realista (veja que, quando efeitos especiais entram em jogo, quase sempre dão vazão à fantasia). No caso dos quadrinhos, a abertura ao humor, ao sonho, ao delírio e à fantasia se tornou flagrante na medida em que a imaginação e o traço dos ilustradores tornassem isso possível.

O ícone em McLoud: NOT

Upside Downs

A última fronteira, portanto, é a revolução da linguagem. Se os quadrinhos são um dispositivo de representação no limite da imaginação, então sua configuração estética também deveria acompanhar esse potencial, e acompanha. Se, no cinema, desde Eisenstein, a montagem entre planos é pensada como dispositivo potencializador de representação, nos quadrinhos equivale a noção de configuração. Se no cinema ou na pintura a noção de moldura pode ser problematizada, mas em geral possui um aspecto limitador, nos quadrinhos ela é parte muito mais ativa, já que a forma, a ordem e o aspecto dos quadros configuram a página e atribuem sentido ativo àquilo que está sendo visualizado dentro deles – e ao que está sendo imaginado entre eles. Este avanço não é pouca coisa, porque possibilita a ideia de que cada artista, ao configurar sua história em quadrinhos, tem em mãos a possibilidade de recriar a linguagem desta forma de arte, só para si.

Töpffer

Talvez “o que podem os quadrinhos” não seja a pergunta mais conveniente. Já que, em uma época em que quase todas as formas expressivas históricas sofrem de um esgotamento de suas possibilidades, os quadrinhos, aprisionados por décadas pelo desinteresse geral e pelos códigos de censura, encontram na atual libertação o caminho para a maturidade e passa a tomar conta dos campos da arte e da comunicação. Cabe a flexão: o que então poderão, a partir de agora, os quadrinhos?

Little Nemo

Ode à idiotia: a morte de Groo

por Ciro I. Marcondes

Sempre fui um fã de Sergio Aragonés. Lembro-me perfeitamente de, back in the good old nineties, comprar uma edição velha de Groo, o errante (uma que tinha Groo caminhando, num plano bem aberto, no deserto, junto a um esqueleto de urubus) e ler e reler aquela edição, até então única para mim, de maneira quase psiquiatricamente obsessiva. Estava ali, antes que eu conhecesse o humor da verve da MAD (da qual Aragonés foi um dos mais assíduos colaboradores), um tipo de diferente de HQs, primado por um humor negro, mas não baixo e cínico, como quase tudo que se vê em humor (mesmo de qualidade) hoje em dia. O humor de Groo conseguia ao mesmo tempo ser irônico, ácido, crítico, e leve, suave, quase inocente. Que tipo de inteligência mordaz seria capaz de produzir uma paródia de Conan que conseguia ser quase melhor que o original? Certamente não uma bitolada mente americana. Aragonés, o espanhol-mexicano, com pleno domínio da quadrinização, era a própria mente multicultural que poderia produzir o quadrinho mais engraçado dos anos 80: acostumado a deitar e rolar na linguagem dos quadrinhos mudos em Louder than words para a MAD, ele fez, junto ao impagável Mark Evanier, de Groo uma obra-prima tanto da estética, quanto das paródias, quanto do humor, quanto da linguagem em quadrinhos.

Quando chegou, esses dias, às minhas mãos a edição, escrita e ilustrada por Aragonés em 1998, chamada

Dia de los muertos (publicada pela Pandora Books em 2001 no Brasil), era impossível não pensar: “preciso escrever algo sobre Aragonés para a Raio Laser. Urgente. Preciso, mais do que tudo no mundo. Aragonés. Preciso. Urgente.”. De alguma forma, a obsessão psiquiátrica parecia ter retornado de maneira persecutória e patológica. Porém, um Aragonés de 1998 não é a mesma coisa que a fase áurea de Groo, um compêndio adorável e insuperável de aventuras medievais protagonizada por um idiota de fazer inveja a Homer Simpson. Em Groo, não deixamos de ver tudo que compete aos fanáticos por mediavalismo pop: reis, bandidos, castelos, navios, menestréis, guerreiros, belas donzelas e belas amazonas, tudo no traço ricamente detalhado e potentemente vívido de Aragonés, um mestre da indumentária medieval, dos costumes de época e genial ao verter esta cultura em uma forma de humor.

