Rapidinhas Raio Laser #10

por Ciro I. Marcondes, Marcos Maciel de Almeida e Pedro Brandt

"Um traidor entre nós!" Será que ele está na Raio Laser? Será a Raio Laser um antro de traidores mancomunados para defenestrar o quadrinho nacional, escrevendo resenhas de mau gosto e esculachando o herói diário que é nosso cartunista independente, que finaliza suas histórias com o nanquim do próprio sangue? Haverá uma resolução para acabar com estes traidores e encerrar a Raio Laser? Será o traidor o dissimulado, de humor com gosto duvidoso, Marcos Maciel de Almeida? Será o irremediavelmente sardônico Pedro Brandt? Será o gangsterzão Lima Neto? Será o onipresente Márcio Jr. com seu "touch of evil"? Ou será o amargo e desiludido Ciro Inácio Marcondes? Bem, a crítica é sempre uma institucionalização dos traidores (como já previa a revista NME), uma corporação de patifes, escroques e pessoas de caráter questionável. O bom crítico deve afundar a faca nas costas e trair com a mais assertiva convicção. Estamos aí, estamos vivenciando nossa diária sexta-feira da maldade. Sem recalque, sem camaradismo youtubeiro. 

Seguem mais facadas em coisas interessantes de editoras como Veneta, Mino e Avec. Além de trabalhos independentes feitos do esgotamento quase total do quadrinista brasileiro. (CIM)

PS: essas resenhas tão totalmente de boa, na verdade!

Todas as Rapidinhas Raio Laser

Rapidinhas Catarse

Wasteland Scumfucks – Terra do Demônio

- Yuri Moraes (Veneta, 2017): Em 2012 escrevi uma resenha bem sacolejada do gibi Garoto Mickey, romance gráfico de Yuri Moraes publicado pela dobro. Considerei que o cara tinha talento, mas o quadrinho era muito autoindulgente e até um tanto paranoico com sua possível recepção crítica. Pois bem, anos depois, Yuri volta com algo conceitualmente muito mais impactante e manda um dos quadrinhos brasileiros mais originais dos últimos tempos. É importante frisar que precisamos esperar e dar chance para os autores amadurecerem. Vamos lembrar que Chaplin fez uns 50 curtas antes de dirigir seu primeiro longa-metragem (que é O Garoto, de 1921. Not that anyone cares). 

Produzir um romance gráfico é um sacrifício que muitos autores corajosos se arvoram ainda no começo da carreira. Muitas vezes os resultados são desastrosos, mas acho que a rodagem que esse esforço produz não é em vão. Tem gente que defende que se deve esperar o momento certo (ou seja: mais amadurecido) para se arriscar neste gênero, mas eu apoio estes kamikazes. Nada enternece a experiência melhor do que a própria experiência. Yuri Morais sofisticou suas ideias. As dores de crescimento são visíveis, mas estão cicatrizadas. 

Digo tudo isso para comentar a porraloquice bem-vinda que é Wasteland Scumfucks – Terra do Demônio. Yuri é um cara que visivelmente manja de um bando de coisas – de mangá shonen ao proto-punk americano dos anos 70 –, e essas influências aparecem muito bem mapeadas neste quadrinho grindcore que seria uma espécie de mundo em que Hora de Aventura tivesse sido criado pelo Lovecraft. 

O plot é escroto e delirante: GG (inspirado no doentio ícone da iconoclastia G.G. Allin), escravo numa prisão-ditadura, com ajuda de um cientista arrogante e um robô com aspirações de liberdade, consegue escapar e se juntar a outros personagens tão pitorescos quanto para entrar na chamada “Terra do Demônio”. Este lugar, meio Mordor, meio Terra de Ooo, meio (dãrhl) Oz, é um celeiro de atrocidades: canibalismo, parricídio, etc. Lembra um pouco aquele episódio de Rick and Morty em que eles vão parar num reino “fofo” onde o rei era um estuprador de banheiro. Yuri apela no non-sense, nos diálogos agressivos num nível de humor negro que eu geralmente aprecio e na pesada (porém divertida) escatologia.

A arte está mais simples e estilizada do que em Garoto Mickey, com um funcional colorido chapado em preto e vermelho, dando a entender o esquematismo do gibi. Terra do Demônio tinha tudo para virar uma HQ cultuada. Tem todos os elementos: referências maneiras sem clichês, diálogos cortantes e memoráveis, humor de primeiro nível e uma dose cavalar de politicamente incorreto. Uma pena que todo o lobby dos quadrinhos hoje seja para coisas edulcorantes e que se pretendem profundas e edificantes dentro dos padrões morais atuais, mas que são visivelmente superficiais. Assim, como Diego Sanchez, Yuri Moraes é mais um que sai da nossa “treta de 2012” fortalecido. (CIM)

Contos do Cão Negro – Volumes I e II – Cesar Alcázar e Fred Rubim (Editora Avec, 2016/7): Quando recebi meus exemplares de A Canção do Cão Negro, tive quase certeza de que se tratava de material gringo. Afinal, não é tão comum nestas bandas encontrar, num mesmo pacote, publicações bem impressas, edição caprichada, paleta de cores de extremo bom gosto e identidade visual bem definida. Mas sim, Contos do Cão Negro está entre nós e é nacional. Para quem não leu, a grande referência aqui é o nada doce bárbaro de Robert E. Howard, que certamente foi leitura de cabeceira dos autores. Não que Cão Negro se resuma a isso, mas é uma influência inegável. 

