RAGU 8: TEMPERO EXPERIMENTAL PARA PALADARES ÁCIDOS

RAGU 8: TEMPERO EXPERIMENTAL PARA PALADARES ÁCIDOS

por Ciro Inácio Marcondes

O ragu é um molho feito com a redução extrema do tomate, e vai muito bem com a deglaçagem, com vinho tinto, da carne de porco na panela. Sabores fortes, amigo. Uma delícia dos paladares mais brutos que acompanha muito bem massas diversas. E esse Ragu é justamente o nome da já clássica publicação pernambucana que teve seus primeiros números no início dos anos 2000, e não saía desde 2009, quando foi publicado o número sete.

Pois a Ragu está de casa nova, e um novo número foi lançado em julho de 2021 pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe), sob quíntupla editoria: Diogo Guedes (Cepe), os artistas João Lin e Christiano Mascaro, a tradutora e editora Dandara Palankof (também da Raio Laser) e o jornalista Paulo Floro (revistas O Grito e Plaf). O resultado é um livraço em Off-set cuidadosamente pensado para dar cabo das ansiedades estéticas, políticas e discursivas de pelo menos umas três gerações de artistas que se encontram aqui, na tábula rasa da experimentação.

Mas será mesmo uma tábula rasa? É certo que boa parte dos 41 artistas dispostos na longa e democrática perfilação da revista (com devida diversidade de gênero, raça, etc.) se dedicam a uma proposta outra do visível, esmigalhando disposições tradicionais de quadrinhos em estilhaços de linguagem, granadas conceituais, deformando tempo, espaço, narrativa, tudo. A capa e quarta capa, por exemplo, do artista alemão Henning Wagenbreth, funcionam como panópticos construtivistas com imagens sugestivas, sem ordem definida, numa livre associação de formas, palavras, gestos e ideias. Margeia o design, margeia um tipo de anti-publicidade, uma conflação do pop com a abstração.

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BAIACU: A EXPERIÊNCIA COMO FIM

BAIACU: A EXPERIÊNCIA COMO FIM

por Márcio Jr.

Passados mais de três anos desde seu lançamento, Baiacu ainda aguarda – e merece – um escrutínio mais atencioso, tanto por parte do público quanto da crítica. O impacto esperado de um projeto que novamente reunia Laerte e Angeli acabou não se concretizando. Ao menos não nas proporções imaginadas. Experimentalismo demais? Talvez. Mas é justamente nessa ousadia – beirando a irresponsabilidade – que reside seu inequívoco caráter singular. Ainda há veneno em Baiacu.

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LASERCAST #03 - Quadrinhos além: mas que diabos é isso?

LASERCAST #03 - Quadrinhos além: mas que diabos é isso?

A pergunta fundamental da Raio Laser é respondida por todos os seus integrantes, analisando as seguintes obras: AKIRA (Katsuhiro Otomo), MENSUR (Rafael Coutinho), RUMO À LUA/EXPLORANDO A LUA - TINTIM (Hergé), FUN HOME (Alison Bechdel), MUNDO CÃO (Miguelanxo Prado) e O ETERNAUTA (Oesterheld/López).

Participam do debate: Márcio Jr., Lima Neto, Bruno Porto, Marcos Maciel de Almeida, Pedro Brandt e Ciro Inácio Marcondes.

Edição: Gustavo Trevisolli

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BIENAL DE QUADRINHOS DE CURITIBA 2018 - Um evento à altura do quadrinho brasileiro

BIENAL DE QUADRINHOS DE CURITIBA 2018 - Um evento à altura do quadrinho brasileiro

Grosso modo, pode-se olhar para as histórias em quadrinhos sob duas perspectivas distintas e, eventualmente, antagônicas. De um lado, existe o quadrinho como mero entretenimento, inserido num mercado multimilionário e transnacional. Trata-se da tão propalada “cultura pop” – ou geek, ou nerd, tanto faz. Neste campo, a relação do indivíduo com o universo dos quadrinhos se dá através do consumo desenfreado e acrítico. O sujeito – sujeito é modo de falar, não me levem ao pé da letra, por favor – assiste os filmes e séries, compra o balde de pipoca, a camiseta, o pôster, a caneca, o protetor de celular, o bonequinho, o videogame, a cueca. Compra também o encadernado em capa dura de seu super-herói favorito. Mas não é sempre que lê. 

Na outra ponta, temos as histórias em quadrinhos entendidas como media. Um meio de comunicação potente e autônomo, que se materializa através de uma gramática particular e infinitamente rica. Tal e qual o cinema, a literatura, as artes visuais e outras formas de expressão, os quadrinhos podem ser tudo. Inclusive, arte. Toda a complexidade da experiência humana cabe em suas páginas. Logo, tomar os quadrinhos como mero produto mercadológico evidencia uma perspectiva pobre, tacanha e medíocre, incapaz de dar conta de sua intrínseca sofisticação. Um desserviço às próprias HQs.

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MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 4

Fazendo o levantamento das melhores leituras de 2017, algumas constatações me saltaram aos olhos. A primeira, é que não li pouco – mas li menos do que gostaria. A bem da verdade, se pudesse, passaria o tempo todo lendo. Ou quase.

Ainda que tenha lido em boa quantidade, fiquei longe de equilibrar a razão entre o que adquiri e o que efetivamente consumi. De modo que a pilha segue aumentando de forma doentia. Mantenho a fantasia de que irei ler absolutamente todos os gibis que tenho. Mas a matemática e o tempo são implacáveis e essas questões têm me atormentado mais e mais (vou até comprar uns gibizinhos agora pra aliviar um pouco a ansiedade).

A escolha das leituras também não obedeceu a nenhum critério claramente definido. Tirei o atraso de algumas obras importantes. E perdi tempo com algumas besteiras. A ideia que vai se plasmando em mim é que não sou eu quem escolhe os gibis a serem lidos, são eles que me escolhem – numa equação que envolve acessibilidade (muitas vezes não encontro o que quero ler em determinado momento) e intuição.