Groo é a casa do cão Ruferto, o único que acredita em sua astúcia. Groo é a casa do Sábio, que procura ajudá-lo, mas inevitavelmente se impacienta com ele. Groo é a casa de Grooela, a rainha mesquinha e irmã do herói, que preferia vê-lo morto. Groo é a casa de um incontável número de grandes coadjuvantes, personagens que dão cor à saga do mais idiota entre os idiotas. Se Dia de los muertos era apenas uma anedota, já meio preguiçosa, a respeito do capitalismo e da imbecilização dos americanos em relação a culturas estrangeiras, eu precisava voltar ao meu tesouro original. Precisava voltar a Groo.

Infelizmente, porém, a minha coleção completa de

Groo, assim como 90% da minha coleção inteira de quadrinhos, foi levada pelos cupins, estes seres bestiais. A única coisa que me restava em mãos, assim, para satisfazera obsessão persecutória, era reler a edição de A morte de Groo, uma edição fechada, do selo Graphic novel da Abril (que curiosamente não lançava Graphic Novels, mas sim apenas histórias curtas e fechadas, one-shots), que eu comprara num sebo recentemente. Esta história foi publicada originalmente em 1987, e saiu no Brasil em 1989. Com tratamento gráfico diferenciado, amplos quadros detalhadíssimos, colorido à mão e com um roteiro muito inspirado de Mark Evanier, A morte de Groo é uma das histórias canônicas do personagem, e sua sutil inversão moral, quando Groo, retornando como desconhecido, é recebido como herói, torna esta também uma das histórias com maior amplitude para uma leitura final da saga. 

Em A morte de Groo, o bárbaro é mais odiado por todos do que nunca antes. O rei Krag, figura enfastiada e de péssimo humor, odeia Groo, e ao mesmo tempo é obcecado por Groo. Seu bobo da corte precisa repetir seguidamente “odeio Groo” para convencer o rei de que... odeia Groo o suficiente. E isso não basta. Há muito ódio sobrando para Groo. Krag chega a mandar matar um homem... por se parecer com Groo. Outro... por andar como Groo. E um vendedor de queijo (comida favorita de Groo)... por feder como Groo! A obsessão do rei por espancar bonecos de Groo e colocar cartazes decretando o repúdio geral a Groo levam a cidade (um pequeno feudo) a uma hilariante caça às bruxas por Groo. Este exasperante repúdio à idiotia de Groo tem um sentido, explicado pelo menestrel, em flashback: o bárbaro, então escudeiro do rei, defenestrou seu exército após se confundir e alçar um bandeira de guerra, ao invés de uma bandeira de paz, conforme era o plano (maquiavélico) do rei. Desde então, Krag não governa, não se importa com seus súditos, não faz um plano de economia, não se preocupa com sua sociedade. Tudo que lhe importa é espalhar aos quatro ventos o ódio a Groo, que se torna obrigatório a todo o reino.

Groo, sem entender o que se passa, acaba virando um fora-da-lei, e, quando entra em contato com o dragão Floom-Floom, buscando redenção, acaba deixando suas roupas e espadas junto a um monte de ossos, que logo são confundidos com a ossada... dele próprio. A notícia da morte de Groo então se espalha, e enormes festividades são lançadas pela cidade, sendo particularmente hilário o funeral de Groo, onde uma galeria de personagens clássicos aparece para demonstrar seu repúdio ao grande idiota. Sempre dentro da lógica da comédia de erros, porém, Groo traça um plano: “As pessoas não sabem o quanto precisam de Groo. Por isso, não sentem falta. Eles iam se dar conta se um grande vilão aterrorizasse todo mundo! Pena que não existe nenhum grande vilão! Nesse caso, vou virar um”. 

A tônica de uma HQ como Groo segue a mesma premissa de um humor antigo como o do Krazy Kat de Herriman: Groo sempre tentar fazer tudo de um jeito certo, mas, de alguma forma randômica, ou vítima de sua própria idiotia, tudo sempre sai errado para ele. Ao mesmo tempo, saindo tudo errado, Groo sempre consegue triunfar no final, da mesma maneira que o rato Ignatz sempre acaba preso pelo guarda Pup ao tentar acertar tijolos na cabeça de Krazy. Isso torna, certamente, Groo um dos mais quixotescos personagens dos quadrinhos, e, não por acaso, nesta história, quando Groo procura se tornar o vilão, ele acaba revertendo-se num improvável herói. Isso me lembra o capítulo do próprio Quixote analisado por Erich Auerbach, em que, quando Sancho e o Quixote decidem trocar de papéis, as coisas estranhamente passam a dar certo, mas uma dinâmica de ação ao qual estavam acostumados se esfarela, fazendo ruir a interação entre os protagonistas. Aqui, quando Groo procura se tornar o vilão e reconstruir sua imagem, estranhamente suas ações deletérias acabam por ajudar a cidade, fazendo-o viver um dilema típico do Homem-Aranha: quanto mais ele procura fazer o bem, mais implacavelmente caçado ele se torna.