O roteiro de Cesar Alcázar é competente para mostrar as aventuras do protagonista Anrath, em que pese os bizarros nomes escolhidos para batizar as cidades e personagens da HQ, tais como Grainne, Limerick e Clontarf (!). Entretanto, o gibi se sobressai mesmo é pela qualidade do desenhista/arte-finalista/colorista Fred Rubim. Dono de um belo traço, altamente estiloso e rústico – bastante apropriado para o tom sombrio do gibi –, Fred tem como principais virtudes o talento para desenhar locações e cenas de impacto. As sequências de ação, no entanto, carecem de maior sofisticação, já que, por vezes, percebe-se que o artista não deu muita bola para elas. 

Embora às vezes conte com diálogos com pouca fluidez, Cão Negro tem uma história de fundo envolvente, que desperta no leitor a curiosidade de chegar ao desfecho. E as expectativas são recompensadas, especialmente pelo fato de os autores engrossarem o caldo com a participação de entidade/divindade inspirada nos mitos de Cthulhu, sempre muito bem vindos. 

Infelizmente há uma queda sensível na qualidade da arte entre o primeiro e o segundo volume. Tem-se a forte impressão de que este último foi feito de forma mais apressada e com menor planejamento, já que há grande quantidade de imagens que estão mais para rascunho que para arte-final. Mas tudo bem, nada que o lançamento de um terceiro volume não possa redimir. (MMA)

Market Garden - Bruno Seelig (Editora Mino, 2017): Bruno Seelig é um nome para se prestar atenção. E caso você ainda não faça isso, visite agora mesmo o site do quadrinista gaúcho e entenda o porquê. As ilustrações de Seelig são daquele tipo carregadas de informação, com referências e citações diversas – cinema, quadrinhos, TV, rock, design gráfico - enfim, um apanhado geral de cultura pop fácil de descrever, mas que alcança um resultado além da simples junção das partes que formam essa mistureba, sendo tudo muito bem sacado e retrabalhado no traço do autor, dono de uma personalidade imediatamente reconhecível. Se Seelig fosse apenas ilustrador seria o suficiente para ser fã do cara e ficar babando com seus desenhos. Mas o filho-da-mãe ainda é um baita de um narrador, daqueles que dá gosto de ler as HQs.

Ele domina, como poucos jovens autores nessas plagas, a arte de contar visualmente uma história. O timing de sua narrativa é absurdamente bem-executado, ou seja, o tempo dos acontecimentos, os momentos de fala e os de silêncio (para causar diferentes sensações) e como eles são apresentados ao leitor (com closes, planos, contraplanos e angulações de câmera diversos) é eficiente e adequando, nada parece apressado ou devagar demais. Como num bom filme. Bruno Seelig tem o olhar apurado de um montador e a sensibilidade conceitual de um diretor.

Seu traquejo como roteirista e criador de diálogos acompanha seu talento com as outras categorias.

Market Garden, propositalmente ou não, mira na tão em voga nostalgia dos anos 80, ainda que a história se passe na década de 90. A HQ tem como protagonistas cinco amigos entrando na adolescência e vivendo os dilemas típicos da idade: aceitação, escola, garotas, amizade, morar com os pais, futuro profissional, etc. e tal. Poderia ser mais um quadrinho (ou filme ou série ou animação) com essa premissa. Mas entre a linha tênue entre o clichê a uma representação credível e divertida, a obra está mais pro lado de cá (onde estão também Stranger Things e Apenas Um Show).

Na seara dos quadrinhos, séries como Locas, do californiano Jaime Hernandez, ou Xampu, do paulistano Roger Cruz, habitam universos semelhantes, mas com um diferencial: trazem consigo uma inegável marca autoral e um relato bastante fidedigno de uma época. E, nelas, a visão particular desses autores, suas dores e alegrias, somam como um ingrediente que faz toda a diferença no resultado. Em comparação – injusta, talvez – a HQ de Seelig pode soar menos espontânea. Seus rapazes são hipsters que não existiam naquela época. Do grupo de cinco, apenas três – pelo menos até aqui – têm personalidades marcantes, mais trabalhadas. E suas sensibilidades não parecem brasileiras, mas importadas, como personagens que conhecemos em filmes na TV (aberta, pré-cabo), não durante o ensino médio ou numa vizinhança de uma metrópole brasileira. A HQ, aliás, poderia se passar nos EUA. São detalhes perceptíveis, mas que não chegam a tirar o brilho do conjunto. Seria Market Garden apenas um cartão de visitas do autor para chegar aos comics – ou ir além dos quadrinhos, para depois abandoná-los, como fez seu conterrâneo Rafael Grampá? Tomara que não. Com um pouco mais de pretensão e ousadia, Bruno Seelig tem tudo para se tornar um dos grandes autores de sua geração. (PB