Sempre advoguei que a Raio Laser deva ter uma perspectiva atemporal. É consenso entre nós. As listas de melhores não têm a mínima pretensão de cobrir o ano editorial. Isso é papo de assessoria de imprensa jabazeira. Bons quadrinhos nunca terão prazo de validade. Minha surpresa foi perceber que a maioria das HQs que compõem minha lista de melhores foi, coincidentemente, publicada em 2017. O que isso significa? Sei lá.  Por fim, não gosto de estabelecer hierarquia entre as obras. Então, chega de papo furado e vamos à lista. (MJR)

Parte 1

Parte 2

Parte 3

por Márcio Junior

01 - O MUNDO DE EDENA, Volumes 1 a 6 – Moebius (Nemo, 2013 a 2014): Tenho uma dívida pessoal com a Editora Nemo pelo esforço e qualidade com que preencheram inadmissíveis lacunas do mercado editorial brasileiro. Em edições primorosas, publicaram (ou republicaram) autores de primeira grandeza como Hugo Pratt, Enki Bilal e Jean Giraud, o insuperável Moebius. Após oito álbuns cobrindo diferentes trabalhos do mítico autor francês, foi a vez da espantosa série O Mundo de Edena. Moebius é um artista sem igual. Dentro e fora do mundo das HQs. Entre 1983 e 2001, ao longo de 18 anos – o hiato de uma maioridade –, concebeu os seis livros que narram a epifânica trajetória de Atan e Stel. Por mais improvável que pareça, a série nasceu de uma encomenda feita pela gigante automobilística Citroën. Foi a fagulha necessária para que o autor se lançasse num oceano de profunda criação, sem destino certo ou porto seguro. Guiado unicamente pela liberdade, deu à luz uma obra de infinitas leituras, lidando com temas tão diversos quanto a relação homem/máquina, sexualidade, natureza, mitos criacionais, opressão, sonho, psicanálise, inconsciente, alimentação, magia e, acima de tudo, transformação.  Para Moebius, a vida se dá em constante mutação. E mais que pontos de partida e chegada, o mais importante é o caminho – ele mesmo dinâmico e mutável.

Posto que forma e conteúdo não se dissociam, graficamente O Mundo de Edena nos conduz a infindáveis viagens imagéticas. Nasce de uma busca do artista pela essência do traço, pela negação dos excessos. E mesmo esta busca se transubstancia em tantas outras abordagens visuais ao longo dos álbuns, num constante processo de experimentação que jamais se esgota em si mesmo. Ali, a beleza se materializa e se atualiza de modo sempre novo. Uma obra de arte definitiva.

Realizei uma imersão no Mundo de Edena. Foi, sem sombra de dúvidas, minha mais importante leitura em 2017. Planejei longos textos sobre a obra aqui na Raio Laser. A vida – em constante mutação, como já dito – não permitiu. Fica para outro momento. Mas aquele mundo onírico permanece aberto, à espera de quem se aventure por suas paragens. Faço então um único pedido à Nemo: deixem minha dívida aumentar. Continuem publicando Moebius.

02 - BILLIE HOLIDAY – Muñoz & Sampayo (Mino, 2017) e EL COLMILLO DE LA SERPIENTE – Muñoz & Charyn (Norma, 1999): O argentino José Muñoz é um deus do claro-escuro, um poeta das sombras, um gênio dos quadrinhos. Sua pena cava profundos sulcos no papel, deixando um leito aberto para que o nanquim/sangue/treva possa preenchê-lo, dando forma a obscuras facetas da experiência humana. Não deixa de ser absurdo um artista desta magnitude permanecer praticamente inédito no Brasil. Movida a coragem, a Mino deu sua contribuição para reverter este quadro com a preciosa edição de Billie Holiday – na minha opinião o grande lançamento de 2017 no mercado brasileiro. Outra obra-prima de Muñoz lida ano passado foi El Colmillo de la Serpiente – esta, ainda inédita por estas plagas. Falei sobre os dois livraços aqui.

03 - SILÊNCIO – Didier Comès (Bertrand, 1983): Silêncio, obra icônica do belga Didier Comès, foi um desses acasos fortuitos: numa jogada de pura sorte, o livro veio parar em minhas mãos. Daí para se tornar um dos favoritos (não de 2017, mas de toda a minha vida), foi o prazo de uma leitura. Escrevi sobre ele aqui.

04 - CIDADES ILUSTRADAS - SALVADOR – Marcello Quintanilha (Casa 21, 2005): A tradução gráfica de uma cidade a partir das impressões de um olhar estrangeiro era o mote da coleção Cidade Ilustradas. Quadrinistas nacionais e internacionais eram convidados a viver por cerca de duas semanas em uma cidade brasileira. A partir desta imersão, com grande nível de liberdade oferecido aos artistas, nasciam os livros – invariavelmente ricos e interessantes. David Loyd (São Paulo), Jano (Rio de Janeiro), Fabio Moon & Gabriel Bá (Manaus) e Guazzelli (Florianópolis) foram alguns dos nomes que participaram da coleção. O ponto mais alto, entretanto, viria com a Salvador de Marcello Quintanilha.

A tão decantada capacidade de Quintanilha em captar o tipo comum brasileiro brilha aqui mais que figurino de Ivete em cima de trio elétrico. Seu pendor natural pela originalidade faz com que Cidades Ilustradas: Salvador não seja uma mera compilação de desenhos (espetaculares, como de praxe, em se tratando de Quintanilha). Mais que isso, o livro situa-se num lugar indefinido entre livro ilustrado e história em quadrinhos, expandindo os limites de ambos.  Existe uma narrativa em prosa a percorrer a obra, com saltos e interstícios. Personagens surgem, desaparecem, retornam. As imagens possuem um diálogo com esta narrativa, são atravessadas por ela. E as atravessam. Imagem e texto, um prenhe do outro.

Cidades Ilustradas: Salvador opera então com uma meta-HQ. Por outro lado, a qualidade do texto de Quintanilha é, por si só, notável. O livro é a prova cabal que o autor poderia se dedicar exclusivamente à literatura. Mas não faça isso não, Marcello. Já nos basta a ausência de um Mutarelli. 