A exacerbação da idiotia de Groo e todo esculacho pelo qual ele passa certamente fazem do bárbaro um herói ainda muito contemporâneo: profundamente paródico, é um perfeito espelho às avessas dos ideais do heroísmo clássico. Porém, uma verdade mais inteligente emerge das histórias de Groo se analisarmos seus antagonistas: mesquinhos, egocêntricos, traíras e covardes (além de profundamente idiotas), eles nos remetem ao contexto de que o pecado original de Groo (a idiotia) é compartilhado por todos, e não há como não preferir a errância molóide do bárbaro ao mundo dog-eat-dog em que ele erra. Desta forma, Groo ainda traz um reflexo, ainda que pálido, dos heróis da era moderna: torcemos por ele não por ele possuir virtudes, mas por, através de pura ingenuidade, evitar os vícios.

Os fabulosos X-Pué Inchados: apologia de Chico Mozart

por

Ciro I. Marcondes

Chico Mozart

A história em quadrinhos que ilustra este texto se chama

Os fabulosos X-Pué Inchados

(número 1) e foi realizada em 1994 por dois promissores caras que – pasmem! – não se tornaram quadrinistas. O primeiro deles é este que vos escreve. Desenhei mais de 200 revistas completas entre, sei lá, 1988 e 1997, e devo ter acumulado uns... talvez quatro leitores nesta época. Meu irmão mais novo lia os gibis coagido por puro constrangimento. Creio que nem meu pai e nem minha mãe jamais leram nenhuma dessas histórias. Tudo parte de um grande conceito chamado “universo Bilak”, que talvez algum dia mereça um texto à parte. Acho que eu ainda não sei bem processar o autismo que era escrever e desenhar várias revistas completas por mês, de maneira obsessiva, e receber virtualmente

nenhum

feedback. Mesmo assim, nos idos de 1994, nesta incrível idade que são os 12 anos (nesta época, tricolor paulista bicampeão mundial seguido. Puta era de ouro), chamei um grande amigo meu, que fora colega da Escola Classe na 308 Sul desde a 4ª série, para uma empreitada de parceria.

Se você é de Brasília e tem o mínimo de vida social, deve conhecer a figura que é Chico Mozart. Naqueles idos de 1994 (

Copa dos EUA

, e tal), era apenas Chiquinho. Hoje, Chico é formado

em Artes Plásticas

pela UnB e trabalha no meio, mas o lance que realmente define sua inserção nas personas interessantes da cultura brasiliense hoje em dia é ao mesmo tempo sua onipresença e sua volatilidade: Chico está em toda parte, mas, ao mesmo tempo, está flutuando em seu denso mundo interno, em lugar nenhum, bem diferente da imagem boêmia, sem-noção e beberrona (ele é tudo isso também) que todos cultivam dele.

Conheço-o há muito, e posso dizer que o verdadeiro

self

de Chico é quase o avesso de sua imagem folclórica nos bares e cantos culturais da capital. Chico não é artista, não é bêbado, não é celebridade local, não é um cara com arquétipo

clown

. Sua natureza é uma coisa esquiva e indefinida, e é isso que o torna um sujeito bem mais raro e complexo, entre as hordas de hipsters da cidade.

Por exemplo: na quarta ou na quinta série, nós fizemos uma matéria de desenho animado na Escola Parque da 308 sul (vale lembrar coisas fantásticas que o ensino público nos trouxe nessa época: estudei música, teatro, história em quadrinhos...). Enquanto eu tentava achar um tipo de traço mais definido, mas sempre com dificuldade em proporções, sombreamento, cenários (essas coisas que definem um desenhista de verdade), eu percebia que Chico não apenas desenhava com muito mais personalidade, mas também muito mais naturalmente. Eu era, digamos, um pouco mais intelectualizado e aficcionado por cultura em geral, e existia uma coisa não-declarada: ele se sentia inseguro porque eu compensava minha falta de talento pra desenhar com palavras bonitas (depois das HQs, passei à Literatura em prosa; da Literatura em prosa, à poesia; da poesia... entrei na faculdade... e virei crítico, e aí me fodi mesmo), enquanto eu visivelmente, impacientemente, incredulamente, o invejava simplesmente porque ele tinha uma habilidade e senso estético naturais. Chico tem um traço espesso e cômico, altamente personalizado, com altas doses de cinismo e ironia presentes diretamente no estilo de ilustração. O seu desenho é sua tradução.