Salto – Rapha Pinheiro (Editora Avec, 2017): Aqui mais um exemplo de romance gráfico lançado ainda no início da carreira do autor. Rapha Pinheiro estudou em Angoulême em 2016 e este Salto é o resultado de sua residência. Trata-se de uma exótica fábula com pretensos elementos steampunk situando-nos numa sociedade de povos do fogo (digo: literalmente feitos de fogo) que se acotovelam dentro de uma cidade movida a vapor, dentro de uma grande caverna. Eles se refugiaram lá por conta de uma colossal chuva no lado de fora que os traumatizou para sempre. A fábula em si, com intenção filosófica remetendo diretamente à alegoria de Platão, é bem sacada e vale o esforço de leitura graças a essa ambientação criativa. Há um planejamento no design (social, tecnológico e arquitetônico) deste mundo que abre bem as portas para boas histórias. O problema é que Rapha Pinheiro se rende a convencionalismos um tanto quanto irritantes para o seu conto moral. 

O layout das páginas e as sequências narrativas são decepcionantes, autoevidentes. Tudo ocorre de acordo com o que se espera. Os personagens, situados num conflito de classes (marcado criativamente pela cor das chamas), se reduzem a tipos e a um maniqueísmo insuficiente para debater questões atuais. Arquétipos desgastados não são mais que estereótipos. Por fim, a arte definitivamente não atrai. É esquemática, pouco detalhada e com acabamento (arte final) ruim. O colorido digital, então, coroa o gosto duvidoso das escolhas estéticas deste gibi. Acho que o autor tem imaginação o suficiente para superar estes entraves num próximo trabalho. Desta vez, não deu. (CIM)

Necromorfus – Osso do Rei

(RQT Comics/Korja dos Quadrinhos, 2017): O Marcos Maciel de Almeida já bajulou bastante o trabalho do Magenta King por aqui, mas eu acho que nunca é demais ressaltar a qualidade e as escolhas de um bom artista. Desta vez este personalíssimo ilustrador trabalha um roteiro (muito massa e original) de Gabriel Arrais para liberar sua arte (aquela coisa vistosa com influências diversas, de Geof Darrow a Tim Sale e gekigá) na forma de nanquim, aquarela e retículas. É isso que compõe o primeiro volume da série Necromorfus, que pretende reunir elementos de terror, violência tarantinesca, aventuras “adultas” à la Hugo Pratt, Vampiro: a Máscara, fumetti, etc. É um bom “gumbo” para gibis que querem alcançar o nível de excelência “Vertigo” para horror metafísico em quadrinhos.

É uma história curta, que basicamente apresenta o conceito do personagem: Douglas, um imortal que adquiriu este dom com 16 anos e desde então foi progressivamente perdendo a humanidade. Ele é capaz de tocar em matéria morta e assumir a forma e as memórias da pessoa ou animal em que encostou. E detalhe: Douglas revive também a hora da morte destas pessoas, tornando o personagem oco e sombrio. Outros elementos surgem no nó investigativo que decorre das ações de perseguidores e perseguidos pelo necromorfo: uma femme fatale que chama a sua atenção, um “psiquiatra de clientes muitos especiais”, a impressionante descrição do reencarnar na matéria bruta que é a psiquê de um urso. Há uma atraente aura de Dylan Dog neste gibi.

Necromorfus estreia bem, com decente capacidade de refletir sobre o que nos faz humanos e onde perdemos nossa humanidade. Além disso, tem acabamento de produto pop e boas leituras de suas referências. Pra um primeiro volume curtinho basta. Não dá pra ir mais longe que isso. Vamos ver se sustenta maior fôlego em outras edições. O volume 2, conforme está anunciado, terá arte de Abel. (CIM)

Reparos – Brão Barbosa (Independente, 2017): Eis uma HQ incensada pela crítica especializada, mas que não me pegou. A história de Eunice, a garota fascinada pelo ofício de consertar coisas, é bem intencionada, mas não deixa muitas saudades. De início, Reparos sinaliza que mostrará a evolução da paixão de Eunice pelo amigo Júnior, mas, aos poucos, a história passa a girar em torno da aproximação – quase filial – da protagonista com Ravid, senhor idoso, mestre na arte de reparar aparelhos quebrados. O crescimento da confiança e do afeto entre a garota sonhadora e o velho - aparentemente carrancudo, mas na verdade generoso - é bonito de se ver, mas não chega a emocionar. 

A arte de Brão, excessivamente cartunesca, também não ajuda muito. As sequências sem balões, por exemplo, são muito confusas e revelam que o autor ainda tem um longo a caminho a percorrer para conseguir dominar as sutilezas da arte sequencial, já que suas habilidades de storyteller, por enquanto, deixam a desejar.  O gibi anterior de Brão, Feliz Aniversário, Minha Amada, também fez uso do recurso – muito bem-vindo por sinal – de alterar a direção da narrativa para um caminho inesperado, mas em Reparos a escolha resultou num final menos redondo. (MMA)

