AMEDRONTADOS PELO IMAGINÁRIO FEMININO: UMA ENTREVISTA COM CHANTAL MONTELLIER

AMEDRONTADOS PELO IMAGINÁRIO FEMININO: UMA ENTREVISTA COM CHANTAL MONTELLIER

A convite da Veneta, e auxiliado pela intérprete Marion Loire, entrevistei Montellier no centro da capital paulista, ao final de uma tarde de terça. Durante uma hora, falamos sobre distopias, processos criativos, o traço de Robert Crumb, o cinema de George Romero, a misoginia na indústria de quadrinhos, o magnetismo da cultura pop americana, as falcatruas da extrema direita e seus efeitos em nossos respectivos países. O diálogo, porém, teve início com uma observação da artista, a quem meu rosto lembrou o editor da Métal Hurlant...

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Um zumbi no carnaval






















por Pedro Brandt

Yuri escolheu o dia errado para morrer. De saco cheio do carnaval do Rio de Janeiro (“não sei sambar, nunca tive temperamento tropical”, ele diz), esse publicitário pulou de um prédio no domingo. Ressucitou na segunda, ainda com a festa tomando conta da cidade. “Você diria que eu ganhei um milagre. A chance de consertar meus erros. Mas eu não mudei. Porque sou o mesmo de antes. Burro, feio e chato. Sem missão divina, sem dinheiro e atrasado para o trabalho”. De volta ao mundo dos vivos, Yuri percebe que a única coisa em comum entre ele e o Rio é que ambos estão apodrecendo — Yuri saiu do túmulo como um zumbi.
Como azar pouco é bobagem, bastou apenas um dia para que ele perder o emprego para um estagiário e a mulher para um ricardão qualquer. Mas nem tudo está perdido para o protagonista da história em quadrinhos Yuri: quarta-feira de cinzas. Com a ajuda de Andrei, um ladrão de carros (gordo, gay, oportunista, inconsequente e, acima de tudo, carismático), ele decide ir à forra antes de morrer de vez. Até a última página, Yuri desafiará o rei momo, cabrochas, foliões, blocos de rua e uma turba descontrolada que acredita ser ele um santo milagroso.


Primeira HQ autoral do diretor de animação e ilustrador carioca Daniel Og, Yuri: quarta-feira de cinzas consegue uma façanha ainda pouco frequente entre os novos criadores de quadrinhos nacionais: seus personagens têm personalidade vívida, que salta das páginas. O protagonista é alguém que tem tudo, mas se deixa vencer pelo tédio. Andrei não tem nada a não ser seu próprio senso de sobrevivência. Juntos, mesmo brigando o tempo todo, a dupla parece se completar.

Sem forçar a barra, o autor também é bem-sucedido em fazer comentários sociais e levar brasilidade para a história. E tudo isso com muito humor. Og radiografa parte do Rio mostrando tanto a alegria contagiante do carioca, quanto o lado mundo cão da cidade, onde maladro é malandro, mané é mané e todos querem passar a perna uns nos outros. E ainda que o carnaval seja pano de fundo para a trama, o autor não se agarra aos clichês que geralmente estão presentes nos roteiros passados na cidade maravilhosa.

Ao conceito da história e à construção dos personagens, soma-se uma arte em preto e branco carregada de personalidade e estilo, ainda que simples, quase minimalista (como bem comenta Allan Siber no texto de introdução). Yuri: quarta-feira de cinzas foi lançada no final de dezembro. Por isso mesmo, merece figurar em qualquer lista de melhores HQ nacionais de 2012.

Yuri: quarta-feira de cinzas
De Daniel Og. 272 páginas. Conrad Editora. R$ 36.


Entrevista com Daniel Og:

Você considera o Yuri o seu alter ego de alguma forma? Você viveu alguma das histórias narradas na HQ?
Um pouco, mas não. O Yuri começa a história em um ponto que eu vivi. Tinha saído de um “bom emprego”, estava duro... Estava desesperançoso de chegar nas conquistas que quando menino tinha me imposto! Hahaha! Mas aí justamente por estar nessa situação (eu não pensei nisso na época, só me dei conta agora, na verdade) tive a liberdade de mudar e fazer meu quadrinho como eu queria, sem me importar com opinião de ninguém. Aproveitei essa chance de renascimento bem melhor que o Yuri. De uma certa forma, a vida que Yuri deixa pra trás é a minha. Mas a partir do momento que o Yuri encontra o Andrei, a história e o personagem já não têm mais nada a ver comigo. Mesmo assim, usei muitas referências da minha vida. Muitos amigos como base para criar os personagens... Enfim, tem muito de mim na história, mas não é nada autobiográfico! Nunca fui chifrado daquele jeito, por exemplo!