Em certo momento, participamos de um concurso para crianças, acho que da Folha de SP, para desenhar uma paródia do filme

Aladin

. Nós dois nos inscrevemos. O desenho do Chico era “Alodum”: um Aladin gordo, baiano, tosco, melequento, com pau de fora (acho que os idiotas da Folha não perceberam isso) – um primor rabelaisiano saído de uma mente infantil. O meu era absurdo, ridículo, e apenas lembrar daquilo baixa meus níveis de serotonina. A imagem daquele desenho sequer se forma completa na minha memória, tão rápida é a atuação do meu superego

em vetá-la. Não

duvido que me atormente em pesadelos esquecidos. Mesmo assim, arrogantemente eu achava aquele desenho do Chico uma coisa sem-noção demais para ter chance, e aquela excrescência que eu havia desenhado era, para mim, um franco favorito. No final das contas, Chico venceu o concurso, teve o desenho publicado, ganhou uma caixa de brinquedos maneiros, uma passagem para São Paulo (roubada pelo professor, que fugiu com o namorado). Eu fiquei na minha, tentando perguntar pro bom e velho deus por que o mundo tinha uma lógica tão estranha.

Um clássico duelo

Em 1994 convidei o Chico pra ser co-autor de uma nova série mensal que minha prolífica “Editora Nuvensinha” publicaria. Dentre vários títulos ridículos de 20 páginas que eu desenhava por mês, eu curtia a “clássica” série “Biss & Halk”, sobre dois irmãos que atingem o paroxismo da imbecilidade (teve mais de 50 edições!). Com Chico, resolvemos fazer uma nova série de humor, parodiando os X-Men. A premissa era até boa! O maléfico “Ratonético” arrasa o grupo de mutantes, que sofre alterações radicais: Charles Xavier sofre um terrível acidente e se transforma em um ser nojento, azul e flácido, completamente retardado, que consegue dar apenas uma ordem: “vai lá e bate nele”! A revista foi escrita e desenhada tanto por mim quanto pelo Chico. Dentre os novos X-Men recrutados havia criações promissoras como, por exemplo, a X-Pôr, uma atriz pornô que usa só uma tanguinha e sai com os peitos de fora. Ou o assustador X-Dunga, um ser irracional e assassino, que distribui caneladas nos inimigos (ironicamente, levantaria a Copa do Mundo naquele ano e viraria mentor e técnico da Seleção brasileiro em 2010); ou o grotesco X-monstricuspsicopaticusassassinicuscabeçudicusbebênicusdeoutricosmundicos, inspirado em um amigo que hoje é antropólogo da Presidência da República. Criações de Chico.

Infelizmente,

X-Pué Inchados

(o nome vem da nossa mania de chamar de “pé inchado” tudo que é ridículo, tosco, mal-acabado, etc) durou só essa edição, cuja simplória história se resumia a Ratonético indo atrás de Charles Xavier, mas não reconhecendo-o em sua nova forma obesa, enquanto o pau comia entre bandidos e mocinhos. Mas há uma página em especial em que o jovem Chico, o Chiquinho (11 anos), criou um padrão de ação narrativa digna de um

Krazy Kat

: Ratonético dá uma porrada em X-Zoiúdo, que atravessa a sarjeta do requadro e bate na lombada da página. Ao mesmo tempo X-Boi (uma criatura zoomórfica) dá uma barrigada em Ratonético, que rebate na lombada e rola até o último quadro da página, metendo a cara na lombada de baixo e atravessando-a até a página seguinte. Comparado com a regularidade boçal e insossa das minhas narrativas, aquilo era uma verdadeira obra de arte.

Chico Mozart é um sujeito com uma quantidade tão grande de histórias inacreditáveis que eu tinha o projeto de roteirizá-las para HQ, ficcionalizando um pouco, e pedir pro próprio Chico ilustrá-las, porque ele meio que está fora desse ramo de atividades há algum tempo. Ainda não chegamos a começar esse projeto, mas de qualquer forma deixo esse texto como incentivo e homenagem a essa figura cativante e indecifrável. Sei que o texto vai fazer mais sentido para quem habita a Capital Federal, mas, se você também é fã do Chico, escreva sua própria homenagem na caixa de comentários. Vida longa àquele que forjou seu próprio enterro!

Capa dupla e colorida!