Esquadrão Vitória – Giorgio Galli, Clóvis Brasil e Marcello Renoir (Gico HQ, 2017): O imortal Jack Kirby teria completado 100 anos em 2017. Muitas homenagens foram feitas confirmando o que já vínhamos percebendo nos últimos anos: a “Kirby renaissence”. Considerado ultrapassado nos anos 90 (ficou um certo tempo sem ser publicado aqui), o rei dos quadrinhos tornou-se referência de como ser responsa, perene, invocado e inquebrantável no mundo dos comics americanos. Sua persistência em adquirir garantias para a profissão, seu jeito austero de trabalhar, sua produção em escala cosmológica, tudo isso tornou Kirby “cool” como ele nunca havia sido antes. Pessoas que não gostam de super-heróis dão o braço a torcer. Todo tipo de ilustrador se ajoelha para a sua delirante e imaginativa obra. Kirby se tornou ícone, “ideia”, o Muhammed Ali dos quadrinhos. Kirby tornou-se como um dos titãs que ajudou a criar. Talvez não fosse necessário um culto de personalidade tão sectário. Mas, bem, como se sabe, Kirby é Kirby...

Daí a simpatia imediata por esta paródia/homenagem Esquadrão Vitória, que emula o estilo de Kirby/Lee (apesar de a edição ser dedicada apenas a Kirby) com uma equipe de “vingadores” inspirada em símbolos nacionais (e nacionalistas). O gibi é bem feliz em procurar mimetizar cada aspecto de um produto Marvel dos anos 60/70, com sessão de cartas “excelsior”, Kirby crackles e diversos outros easter eggs. Capa, cores, empaginação, diálogos, detalhes editoriais, tudo foi marejado no apelo nostálgico que os super-heróis da era de prata da Marvel inspiram nos adultos de hoje. 

O que achei mais bem sacado foi a transferência do contexto político-militar dos comics dos anos 60 para um da mesma época, só que brasileiro: nossos heróis servem ao governo (uns são militares), e atendem a deveres patrióticos. Ahá (xeroque rolmes), há uma interessante leitura social do Brasil por trás da aparente amenidade da história envolvendo o vilão “Suga-Mentes”. De quebra, ainda vemos o líder Coronel Alado (aka paródia do Capitão América inspirada no Capitão Aza) libertar seus sentimentos mais arraigados e hipócritas ao assumir a fantasia de onipotência com seus colegas Sucuri, Mãe-De-Santo, etc. Em algum lugar em Valhalla, no planeta de Beyonder ou até nas infinitas terras da DC, Kirby deve ter curtido essa revistinha. (CIM)

Porco Pirata

- João Azeitona (Editora Mino, 2017): Se eu acompanharia uma série de Porco Pirata? Com certeza! O que o roteirista e ilustrador João Azeitona, autor do álbum lançado pela Mino, mostra nessa primeira edição é um personagem carismático conduzindo uma trama de aventura com direito a algumas surpresas e reviravoltas. Tipinho canalha, como um típico pirata, o obstinado personagem-título irá até as últimas consequências – batalhas, traições, armadilhas – para desfazer o feitiço que o transformou em um suíno. Nada muito original, mas divertido e promissor. Acompanharia a série também para testemunhar, com o passar das edições, o amadurecimento do trabalho de Azeitona. Fácil perceber que o cara é talentoso (com um preto e branco expressivo) e está em pleno desenvolvimento. Por ora, sua narrativa é um pouco dura e ele explora bem menos do que poderia as possibilidades de construção de página, resultando em várias redundâncias e desperdícios visuais. Outra coisa que joga contra é o fato dos balões de fala serem quadrados ou retangulares com letreiramento feito no computador. Balões desenhados (e, se possível – por favor! – letras feitas à mão) dariam muito mais vivacidade às cenas e contribuiriam sobremaneira ao ritmo de leitura. Vale ressaltar que a HQ em questão está mais para a série cinematográfica Piratas do Caribe, com situações um tanto quanto previsíveis e o foco na ação (neste primeiro número, principalmente em terra firme) do que para antigos filmes ou romances de pirataria. Quem procura quadrinhos com essa pegada mais “clássica” não deve deixar de ler as sensacionais BDs Os Passageiros do Vento, de François Bourgeon, e Barba Ruiva, de Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon. (PB)

Balas Contadas – Hiram Miller (Independente, 2017): Hiram Miller é um quadrinista em formação. Em Balas Contadas, ficam evidentes as boas intenções em contar uma boa história de faroeste. Infelizmente, dadas suas limitações como argumentista e desenhista, o gibi não empolga e fica a sensação de que, mesmo após o autor apertar o gatilho, as balas seguem presas no cano do revólver.  A HQ narra um conto do “Bando Ébrio”, grupo de bandoleiros que parte em busca de um tesouro escondido. Entretanto, o que poderia ser uma aventura interessante, às voltas com seres sobrenaturais e grandes bebedeiras, revela-se um passeio tão desagradável quanto uma ida ao trem fantasma daquele parque de diversões à beira da falência: por mais que você queira achar graça, fica torcendo mesmo é para que tudo acabe o quanto antes.  Dentre os vários problemas encontrados, o que se sobressai é a falta de carisma dos personagens. É muito difícil para o leitor estabelecer empatia com qualquer um deles. O misterioso maquinista do trem que nunca para, Txotxo (!), por exemplo, não passa de um brutamontes retardado. Outro desafio é conseguir ignorar a – baixa – qualidade dos desenhos. As ilustrações são tão sofríveis que cheguei a sentir saudades de Rob Liefeld.  Mas não deixe minhas palavras te desanimarem, Hiram. Siga tentando. Um dia seus disparos acertarão o alvo. (MMA)