A HQ tem uma identidade local muito forte. Como você trabalha roteiro e personagens?
O que eu acho que falta nos quadrinhos brasileiros é uma perspectiva diferente. Culturalmente, o Brasil produz pouca coisa com identidade nacional e divertida. Geralmente, divertido é sinônimo de cinema de ação. Japonês, americano, coreano, que seja, mas o entretenimento brasileiro é muito realista! Chato, eu diria! Então, a referência fica ou fazer uma coisa com cara de Brasil e pesada — sofrida, doída — ou fazer uma coisa com cara de europeu ou americano e sem identidade, sem referências realmente próprias. Acaba que a falta de trabalhos lúdicos com identidade própria — e divertidos — faz com que surjam menos trabalhos que sigam nessa linha também. Foi uma intenção que fosse um quadrinho divertido antes de tudo! Ainda que fosse um quadrinho burro, ainda que fosse um quadrinho tosco, tinha que ser divertido.

Yuri é uma HQ de fôlego, com 272 páginas. Quanto tempo você demorou para realizá-la?
Na prática, eu levei cinco anos. Mas a história apareceu na minha cabeça há uns oito. Levei algum tempo até ter coragem de sentar e escrever. Considero que realmente comecei o projeto depois do primeiro roteiro escrito. Que depois eu acabei jogando fora quase inteiro!

Qual o maior desafio da produção deste trabalho?
Tempo. Nada além disso. Paciência. Na verdade, o maior desafio talvez tenha sido juntar coragem e me forçar a levar o projeto do início ao fim. Porque, técnica e criativamente, foi fácil de fazer. Era um quadrinho que eu queria muito fazer. E por não ter uma carreira conhecida, não havia nenhuma expectativa. Eu podia ir melhorando a técnica à medida que fazia... podia errar. O duro mesmo foi me convencer de que havia chegado a hora de começar e, levando o tempo que levasse, que eu ia chegar até o fim uma hora, que ia valer a pena. Mas mais uma vez, meus resquícios de punk rock me ajudaram. Eu não me importava muito se ia ficar bom ou não. Só queria ver meu bichinho pronto.

Quem você considera as suas principais referências nos quadrinhos? Quais os seus autores favoritos?
Conheço até pouco de quadrinho pra falar a verdade! Hahaha! Não achava isso até conhecer alguns outros autores e apreciadores de quadrinhos. Por que o povo conhece tudo! Então sou humilde com meus conhecimentos. Mas adoro quadrinho! Meu pai sempre teve muita Mad e Peanuts em inglês em casa, aqueles livrinhos de bolso... eu e minha irmã destruíamos a coleção dele literalmente. Minhas referências são os clássicos (Charlie Brown, Winsor McCay, Hugo Pratt, Manara, Asterix…), quadrinhos de humor (Quino, Laerte, Allan Sieber, Angeli, Fernando Gonzales), mangá, que eu gosto muito (Dr. Slump, Preto & Branco, Naruto, Vagabond, Battle Royale…), alguma coisa de quadrinho de herói também, que eu lia muito quando moleque. O Mike Mignola, inclusive, foi muito plagiado em vários sentidos… o timing dele é um negócio misterioso. Estudo muito ele.

Já está preparando sua próxima HQ?
Estou! Já vinha preparando a história há um tempo, enquanto desenhava o Yuri. Mas não tem muito a ver com o Yuri. Não repito muito as coisas. Gosto de experimentar com tudo que eu faço. Mesmo com animação e cinema, eu raramente fiquei muito tempo em uma mesma área. Apesar de meu ganha pão ser animação, é uma animação experimental... são projetos variados sempre no jeito de executar e nos roteiros. E eu quero dar um tempo. Um ano talvez. Nesse meio tempo quero fazer umas histórias curtas para revistas independentes que quiserem um colaborador e lançar um livro fechado com essas historias. Já tenho algumas feitas até.