05 - NÓIA, UMA HISTÓRIA DE VINGANÇA! – Diego Gerlach (Escória Comix e Vibe Tronxa Comix, 2017): No atual (e riquíssimo) panorama dos quadrinhos brasileiros, o gaúcho Diego Gerlach é – como ele mesmo afirma, em profusa auto-ironia – avis rara. Desenhista de mão cheia e idiossincrático até a medula, tem criado uma obra originalíssima em dezenas de zines espalhados por aí. Ponto para a Escória Comix ao intimar o sujeito a criar Nóia, uma história de vingança! Com sua inconfundível personalidade, Gerlach sintetiza uma vibe moral setentista/oitentista, respaldada em um repertório que abarca o Justiceiro do Ross Andru, Dirty Harry e... Mauricio de Sousa! Nóia, o personagem principal, é um Cebolinha ultra-reaça, com cabelo de maconha e camisa da CBF. A hiper-violência que escorre pelas páginas carregadas de tensão frenética de Gerlach é gratuita apenas a um olhar desatento. Muito do Brasil 2018 está ali. Para mim, isso é que é Graphic MSP.

06 - ÚLCERA VORTEX, Volumes I e II – Victor Bello (Escória Comix, 2017): Outra pedrada da Escória Comix. Em um país sério e honesto, gente como o editor Lobo Ramirez e o quadrinista Victor Bello estariam atrás das grades. Sorte a nossa que estamos no Brasil.

Úlcera Vortex é um delírio da podreira. A imaginação de Victor Bello é irrefreável. Vejo o sujeito como uma espécie de Jack Kirby – só que débil mental e comedor de bosta cagada por pessoas movidas a uma dieta de ácido e Pitú. Obrigado Escória Comix e Úlcera Vortex. Vocês são a única resposta cabível à fofurização que acomete o quadrinho brasileiro.  

07 - CAMALEOA – Watson Portela (HC Comix, sem data, anos 1990): Se a memória da outrora popular tradição do terror no quadrinho brasileiro está se apagando, o que dizer então de nossas HQ eróticas? Quando falamos em sacanagem desenhada, um único nome vem à mente: Carlos Zéfiro. Nada mais injusto. Ao longo de décadas, nossas bancas foram o lar de milhares de gibis dedicados ao auxílio da prática onanista. Muito desse material era de qualidade questionável. Todavia, em períodos de vacas magras, a pornografia era o ganha-pão de legendas como Flavio Colin, Julio Shimamoto e Mozart Couto.

Camaleoa é um registro dos estertores deste mercado. Trata-se de uma pornografic novel (sic) do gigante Watson Portela. Ou melhor, de Helga (roteiro) e Barroso (arte) – afinal, o uso de pseudônimos era frequente no meio, uma vez que os quadrinistas buscavam resguardar sua imagem de “artistas sérios”. Manara, Crepax, Serpieri e quetais são tidos como mestres do erotismo. O Brasil produziu HQs do mesmo nível. Está passando da hora deste material ser resgatado com o devido cuidado. Eu ajudo. Com o maior prazer.

08 - MENSUR – Rafael Coutinho (Quadrinhos na Cia., 2017): Mensur está em tudo que é lista de melhores de 2017. Eu é que não serei blasé a ponto de retirá-lo da minha só por causa disso. Mas também não vou ficar aqui dizendo o quanto essa HQ é das coisas mais incríveis já vistas no quadrinho brasileiro. Periga o Rafa Coutinho ficar blasé...

09 - BLACK HOLE, Volumes 1 e 2 – Charles Burns (Conrad, 2007 e 2008): É sempre difícil encarar a pilha de quadrinhos que aguarda leitura anos a fio – enquanto cresce exponencialmente. Em 2017, um dos títulos com os quais finalmente acertei as contas foi Black Hole, de Charles Burns, ainda em sua primeira edição nacional, pela Conrad. As pilhas que se acumulam por anos dizem muito da nossa patologia. E patologia é um dos temas centrais da mais ambiciosa obra de Charles Burns, já alçada à categoria de clássico. Medo, isolamento, inadequação, sexo... Os dilemas enfrentados por todo ser humano na passagem para a fase a adulta são tratados com bizarra densidade através da perspectiva única de Burns. E como desenha esse desgraçado! Se você ainda não conhece Black Hole, não seja doente como eu. Pare o que está fazendo e corra atrás do livro, agora em edição única pela DarkSide.

10 - OS MORCEGOS-CÉREBRO DE VÊNUS E OUTRAS HISTÓRIAS – Coleção Incendiária, Volume 1 (Mino, 2017): A Mino segue resoluta no objetivo de construir um dos mais brilhantes e diversificados catálogos de quadrinhos no Brasil. Este primeiro volume da Coleção Incendiária – que marca o retorno do editor Lauro Larsen à casa que ajudou a fundar – é prova inconteste do profundo cuidado dedicado às suas publicações. Se é que alguém ainda não sabe, trata-se de uma portentosa compilação de quadrinhos norte-americanos de ficção científica, com um recorte que vai de 1939 a 1954 – ano em que se instaurou o famigerado Comics Code Authority. (Um parêntesis: alguma vez no mundo alguém já citou o Comics Code sem antes precedê-lo do adjetivo “famigerado”?). Ao todo, são 31 HQs que compõem um mais que representativo panorama do período. O material, em domínio público, passou por um monástico processo de restauração pelo designer Carlos Junqueira, idealizador do projeto. A qualidade do preto e branco alcançada na publicação não tem paralelos no mundo. Todavia, há controvérsias em se abrir mão das cores originais – planas e com paleta reduzida. Não foi à toa que Roy Lichtenstein ficou de quatro por elas.  O livro (de design impecável), foi traduzido com categoria pelo demônio Diego Gerlach. Intimidade com quadrinhos bizarros o sujeito tem de sobra - e é uma pena que a revisão não tenha sido mais criteriosa. 