Pile Up – Bruno Soares (Independente, 2017): Morte, vida, ressurreição, alumbramento, o milagre da existência. Parece muita profundidade temática pra um gibi (mudo) de estreia sobre dois botânicos espaciais, não é? Pois é exatamente o que esse jovem Bruno Soares realizou como trabalho de conclusão de curso na graphic Pile Up. De tirar o fôlego, inspirada em Arzach de Moebius mas sem parecer nada derivativo (o traço lembra mesmo é o do espanhol Julio Ribera), este quadrinho extrai toda a potência das narrativas de qualidade universal que as HQs sem palavras podem fornecer.  As imagens são desenhadas em quadros grandes com beleza profética (lembra Druillet em alguns momentos; LEO em outros), fazendo associações simbólicas entre os temas giratórios e simétricos sem que uma boa história deixe de ser contada. Eu realmente adoro quando a ficção científica assume sua condição metafísica (herança de 2001), que outros planetas sejam índice para a origem da vida e seu local na existência. Soares consegue atingir este subconsciente que reúne ancestralidade e futuro distante num livro elegante, sofisticado como narrativa, imperativo como inconsciente óptico. Significa dizer que é preciso ficar de olho neste autor? Bem, não preciso explicar o óbvio ululante. (CIM)

Rapidinhas Raio Laser #09: especial Catarse

Vaquinhas virtuais chegaram para ficar. Goste ou não, o fato é que cada vez mais criadores estão utilizando o financiamento coletivo para viabilizar seus projetos. É aquela história: se tem gente interessada em bancar, por que não lançar? A coisa está especialmente disseminada nos gibis, principalmente em razão dos valores de produção, relativamente baixos se comparados aos de outras mídias. 

Aqui na Raio Laser já virou praxe fazer resenha de gibi independente. Aí pensamos em fazer um post exclusivamente dedicado às HQs que compramos por meio de vaquinhas virtuais, afinal elas continuam sendo independentes, certo? 

Na análise abaixo, a tendência é que façamos comentários positivos sobre os gibis adquiridos, já que só financiamos autores nos quais realmente acreditamos. Por isso os quadrinhos a seguir provavelmente receberão elogios rasgados. Será mesmo? (MMA)

por Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes

R’lyeh Boy – Caio Oliveira (Quinta Capa, 2017): R’lyeh Boy é uma sátira de ... Bem, se você não sabe, está na página errada. Busque conhecimento sobre a série mais longeva de Mike Mignola e volte aqui. R’lyeh faz referência à cidade submersa fictícia criada por HP Lovecraft, prisão do deus adormecido Cthulhu. Não sabe quem é Cthulhu? Resumo de três linhas: é um deus/entidade alienígena que está dormindinho na Terra e vai despertar qualquer hora dessas para tomar o que é seu, ou seja, o nosso planeta. Enquanto ele dorme, humanos mais sensitivos são afetados por seus sonhos e, gradualmente, passam a enlouquecer, barbarizando geral. O visual de R’lyeh Boy é claramente inspirado em Cthulhu.  R’lyeh Boy é funcionário de uma empresa que resolve problemas sobrenaturais. No gibi em questão, R’lyeh Boy é despachado para enfrentar avatares de jogadores de RPG (boa sacada, Caio!) da Terceira Dimensão (a nossa!). Os avatares invadiram o reino dos desmortos e estão botando pra quebrar. E isso é assunto pro nosso herói, claro. A pegada de Caio é enviesada para o humor e ele se sai muito bem nisso. Afinal, não é de hoje que ele vem fazendo a alegria da galera com a sua página “Cantinho do Caio” no Facebook. O gibi vem com uma série de “plus a mais”. Tem pin-ups espirituosos, piadinhas extras e adesivo engraçadinho. Simpático. 

Pensando aqui com meus botões. Enquanto Cthulhu dorme, ele segue influenciando a vida na Terra com sua presença no inconsciente coletivo. Já pensou se isso estiver acontecendo na real? Já imaginou se o próprio HP Lovecraft não for seu criador, mas mero fantoche que ajudou a propagar os mitos de Cthulhu e sua turminha da pesada, os “Old Ones”? Cthulhu é figurinha fácil na literatura, na música, no cinema, nos video-games e – por que não? – nos gibis. Nos últimos anos saíram – apenas no Brasil – pelo menos três quadrinhos relacionados ao mito alienígena (R’lyeh Boy, O Despertar de Cthulhu e Rio Negro. Pode ser que nós também estejamos contribuindo para a disseminação do imaginário do monstrengo. Mas bem, isso é papo para outro post. Por hora fiquemos com o gibi do Caio. É uma ótima pedida. Especialmente para ser apreciado antes do eventual despertar de Cthulhu. (MMA)