História de um sobrevivente






















por Pedro Brandt

Quando Gen — Pés descalços foi publicado no Brasil pela primeira vez, em 1999, o boom dos quadrinhos japoneses ainda não tinha chagado às bancas do país. Passados 12 anos, a obra de Keiji Nakazawa continua como um dos melhores mangás já lançados por aqui. Sucesso no Japão, onde foi transformado em desenho animado, três filmes e série de tevê, a obra criada por Nakazawa é um clássico que continua a encantar leitores. Os quatro volumes nacionais da série estão fora de catálogo há algum tempo. Mas o primeiro deles acaba de ser republicado pela Conrad Editora, com nova capa e, desta vez, no sentido oriental de leitura.

Lançado em capítulos entre 1972 e 1973, na revista Shonen Jump (cujo público alvo são adolescentes do sexo masculino), Gen é inspirada na biografia do autor. Natural de Hiroshima, Nakazawa (hoje com 72 anos) é sobrevivente do ataque americano que jogou a bomba atômica sobre a cidade. Neste primeiro volume em especial, boa parte da trama se passa antes do fatídico 6 de agosto de 1945 (dia do bombardeio).

Gen é o quarto dos seis filhos de uma família humilde, os Nakaoka. Seu pai é contra a Segunda Guerra Mundial por acreditar que o conflito não levará a nada e que os mais pobres são os que sofrem com ele. Além do perigo iminente dos ataques aéreos, a população vive sob racionamento de comida. Para piorar, o Sr. Nakaoka é vítima de preconceito por se opor à guerra. É tachado de antinacionalista por quase todos que o cercam. Isso faz com que até uma tigela de arroz lhe seja negada. Os meninos são constantemente apedrejados na rua. O filho mais velho sofre humilhações na fábrica onde trabalha. E a filha, no colégio. Tudo isso é fruto do sentimento incutido pelo império japonês na nação com uma maciça propaganda militarista.

Nasce um herói

Diante de todas as dificuldades, Gen é uma criança feliz. O pai molda seu caráter para se tornar um homem honesto, justo, que não se dobra diante das intempéries. Não à toa, o subtítulo do volume um é O nascimento de Gen/ O trigo verde, ambos fazendo alusão à formação do protagonista como herói. “O trigo pisoteado produz raízes fortes, que se encravam na terra e permitem que ele cresça alto e resistente, capaz de suportar geadas, vento, neve…” é a primeira fala da HQ.

Mais do que os grandes dramas e as pequenas alegrias de Gen e sua família, o mangá também apresenta uma série de críticas que não perderam a validade. A maior delas é a respeito do combate bélico. Uma mensagem humanista e pacifista permeia a história. Além disso, Keiji Nakazawa não deixa de comentar a maneira cega como os japoneses abraçaram o ideário do governo do país naquela época, que colocava o imperador como uma entidade divina a ser obedecida e venerada a todo custo — com o sacrifício da vida se fosse necessário. Isso causou nas pessoas um sentimento que misturava impotência diante da guerra com um arreigado preconceito contra quem não compactuasse com as imposições.


Para dar uma amenizada em assuntos tão pesados, Nakazawa insere elementos cômicos que dão alguma leveza à narrativa. Um bom exemplo é o pequeno Shinji, o levado irmão mais novo de Gen. Ainda que tenha sido publicado numa revista voltada para o público jovem, Gen — Pés descalços é uma história em quadrinhos forte, que pode chocar muitos leitores. As cenas de pessoas derretendo sob efeito da bomba atômica são violentas. Até porque os desenhos do autor têm uma certa fofura que torna as cenas ainda mais impactantes. O primeiro volume da série termina justamente no 6 de agosto de 1945. Gen, que achava que levava uma vida dura, mal sabe o que lhe espera a partir do dia seguinte.



GEN - PÉS DESCALÇOS
De Keiji Nakazawa. 280 páginas. Conrad Editora. R$ 24,90.

Mistérios da Garra


por Pedro Brandt

Em 1937, a série A Garra Cinzenta dividia espaço com as aventuras dos personagens Fantasma e Super-Homem no suplemento infantil Gazetinha, do jornal paulistano A Gazeta. A popularidade da criação do roteirista Francisco Armond e do desenhista Renato Silva era tanta que, em 1939, depois de publicados todos os 100 episódios, a série foi relançada em dois volumes. 