Um certo Dr. Ciro Inácio Marcondes abre os trabalhos com o não menos que excepcional artigo Os intrusos numa era antes da censura. Daí pra frente é deliciar-se com as mirabolantes narrativas de um período cada vez mais distante de nós e assistir diversos nomes (alguns hoje consagrados; outros, injustamente esquecidos) dando seus primeiros passos na arte sequencial – ao mesmo tempo em que faziam com que a própria linguagem se desenvolvesse.

É emocionante ver a insanidade de Basil Wolverton e Fletcher Hanks, a classe de Alex Toth, Joe Kubert e Wally Wood, a originalidade à toda prova de Jack Kirby. Eram autores se estabelecendo num meio absolutamente avesso à autoralidade: o comic book. Pois se nas prestigiosas tiras de jornal o público procurava Alex Raymond, Hal Foster e Milton Caniff (entre tantos outros de elevada reputação à época), no descartável e industrial comic book tudo que a garotada buscava eram histórias completas, de seus personagens ou gêneros favoritos. Para além de nostalgia vintage, Os Morcegos-Cérebro de Vênus são um precioso documento do próprio amadurecimento em curso nos quadrinhos norte-americanos da época. Pena que o famigerado Código de Ética provocou um indesejável desvio de percurso, do qual as HQs se ressentem ainda hoje. 

11 - JACK KIRBY PENCIL AND INKS – Jack Kirby (IDW, 2016): Se estivesse vivo, em 2017 Jack Kirby completaria um século de existência. A data foi comemorada com uma miríade de lançamentos mundo afora. Nada mais justo. Após um final de carreira onde amargou certo ostracismo, desde sua morte, em 1994, a coisa gradativamente mudou de figura. Não tenho estatísticas nas mãos, mas as colocaria no fogo pela afirmação de que nenhum quadrinista norte-americano foi mais estudado, discutido e reverenciado nas últimas duas décadas. Com a mesma segurança, sou capaz de afirmar que Kirby é, em diversos aspectos, o mais influente autor de comics desde sempre. No Brasil, a celebração foi pateticamente tímida. Com milhares e milhares de páginas implorando publicação – muitas delas ainda inéditas no país do golpe – a Panini, a título de exemplo, resumiu-se às duas edições de Super Powers (um trabalho tardio, infantil e sem o vigor pleno do Rei). Jack Kirby Pencil and Inks é uma belíssima edição da IDW. Os primeiros números de Demon, Kamandi e OMAC estão reunidos sob uma excelente proposta editorial. Cada página das HQs é apresentada lado a lado: à esquerda, apenas o lápis de Kirby (que àquela época fotocopiava tudo que produzia antes de enviar os originais à editora); e à direita, arte-finalizada (e escaneada diretamente do original, o que significa termos acesso às nuances do nanquim, aos retoques com guache branco, às anotações feitas nos rodapés). Além da imaginação infinita – tão típica de Kirby –, é possível perceber a inacreditável precisão de seu lápis. Desenhos detalhadíssimos, que parecem nascer sem qualquer esboço ou estudo prévio. Por outro lado, constata-se também que o brilhante Mike Royer é, de fato, seu arte-finalista definitivo. Um livro para se degustar com o babador rente ao pescoço.

12 - HELLBOY NO INFERNO Volume 1: DESCENSO – Mike Mignola (Mythos, 2015): Já disseram tudo sobre Hellboy: que é terror de influências lovecraftianas, conto de fadas misturado a lendas folclóricas de diferentes matrizes culturais, aventura pulp. Nada disse deixa de ser verdade. Mas há algo que paira acima de todas estas referências: Hellboy é um gibi de super-herói. Dos melhores. Temos ali toda a imaginação tresloucada típica do gênero, o herói carismático em uma jornada de percalços infinitos, vilões casca-grossa, ação em doses cavalares e o melhor: despretensão. Assim como Mike Mignola é um dos mais dignos herdeiros de Jack Kirby – o rei eterno e absoluto desta seara –, Hellboy carrega o legado do melhor da Marvel dos anos 60/70. Compare o capetão com o Coisa da dupla Lee & Kirby e verá que as semelhanças extrapolam a mera coincidência – a começar pelo gosto por charutos.

Após tempos dedicando-se exclusivamente aos roteiros e ao espólio do personagem (que inclui filmes, animações e tudo que a indústria do entretenimento pode oferecer), Mignola retorna ao timão na série Hellboy no Inferno. Para isso, teve antes que matar o personagem – por motivos que não os usualmente adotados pelos comics norte-americanos. A morte de Hellboy não foi uma ação de marketing para inflacionar as vendas do personagem, mas um estratagema para jogá-lo no inferno, lugar imaginário onde Mignola não teria que desenhar nada que lhe incomodasse – como carros, aparatos tecnológicos reais e cidades contemporâneas. Livre de amarras gráficas, dali pra frente seria só alegria. Não foi bem o que aconteceu. Após dez edições, Mignola – que curiosamente parece ser um artista em constante crise criativa, a despeito de seu descomunal talento – jogou a toalha. As cinco primeiras edições foram compiladas neste encadernado. As restantes estão anunciadas para o início de 2018. Já estou salivando. 

13 - INUYASHIKI Números 1 a 4 – Hiroya Oku (Panini, 2017): Ichiro Inuyashiki é um perdedor. Tem 58 anos, mas aparenta mais. É frágil, medíocre e constantemente humilhado – até pela própria família. E então descobre que está com câncer. Em estado terminal. O absurdo entra em cena: Inuyashiki é pego por uma explosão de origem alienígena e acorda sem se lembrar de nada. Com o passar do tempo, descobre que se tornou um androide com incríveis poderes. O que fazer com eles? Como toda ficção científica de primeira, Inuyashiki não é sobre ciência, capacidades especiais, máquinas invocadas ou destruição em escala nuclear, mas uma profunda reflexão sobre a vida contemporânea. O mangaká Hiroya Oku é um craque. Desenhista brilhante e dono de um storytelling afiadíssimo, conduz a HQ com classe e sofisticação, criando um tratado sobre as penúrias do homem comum, invisível. Coisa fina. Das poucas que me deixam ansioso pela próxima edição.