Adesivo maneiro pra barbarizar com seu vizinho evangélico

Anuí Lelis (Independente, 2017): A caixa de música de pequena Alice quebrou. Seu choro de desconsolo está acordando a cidade inteira. Ela e sua mãe levam a caixa de música para arrumar. O consertador é o cara mais odiado da região, daqueles que fazem até o capeta passar raiva. No entanto, tudo muda quando toca o telefone da casa de reparos. Quem será?  Esse é o resumo livre de spoilers de Anuí. É uma história simples, mas nada simplória. É, sobretudo, um trabalho de entrega. Lelis transmutou sangue, suor e lágrimas em papel e tinta guache para criar mais uma de suas obras de arte. O painel de cada quadrinho seu – é clichê dizer isso, mas fazer o quê? – merecia ser emoldurado e apreciado na parede. Lelis se esmera para pintar cada tijolo, cada pedra, cada telhado. Lelis é operário dos quadrinhos. Lelis é pedreiro. Com Lelis não tem tempo ruim. Lelis é gente que faz. Como em todo trabalho desse mineirinho desembestado, o gibi respira sutileza. É transporte certo para uma dimensão na qual as cores são mais vivas. Em que as pessoas não precisam caminhar, já que flutuam. Quando leio Lelis, é como se pudesse sentir cheiro de café fresco e pão de queijo assando no fogo à lenha. Trem bão demais, sô. Lelis é isso aí. Simplicidade e generosidade em doses cavalares. Falando em cavalo, nunca vou esquecer da primeira vez que o encontrei, no Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ) de 2015.  Dei uma olhada na listagem de convidados no guia do evento. Todos bonitos e de banho tomado, em fotos reluzentes. Já Lelis aparecia montado em seu alazão. Quer mais autenticidade que isso?

Momento emocionante ligado a Anuí foi quando recebi – eu e todos que patrocinaram o gibi – o tocante e-mail de Lelis confessando seu descontentamento com o resultado final da revista. Na verdade, insatisfação não com o gibi em si, mas com o fato de que a versão que foi para a gráfica – por erro – foi a de baixa resolução. Eu nem tinha reparado. Fica triste não, Lelis. A edição ficou duca. 

Lelis já foi publicado na Europa, em vários gibis, inclusive Goela Negra, lançado pela Mino em 2015. Não é fraco não. Acho difícil que os gringos levem ele embora, porque o cabra não vai querer trocar o cheiro do mato “nacionar” pela grama sintética estrangeira. Apesar disso, acho que devemos aproveitar enquanto o cara está por aqui e prestigiá-lo. Lelis é mais. Lelis é Brasil. (MMA

Eudaimonia – Luciano Salles (Independente, 2017): Diferentemente do sci-fi freak/lisérgico de trabalhos como O Quarto Vivente e Dark Matter (e reaproveitando a personagem de Luzscia, a Dona do Boteco), em Eudaimonia Luciano Salles traz à tona um submundo degenerado cheio de personagens "figura", traficantes e drogados que apelam ao non-sense dentro de um ambiente mais urbano. A porraloquice, no entanto (ainda bem), permanece a mesma. Porém, a coisa ganha camadas pesadas de Geof Darrow, Frank Miller dos anos 90/00, além de pitadas de Rafael Grampá, para erigir um verdadeiro colosso visual, em P&B super hachurado, preciso nanquim e um hiper detalhismo estilizado que meio que se justifica por si só.  Digo isso porque, por mais que a história passe como um relâmpago, seja espécie de trecho entrevado de algo maior e possa ser lida em poucos minutos, o apelo visual desta HQ é algo que não passa despercebido nem pelo mais careta e equivocado crítico do estilo visual hiper detalhista. Já o enredo trata de um acerto de contas entre um matador de aluguel brutamontes e meio mongoloide vestido de onça, aliado a uma velha bem escr*ta, dona de um bar, que precisa de droga para aliviar artrites terríveis e coisas assim.  A ação é vertiginosa. Mangás de Katsuhiro Otomo e Tayo Matsumoto também marcam presença como influências para a degeneração urbana, e Eudaimonia se faz ensaio pra algo que poderia ser maior e mais robusto (portanto, mais cabuloso). Linhas de ação trôpegas cortam as operações alucinadas que fazem esse quadrinho parecer um curta-metragem (bem curto mesmo) ou um teaser de algo ambicioso que se anuncia.

Eu, pessoalmente, aguardo ansiosamente o romance gráfico monstruoso que Luciano Salles está ensaiando em todas estas histórias curtinhas, unindo esses temas todos parecidos e favoritos: o convívio doidão com drogas estimulantes e/ou psicotrópicas, personagens barra pesada sempre “under the influence”, histórias sci-fi perturbadores que funcionam como se Black Mirror não fosse tão careta, imersão em sonhos, delírios ou realidade virtual mesmo.