Com o passar dos anos, o culto ao redor de A Garra Cinzenta só aumentou. E também o mistério a respeito da HQ brasileira (considerada a primeira no país e ter elementos de terror). Algumas perguntas permanecem sem resposta. Por que, mesmo popular entre os leitores, a série foi interrompida abruptamente? E, afinal, quem foi Francisco Armond? 

Garra Cinzenta, edição de luxo e fac-similar que a Conrad acaba de colocar nas livrarias, não responde essas perguntas. Mas faz justiça a um título que marcou época, virou xodó de colecionadores e, mesmo tendo sido republicada em mais duas ocasiões (somente a primeira parte, em 1975, e em tiragem limitada e completa, em 1998) e estar disponível para download em vários sites, estava há muito fora de catálogo.

Na nova edição, as 100 páginas da história são antecedidas por um informativo prefácio do pesquisador das histórias em quadrinhos Worney Almeida de Souza. A leitura ajuda a entender o contexto em que A Garra Cinzenta foi publicada (quando São Paulo, ainda uma cidade tranquila, almejava se tornar uma grande metrópole) e suas repercussões. “À época, seu sucesso foi tão grande que ultrapassou as fronteiras do país, e A Garra Cinzenta chegou a ser publicado até na Europa. Na França e na Bélgica, graças à revista Le Moustique, o personagem ficou conhecido como Griffe Grise. E, segundo alguns estudiosos, teria influenciado diretamente diversos personagens de HQs internacionais, como o Blazing Skull (Caveira Flamejante) da Marvel e os italianos Kriminal e Satanik", comenta Worney.

Renato Silva (1904-1981) foi desenhista atuante em diversas áreas, entre elas, os quadrinhos. Um de seus trabalhos mais conhecido são as ilustrações do livro Cazuza, clássico da literatura infanto-juvenil brasileira escrito por Viriato Corrêa. Sobre Francisco Armond, Worney conta que a única certeza é que se tratava de um pseudônimo. A principal “suspeita” é a jornalista carioca Helena Ferraz de Abreu (1906-1979). “Quanto a ela nunca ter assumido tal autoria, a explicação estaria no fato de que havia não só o preconceito contra os quadrinhos, mas também o preconceito maior ainda contra mulheres que escrevessem tal coisa”. O estudioso conclui seu texto com a esperança de que com a publicação do álbum, o mistério chegue finalmente a um desfecho.




Vilão carismático


A Garra Cinzenta é inspirada na literatura pulp e nos filmes noir americanos, bastante populares também no Brasil daquela década. Na trama, os policiais Higgins e Miller investigam uma série de assassinatos praticados por alguém que deixa no local dos crimes um cartão com a estampa de uma garra cinzenta. O facínora, ou “scelerado”, como muitas vezes o Garra Cinzenta é chamado (a edição da Conrad mantém o português da época), se veste com chapéu, capa, blusão com o desenho de ossos cruzados e uma máscara de caveira. Mais do que o visual, são seus planos ardilosos, escapadas inacreditáveis, personalidade manipuladora e ambiciosa (e um tanto cômica) que fisgam o leitor — até porque os heróis da série não passam de arquétipos sem charme. 

A isso se soma uma história ambientada em cemitérios, túneis, casas de ópio, laboratórios, becos e esconderijos. Tiroteios, lutas, mulheres fatais, poção de vida eterna, múmias, monstro mutante e até um robô (ou “autômato”, batizado de Flag) são alguns dos elementos presentes que ajudam a entender o fascínio que A Garra Cinzenta exercia nos leitores de ontem. Os de hoje precisarão de algum desprendimento para se divertir, afinal, trata-se de uma HQ feita há mais de 70 anos — mas que, justamente por todos os seus disparates, acaba ganhando um encanto a mais. Independente disso, a publicação é inestimável justamente por jogar luz em cima de um episódio importante da história das histórias em quadrinhos no Brasil.





GARRA CINZENTA: De Francisco Armond e Renato Silva. 128 páginas. Conrad Editora. R$ 39,90.

Texto publicado originalmente no Correio Braziliense.