14 - TEX GIGANTE nº 31: CAPITÃO JACK – Tito Faraci e Enrique Breccia (Mythos, 2016): A coleção Tex Gigante traz o suprassumo do mítico personagem italiano – que em 2018 comemora 70 anos de vida editorial. Quadrinistas internacionais do mais alto gabarito são convidados a oferecer sua visão do ranger em álbuns que ultrapassam 200 páginas. Joe Kubert, Magnus e Ivo Milazzo são apenas alguns dos nomes que já desfilaram pelas páginas da coleção. Capitão Jack traz Enrique Breccia (filho do imortal Alberto Breccia, legenda maior do quadrinho argentino) abusando de seu espetacular preto e branco, destilando diversas técnicas na arte-final e compondo as páginas de forma bela e sóbria. Tudo isso para nos levar à aridez do velho oeste, onde se desenrola a trama habilmente escrita por Tito Faraci, num tom mais maduro que o usual bonelliano. Em algum momento, Capitão Jack deve ser republicado pela coleção da Salvat ou mesmo em Tex Gigante em Cores, da Mythos, onde a colorização arruinará (ao menos em parte) o brilhante trabalho de Breccia.

15 - TEX nº 573 a 575: O Sinal de Yama – Mauro Boselli e Fabio Civitelli (Mythos, 2017): Ainda falando em Tex, difícil imaginar uma melhor porta de entrada para o universo do personagem que a trilogia O Sinal de Yama. Está tudo ali: tiroteios, ciladas, pancadaria, magia, vilões terríveis, heróis destemidos e infalíveis. Mauro Boselli entrega uma aventura de tirar o fôlego, explorando um elenco de personagens que esbanja carisma – ainda que claramente estereotipado. Mas o destaque vai mesmo para a inacreditável arte de Fabio Civitelli, de longe meu texiano favorito. Seu rigor acadêmico e a obsessão com os detalhes beira a insanidade. Civitelli desenha com precisão absoluta cada grão de areia do deserto, cada folha de arbusto, cada espinho de cacto. As 34 primeiras páginas da HQ – mostrando o retorno do icônico arqui-inimigo Yama – são um espetáculo de atmosfera horrorífica. A boa notícia é que em abril a Mythos republicará O Sinal de Yama, em formato maior e edição caprichada – os formatinhos usuais são um atentado contra os desenhistas da Bonelli. A má notícia é que novamente irei gastar dinheiro com esta HQ. 

16 - MASTERS OF SPANISH COMIC BOOK ART – David Roach (Dynamite Entertainment, 2017): Minha dieta de leituras invariavelmente inclui art books. E em 2017 foi este Masters of spanish comic book art que fez a alegria da casa. Na década de 1970, os espetaculares desenhistas espanhóis tomaram de assalto os quadrinhos norte-americanos, principalmente através dos magazines em preto e branco da editora Warren (que não se submetiam ao famigerado Código de Ética e, portanto, lidavam com conteúdo mais adulto). Gênios do traço como Esteban Maroto, Auraleón, Luis Bermejo, Pepe Gonzáles, Fernando Fernández, José Ortiz e Sanjulián levaram a arte das HQs a patamares inauditos. O belíssimo livro organizado por David Roach destaca este período, mas cobre um espectro bem mais amplo dos quadrinhos de autoria espanhola, chegando a nomes contemporâneos como Daniel Acuña e David Aja, conhecidos dos nerds mais espertos. Com 272 páginas e 500 ilustrações – das quais mais da metade escaneadas diretamente dos originais – Masters of spanish comic book art é de encher os olhos (podendo até fazê-los verter lágrimas, a depender da sensibilidade do cliente).

MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 3

Abro os olhos. Vejo as gordas gotas de suor e sangue se multiplicando vagarosamente no chão. Meu corpo lateja como um coro barítono que vibra por meus ossos lacerados. Levanto a cabeça e posso ver o corpo estendido daquele que seria o ano de 2017 me encarando com o olhar já vazio da morte. Ao que tudo indica, sobrevivi à experiência traumática do décimo sétimo ano do século XXI. Velho sortudo… Atrás de mim, 2018 levanta sua cabeça horrenda…

Peço desculpas ao exigente leitor da Raio Laser por emular tão tristemente os cacoetes estilísticos do caríssimo Frank Miller (se bem que mesmo ele podia se desculpar por fazer a mesma coisa nos dias de hoje), mas abuso da dramaticidade para de alguma forma me justificar por trazer para vocês uma lista tão magra de leituras. Mas foi um ano difícil. E espero que esta lista traga um pouco de reflexão, diversão e entretenimento para vocês como trouxe para mim. Vale lembrar que esta não é uma lista dos melhores quadrinhos publicados no ano, mas sim de boas leituras que foram realizadas em 2017 (inclusive lançamentos). (LN)

Parte 1

Parte 2

por Lima Neto

1 – Mensur – Rafael Coutinho (Cia. das Letras, 2017): Começamos pelo título que abrilhanta 90% das listas de melhores HQ´s do ano de 2017. Não sem razão. Muito já foi dito sobre a volumosa novela gráfica de Rafael Coutinho. Inclusive aqui mesmo na Raio. Mas aproveito este espaço para falar um pouco sobre a minha leitura da obra. Em julho último publicamos no site um ensaio meu sobre a tolice intrínseca e necessária aos quadrinhos de super-heróis, sem a qual não haveria diferença entre os mascarados e os criminosos que caçam. Caso se interesse, você pode ler aqui. O que não está dito no texto é que a leitura que vai inspirar a reflexão sobre o assunto – identidade, rostidade, responsabilidade (e o inverso de tudo isso) – é a narrativa do mensuren Gringo e seu autoproclamado exílio da própria vida. Mensur, como toda obra desse calibre, forma um emaranhado de possibilidades interpretativas e caminhos para o pensar. 