Eudaimonia realmente é um quadrinho legal, mas tem um certo jeito de “amostra grátis” que faz a gente pensar se não é tudo uma ação de marketing do autor para soltar sua obra-prima num futuro próximo. Estarei certo? (CIM)  

Black Emperors: Bikes vs Sk8s - Dalton Cara e Magenta King (Independente, 2017): Magenta King e Dalton Cara. Temos que ficar de olho nesses rapazes, que não estão para brincadeira. Depois de chutar nossas bundas com o não menos que espetacular 5/5, a dupla endiabrada ataca novamente para nos brindar com outra pauleira na moleira: Black Emperors.  Se tivesse que escolher apenas dois adjetivos para descrever o último fruto dessa parceria, seriam os seguintes: dinâmico e explosivo, como foi o próprio processo de produção da HQ, abundante em adrenalina. Explico. Em 2017, a dupla se propôs o desafio de produzir uma revista de 32 páginas em um mês. O processo de criação foi exposto durante as aulas que ambos ministravam na Quanta Academia e no Sesc Pompeia, contando com o feedback dos alunos. Após o sucesso da empreitada, os dois resolveram pegar ainda mais pesado e expandir os limites que se auto impuseram. A aposta agora era lançar uma edição com pelo menos cem páginas num período pouco maior que trinta dias. As doses de exposição também aumentariam. Por isso, cada nova página do gibi foi religiosamente postada nas redes sociais, permitindo o escrutínio do público interessado. Pergunta se os caras conseguiram passar pelo segundo teste? Para nossa alegria sim. Eis que é lançado Black Emperors: Bikes vs Sk8s, que compila os dois trabalhos acima. De que se trata o gibi? Bem, o título já entrega em parte, mas o confronto entre gangues de skatistas e ciclistas é apenas o pano de fundo para uma saga que envolve vingança, rebeldia e gratidão. Tudo isso num ritmo frenético. Lembra que eu falei que o gibi é dinâmico? Então, o quadrinho te pega pelo pescoço desde o primeiro quadro da primeira página – que já te lança no meio da ação – e não solta até que termine a leitura. 

Primeira página de Black Emperors

Um dos pontos positivos da HQ é a riqueza imagética dos personagens. Cada participante da trama tem linguagem e visual característicos, que parecem ter sido meticulosamente estudados. Curiosamente, o enorme talento para criação de personagens parece equivalente à capacidade dos autores para se livrar deles. A cada três páginas, cerca de quinze personagens morrem, apenas para dar lugar a novos coitados que partirão dessa para melhor na página seguinte. Apesar disso, a história mantém um fio condutor coeso e lógico, que não se cansa de transpirar diversão. 

Influenciados por Paul Pope, os autores resolveram alterar seu processo criativo, permitindo-se pequenas alterações de percurso e flexibilizações no roteiro, tudo isso em nome da diversão. E o gibi é puro reflexo disso. Black Emperors está aí para capturar os corações e mentes de leitores cansados de quadrinhos carentes de espontaneidade, criados a partir de receita de bolo. Pela leitura do gibi, fica evidente que Dalton e Magenta cresceram lendo doses maciças de gibis de super-heróis. O impressionante é que mesmo depois de comer tanto arroz com feijão, eles não se deixaram levar pelas fórmulas batidas do gênero. O mais bacana é ver que eles souberam aproveitar as influências para lançar novos olhares para o universo dos quadrinhos, fugindo de maniqueísmos e de personagens bidimensionais. Por isso, a trama de Black Emperors é altamente ousada e imprevisível. 

À moda de Howard Chaykin, os diálogos não têm espaço para didatismo ou explicações do tipo quem é quem. A história tenta emular o modo como as coisas como acontecem na vida real. Não há tempo para identificar cada um dos personagens, mesmo porque eles já estarão mortos nas páginas seguintes. O negócio é se deixar levar pelo vagalhão, sem fazer muitas perguntas. 

Não é fácil permanecer vivo no universo de Black Emperors

O leitor tem um ponto de vista privilegiado para observar o universo de Dalton e Magenta. Quem nunca foi dos grupos mais populares da escola – como eu – vai poder acompanhar de camarote uma realidade habitada exclusivamente por pessoas cool, tipo aquela turma da qual você nunca fará parte.

Black Emperors é uma espécie de versão quadrinizada e insana de seriados como Barrados no Baile e similares. Para mim, programas desse tipo suscitavam aquela sensação de fingir desprezo pela turma popular, mas sempre dar uma espiada torcendo para que os bonitões e descolados acabem se lascando. E o bom é que, em Black Emperors, quase todo mundo se dá MUITO mal. 

Para deleite dos leitores, o universo de Dalton e Magenta está todo interconectado. Fui ao delírio quando foi revelada a ligação do gibi com outra cria da dupla, o 5/5. Só posso terminar este texto dizendo: “Por favor, não parem. Continuem produzindo e eu continuarei comprando.” (MMA)

MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 2

Li muitos quadrinhos em 2017. Infelizmente, o clichê quantidade não reflete qualidade pode ser aplicado no meu caso. Apesar de ter lido muito material novo e algumas velharias, confesso que tive dificuldades em encontrar gibis que realmente merecessem fazer parte desta lista de melhores leituras. Sei lá. Talvez esteja ficando velho e chato, mas o fato é que não foram muitas as HQs que mexeram com meu coraçãozinho. Bem, isso já foi dito antes, mas a lista de leituras da equipe Raio Laser não tem necessariamente lançamentos do ano, mas gibis de qualquer época. Sim, sei que vocês estão acostumados com listas de gibis recentes, mas lamento informar que não tive tempo nem dinheiro para comprar tudo que saiu em 2017. E, mesmo que tivesse, duvido muito que faria algo diferente do que fiz. Acho um saco essa ditadura do novo e não consigo/quero ficar atualizado. Sorry, folks. Lembra que eu disse que estou ficando velho e chato? Então... (MMA)