Mas vai ser exatamente o caminho mais direto, o da identidade, que vai me acompanhar a leitura inteira. Desde a bela capa, que evita encarar o leitor e parece ao mesmo tempo ler seu título ou admirar as cicatrizes de seu rosto, passando pelas negras capas internas riscadas em branco - como se fossem lembranças subconscientes de que as linhas que vão dar forma ao conteúdo do livro apenas são o que são graças aos caprichos da percepção -, Mensur é uma narrativa sobre o risco. Sobre a linha e seu papel de definir limites e de avançar, ou não, sobre estes mesmos limites. Não como uma bravata, embora haja bravatas, mas como um risco que se assume e cuja forma resultante define o que se é. Gringo é um personagem ciente de que não há riscos mais eficazes e verdadeiros que aqueles que realiza e recebe em seu secreto esporte. Riscos que definem quem ele é, ou melhor, que rabiscam sobre sua identidade social e construída, uma garatuja de não-identidade que é mais real do que qualquer outra linha  mundana que dá forma aos seres sociais. Abrir mão do rosto, como traço identificador mais do que elemento estético, é a ação antissocial última. É “rasgar a identidade”, como dizem os seres de rosto tatuado para além de qualquer moda que transitam pelas grandes cidades. Insatisfeitos com qualquer identidade que a sociedade possa oferecer. Mas esta entrega ao não-ser não é de maneira alguma redentora, e nem mesmo heroica, é uma apenas uma vivência marcada pelo patético de uma obsessão. 

2 – Lendas do Cavaleiro das Trevas: Alan Davis vol. 1 e 2 – Mike W. Barr e Alan Davis (Panini, 2014/2015): Falando em quadrinhos de super-heróis, uma das leituras mais agradáveis do início de 2017 foi a coleção dedicada à breve fase do desenhista inglês Alan Davis como artista de Batman sob a batuta do escritor Mike W. Barr. Esta fase tem como tarefa dar continuidade à origem do personagem escrita por Frank Miller em Batman Ano 1, e o experiente Barr vai misturar sua verve mais madura (que junto com Brian Bolland foi responsável pela pérola Camelot 3000) com uma interpretação mais colorida e fantástica do homem-morcego. Essa mistura agridoce se inicia com a sequência de título aproveitador Batman Ano 2, que vai ter a arte do ainda desconhecido Todd McFarlane nas primeiras edições, mas termina com o lápis de Davis. A partir daí, o britânico continua no título, agregando a mistura de seriedade e fantasia um visual icônico e o Batman mais elegante da editora. Nas páginas das duas edições, vemos um desfile dos vilões mais clássicos do personagem, reapresentados para a geração pós-crise. Barr e Davis conseguem com sucesso representar os vilões com a dose correta de delírio fantástico e ainda assim parecerem perigosos para suas vítimas. Essa fase ainda conta com a parceria de Robin, tendo um jovem e irresponsável Jason Todd por trás da máscara. Boa parte desse sucesso está o colorido vivo alucinógeno de Adrienne Roy e a competente arte final do parceiro de Davis, Paul Neary. Além da galeria de vilões, vale a pena destacar um empolgante encontro do maior detetive da DC com o maior detetive do mundo – Sherlock Holmes. O encontro aconteceu na edição de 50 anos da revista Detective Comics e contava ainda com a participação do detetive casca-grossa Slam Bradley e o herói investigador de faro para o mistério, Homem-Elástico. O encontro ainda contou com a arte de Dick Giordano, Carmine Infantino, Terry Beatty e Eufranio Reyes Cruz. Outra surpresa bem-vinda na edição foi a adição do especial Circulo Completo, publicado anos depois desta fase e que mostrava a volta do vilão ceifador, personagem de Batman Ano 2 que inspirou o longa-metragem de animação Batman – Máscara do Fantasma. E ainda a colaboração de Davis e Barr na historieta “Saideira no McSurleys”, um conto em preto e branco publicado em março de 2002. 

3 – A História do Petróleo em Quadrinhos – Tales Pereira (Jaguatirica, 2016): O quadrinho nacional vive hoje um momento de intensa produção. Não há como negar. Seja nas prateleiras das livrarias ou nas bancas das feiras independentes, somos cobertos por uma enxurrada de lançamentos dos mais diversos gêneros e qualidades. Este volume de produção nem sempre é correspondido com um poder de compra que garanta o escoamento do que é produzido, e, nesse impasse, muitos quadrinhos podem passar completamente despercebidos pelos radares. Uma dessas HQs se chama A História do Petróleo em Quadrinhos, de Tales Pereira. Uma das teclas mais pressionadas entre os pesquisadores de diversos campos que têm HQ seu objeto de pesquisa é a do potencial didático dos gibis. E esse livro, lançado pela editora Jaguatirica do Rio de Janeiro e bancado por uma campanha bem sucedida no Catarse, expõe de maneira explícita esse potencial. O quadrinho, como o título entrega, é um sobrevoo pela história desta matéria-prima que até hoje demarca uma cicatriz negra na história e nas relações entre ocidente e oriente. Tales, que já trabalhou como engenheiro petroquímico para a Petrobrás, usa um traço simples e cartunesco para discorrer todo seu conhecimento sobre o “ouro preto” em uma narrativa simples, didática, mas assombrosa em seu conteúdo. Com muito despojamento, A História do Petróleo em Quadrinhos expõe os derradeiros mecanismos que movem a sociedade capitalista do ocidente, iluminando relações aparentemente não  correlatas entre ciência, tecnologia e geopolítica. Seu estilo de desenho, embora esquemático, não deixa de ser expressivo e consistente, e o resultado final é uma aula cujo extenso conteúdo pode ser assimilado de maneira muito eficiente. A simplicidade deste gibi é enganadora e esconde uma leitura que deveria ser obrigatória e capaz de mudar a forma de ver o mundo. Algo que raramente é capaz de se dizer sobre uma obra. 

4 – Monstro do Pântano Regênese Vol. 3 – Rick Veitch e vários (Panini, 2017): Rick Veitch segurou uma das maiores batatas quentes do  quadrinho norte americano quando topou dar sequência à fase do escritor Alan Moore no título Swamp Thing. Amigo pessoal de longa data do escritor inglês, Veitch escreveu um dos mais psicodélicos capítulos do personagem no espaço, ainda na fase de Moore. Sua experiência como escritor não era pouca, mas seguir os passos do amigo era um desafio que ele  conseguiu ultrapassar com elegância e uma boa dose de polêmica. Em histórias xamânicas, o personagem do lodo encontrou outras versões de si mesmo de eras passadas, presenciou o consumismo simbolizado pelos carros e autoestradas, entrou no corpo de John Constantine para poder consumar seu amor por sua mulher na forma de uma inseminação (que se tornará sua filha Teffé Holland) e tatuar uma de suas nádegas. Veitch tinha muita familiaridade com o conteúdo das histórias anteriores e isso deu a ele bastante segurança para seguir. Mas vai ser no volume 3 que veremos algumas de suas melhores histórias. A primeira, "Esperando Deus", vai colocar o elemental contra nada menos que o próprio Super-Homem ao tentar buscar justiça pelo sofrimento causado por Lex Luthor quando este destruiu sua ligação com o verde da terra, ainda na fase de Moore. A edição vai mostrar um Monstro do Pântano que se esgueira de todas as formas para consumar sua vingança, sempre sendo frustrado por um Super-Homem que o impede quase sem notar a presença do elemental, realizando apenas algumas ações das muitas que performa todos os dias na função de deus guardião da humanidade. A história vai buscar na relação entre Papa-Léguas e Coyote uma maneira divertida e pungente de homenagear o primeiro super-herói da editora prestes a completar 50 anos.

Em "O Mais Longo dos Dias", encontramos os quatro avatares do verde que, em edições anteriores, partiram para o espaço de forma a agregar à sua coletividade a experiência única que o Monstro do Pântano passou. Cada um deles, seres tão interessantes quanto próprio Alec Holland, se tornam cientes de que seu planeta natal está para ser alvo de um ataque brutal. Ainda não havia selo Vertigo, e a revista Swamp Thing estava para participar do evento "Invasão", que acontecia em todos os títulos da editora. As descrições fantásticas que cada ser dá sobre o ambiente em que agora habitam se somam à paranoia crescente que prepara terreno para a edição seguinte e, em "Enlutada", o clímax se apresenta na forma da cônjuge de um ser alienígena que foi derrotado pelo Monstro do Pântano ainda na fase original de Len Wein e Bernie Whrightson. A narrativa que se segue é tocante e uma interpretação de pensamento alienígena das mais interessantes nos quadrinhos. Como resultado, o Monstro do Pântano é novamente desligado de sua relação com o verde, e vai transitar pelo tempo reencarnando em pontos-chave da história do universo DC. Fase esta que resultou na saída de Veitch do título ao ver a história em que o Holland reencarnaria na madeira da cruz de Cristo. O escritor foi cortado em um crescendo fenomenal, e esta série de encadernadas não terá continuação tão cedo no Brasil, pois mesmo nos EUA esta fase final é proibida de ser republicada. 

5 – The Big Book of Grimm – Jonathan Vankin e vários (1999, Piranha Press): Mais um ano termina, mais uma lista e mais um livro da série Factoid Books, da Piranha Press. Em 2015 a minha lista trazia o Big Book of Death, e agora o “Grande Livro dos Grimm” chega em 2017 botando gibis como Fábulas para correr com o “real deal” dos contos de fada. Como os outros livros da série, este big book é um apanhado das melhores fábulas dos irmãos Grimm, adaptadas por Jonathan Vankin e desenhadas por um exército de quadrinistas de impressionar. George Freeman desenha Cinderella; o conto macabro de Branca de Neve se torna mais grotesco no traço de Charles Vess; Hunt Emerson ilustra o conto Clever Hans. A lista é enorme: Rick Geary, D’Israeli, Sérgio Aragonés, James Kochalka, Rick Burchett, Dame Darcy, Seth Fisher, Mashall Rogers, Steve Leialoha. A quantidade de histórias dá um panorama bem completo das verdadeiras fábulas sempre com uma arte de qualidade em preto e branco. Ainda me impressiona que estes livros não encontram publicação no Brasil. 

Mensur: longa jornada Brasil adentro

por Ciro I. Marcondes

Todo tipo de sociedade secreta – uma maçonaria, um clube da luta, um círculo de junkies – está ligada à partilha prazerosa do poder. Isso se dá não apenas pelo poder da exclusividade, do rito de pertencer a algo secreto, mas também pelo poder da entrega a uma obsessão. Assim, a obsessão compartilhada se torna uma justificativa plausível para o arrastar-se de uma vida miserável, vaga e sem propósito. O poder que envolve o segredo de uma obsessão é o de transformar a vida em sua antítese (não a morte; e sim espécie de anti-vida) e tudo continuar bem.  

Basta lembrar a letra de “Junkhead”, do Alice in Chains: “Seems so sick to the hypocrite norm. Running their boring drills. But we are an elite race of our own. The stoners, junkies, and freaks. Are you happy? I am, man. Content and fully aware. Money, status, nothing to me. Because your life's empty and bare”.

Há aqui uma contemplação justificada pela recusa da vida, via o prazer secreto da obsessão.

Toda grande obra gira em torno de um tema infalível, e este prazer secreto e autoaniquilador da obsessão, ao menos em minha leitura, é a premissa central de Mensur, o megalítico novo romance gráfico de Rafael Coutinho, que será lançado no próximo dia 16 de Março.

Mensur levou, de maneira analogamente obsessiva, 7 anos em sua preparação. Muitas destas marcas (“cicatrizes”) de um parto laborioso e traumático se instilaram nas páginas da HQ, revelando uma obra de puro assombro destilado na cachaça diabólica da vida.

Trata-se, assim como grandes obras como Maus e Fun Home, de uma escrita traumática, mas inteiramente inventariada na ficção. Coutinho expia suas observações sobre o mundo (a obsessão, o mundo “mate” masculino, a cidade de São Paulo) na carne e coração de um personagem que, massacrado pela impossibilidade de mudar o relógio do seu funcionamento, vai tacando fogo no passado na medida em que procura retomá-lo. É uma história que, de certa forma, versa sobre como o envelhecimento pode transformar seus amigos em filhos da puta.

E isso é um ponto importante. Uma leitura apressada de Mensur pode fazer parecer que o seu tema é a honra e a redenção. O caráter maltrapilho da existência dos personagens (humanos, humanizados, mas ainda assim de uma existência maltrapilha) não permite que este ciclo redentor se concretize. O Gringo, protagonista que vaga (vagabundo), mal chegamos a conhecê-lo. Sua identidade vai assumindo formas e performances (diferentes empregos, diferentes visuais) variadas durante a história, mas, se o esprememos, temos apenas uma alma seca e danificada pelo poder secreto da obsessão.

Vale explicar: em Mensur, o Gringo é uma criatura de meia idade cujo passado como estudante de medicina em Ouro Preto revela também a origem de sua obsessão: a tradição alemã de uma violenta luta de espadas conhecida justamente como Mensur, que se enquadra como luva no sistema de estranho nepotismo que perpassa o grande conjunto de repúblicas universitárias da nossa mais famosa cidade colonial (quem já passou um tempo lá sabe como é). A sacada de Coutinho (Mensur + Ouro Preto) é uma fantasia, mas é também um muito feliz encontro ficcional. O Mensur é sombrio, violento (os golpes só podem ser dados na cara!), mas excitante. Neste sentido, lembra filmes como Crash, Shame, O império dos sentidos e outros que processam o prazer por meio de algum tipo de violência. Seria fácil procurar aplicar um tipo barato de psicanálise aqui, mas vamos guardar apenas a ideia de que o sadomasoquismo, digamos, fundacional do Mensur é uma chave para a “elaboração” que o Gringo faz de sua própria vida.

Se, do ponto de vista formal, Mensur lembra muito o cinema (chegaremos lá), na temática fica difícil, ao meu ver, fugir da semente dostoievskiana. O aspecto febril da trama, somado à tradição arcaica das espadas (vem do século XV) e ao debate moral esvaziado por pulsões animalescas não apenas faz encarnar o personagem do submundo do grande autor russo como o atualiza para uma realidade tipicamente brasileira.

Mensur é grande também porque revela um Brasil embrutecido e vicioso, mas sem exageros, sem afetação. Aos poucos, em falas, vestuários, cenários, objetos, etc., vamos reconhecendo a nossa encardida hipocrisia nacional nessa “fenomenologia do brasileiro”. O futebol, o trabalho pesado, a cultura urbana, a homofobia, todos estes temas aparecem entrelaçados como se para desatar estes nós que são os contratos em que se baseia nossa sociedade. Longa jornada Brasil adentro.

No mais, Mensur lembra O Jogador, de Dostoievsky, não apenas pela semelhança que há na crítica à hipocrisia social (e às classes sociais, como a burguesia, a aristocracia, os militares – Mensur apenas transfere este elitismo da mesquinharia aos universitários, aos trabalhadores braçais, aos agiotas), mas pelo mergulho delirante na obsessão. Em O jogador, o personagem Alexis tem, assim como o Gringo, a sua chance decrépita de redenção. E, também assim como o Gringo, sua ação final resulta em algo patético, miserável: podendo escolher entre jogar ou salvar a mulher da sua vida, Alexis decide jogar e gastar seu último tostão. A tese do autor russo aqui, sempre fatalista, é a de que cada um de nós troca a chance de batalhar por estruturar uma vida por uma obsessão. A obsessão é um último alojamento para o que resta da própria vida.

Grande paisagem

Estilisticamente, Mensur é também um caso à parte. Cinematográfica, mas sem banalidades, esta HQ costura visualmente uma espécie de noir barroco que ainda se assemelha à estética agridoce de Cachalote (mostrando o quanto do conteúdo daquele romance gráfico vem também de Coutinho, e não apenas de Galera). Coutinho abusa de sombreados complexos, ângulos arrojados, longas passagens mudas e todo tipo de empaginação. Pode-se dizer que sentimos, com o passar da leitura, os pesados anos de constituição da obra. Para além de virtuosismo gráfico, porém, ele se atém a contar uma minuciosa história paralela à de Gringo, Gordo e Cia: é a história, primeiro, dos objetos, depois das ações triviais e por fim da paisagem sonora da HQ.

De fato, olhares, roupas e instrumentos aparecem com detalhado realismo, mas o local destas coisas não é o preciosismo fotográfico. Estes objetos e ações têm ontologia. Um cara mijando. Uma lagartixa que come uma mosca. Um jantar que termina em merda. Tudo isso está profundamente ligado ao panorama psicológico da HQ. O estilo de Coutinho é sim realista, mas não frio. Além disso, ele se mostra aqui, mais do que nunca, um mestre na arte de escrever diálogos.

Mensur possui uma soundscape, coisa rara em quadrinhos. Ouvimos o barulho das espadas, das ruas, diálogos atravessados, comentários do cotidiano carregados de inferências e problematizações, jargões e gírias cheias de potência, etc. Mensur é, de fato, uma grande paisagem, em vários níveis. É um estado de espírito, por assim dizer, como Taxi driver, como Cassavetes.

No final das contas, talvez por um desdobramento emocional da própria trama e personagens impossível de ser resolvida de outra forma, Mensur recai em soluções próximas, ao mesmo tempo, tanto do documentário quanto da abstração. Se, por um lado, lembra o final de Amarelo manga (de semelhante teor febril), de Cláudio Assis, por outro traz à tona também a câmera da cena final de O eclipse, de Antonioni, quando ela revisita todos os locais pelos quais os personagens passaram, mas já esvaziados das pessoas. A abstração, para o final de uma longa narrativa, é sempre uma solução do cansaço. Sabemos que isso pode residir no cansaço final da longa produção de 7 anos de Coutinho, mas também não deixa de ser o cansaço existencial do Gringo que, pareado, ao menos nesta instância, com seu demiurgo, resolve também desistir da história e deixar sua impressão psíquica tomar conta das páginas finais. Já o aspecto documental (retratos de pessoas comuns) puxa a coisa para outro lado, como se efetivamente zerasse a história para partir para mais e melhores figuras obcecadas. Aqui, Rafael estende o tapete para outro Coutinho: o cineasta Eduardo, morto também por uma violência de natureza obsessiva. A espiral retoma sua elipse.