Segue a lista, sem ordem de preferência:

PARTE 1

por Marcos Maciel de Almeida

1- Três Sombras - Cyril Pedrosa (Companhia das Letras, 2011): Eis um gibi que me ganhou pela capa. Assim que vi aquela floresta tenebrosa e o título misterioso, percebi que tinha sido fisgado pelo trabalho do francês Cyril Pedrosa. O enredo, entretanto, é bastante indigesto para pais, avós, tios e assemelhados: a tentativa desesperada de evitar a morte de um ente querido. Negação, fuga, dor e aceitação. Três Sombras é sobre tudo isso. Em planos de sequência primorosos – que se passam em locações tão diversas quanto originais - Cyril narra a corrida frenética de um pai numa disputa que ele não pode vencer. Seus adversários são as intrigantes - e incansáveis - três sombras do título.  O traço aparentemente simples de Pedrosa é enganador. Por meio de pinceladas leves, o autor transmite emoções profundas, inerentes a qualquer pessoa. Seus quadrinhos evocam uma melancolia endêmica do gênero humano, como se o peso da existência estivesse apoiado sobre nossas cabeças, à espera de qualquer descuido para poder desabar e acabar de vez com o martírio de viver. Poético, elegante, triste, mas nunca  enfadonho, Três Sombras mostra - num ritmo às vezes ofegante, às vezes preguiçoso - a vã obsessão humana em tentar fugir do inescapável. 

2- Novo Lobo Solitário - Kazuo Koike e Hideki Mori (Panini, 2017): Quem foi o cara que disse que um raio não pode cair duas vezes no mesmo lugar? Este cidadão certamente não leu o Novo Lobo Solitário, de Kazuo Koike. Mais de 40 anos após o encerramento da história de Itto Ogami - finalizada em 1976 - o lendário roteirista japonês retoma a saga do último integrante da família Ogami, Daigoro, a partir do ponto exato em que a série original havia terminado. Para a empreitada, Koike escalou Hideki Mori, que teve de encarar a barra de substituir o gigante Goseki Kojima. E o novato deu conta do recado, conseguindo fazer o impensável: chegar perto de replicar o talento e a técnica de Kojima, também responsável direto pela trajetória de sucesso do Lobo e seu filhote. Se Kojima é hoje reverenciado pelas sequências de ação vertiginosa, enquadramento cinematográfico e fotografia bela e diversa, Mori não ficou para trás e fez o dever de casa, deixando o espírito do velho mestre orgulhoso.  É lançamento caça-níquel? Tenho minhas dúvidas. Kazuo Koike já é lenda no Japão. Escreveu trocentos títulos e ministrou uma pancada de cursos de roteiro. Não é como se o escritor veterano estivesse com a conta de luz atrasada. Koike tem histórico de integridade e comprometimento com os fãs. Tanto é assim que, quando percebeu que seu gibi Samurai Executor - também feito em parceria com Kojima - não estava à altura do trabalho que vinha fazendo com o Lobo Solitário, decidiu matá-lo. E o fez no próprio gibi de Itto Ogami, como vimos em Lobo Solitário - 1ª série, da Panini, publicado em 2005. Por isso, acredito que, se Koike se sentiu impelido a dar continuidade à saga, foi porque ainda tinha algo a dizer. 

É claro que sempre haverá as velhas viúvas do mangá original que lamentarão o fato de que o novo trabalho estaria  corrompendo a obra anterior, que deveria ter sido mantida intocada e etc. Não dê ouvidos para tais lamúrias. Ignore as reclamações desse povo que não faz sexo. Pule de cabeça nos novos capítulos da saga de Daigoro, o garoto que tem os olhos de gelo e a capacidade de derreter os corações mais embrutecidos. 

3- O Mensageiro Verde-Cinza - O Spirou de Schwartz e Yann - Yann Le Pennetier e Olivier Schwartz (Sesi Editora, 2016): Nunca tinha lido nada do Spirou, importante integrante da Santíssima Trindade da BD franco-belga, ao lado de Tintim e Asterix. Bem, continuo sem ter lido nada. Ou quase. Explico. A série Spirou de... convida grandes expoentes e revelações da BD para reinventar o personagem clássico criado por Rob-Vel em 1938, mas consagrado por André Franquin cerca de uma década depois. Já teriam ouvido falar em algo parecido?  Sim, Sidney Gusman nunca escondeu que a série Spirou de... inspirou a criação das incontornáveis Graphic MSPs, que promovem o lançamento - no formato graphic novel -de versões repaginadas dos personagens do Universo de Mauricio de Sousa. No caso em questão, Yann jogou Spirou no meio de uma trama internacional em que o mensageiro de hotel e herói involuntário quase evita a II Guerra Mundial. Tudo isso com um toque de humor e aventura bastante espontâneos que honram a história e o legado do personagem. Prestes a completar 80(!) anos de existência em 2018, Spirou ainda é um ilustre desconhecido no Brasil, e a série Spirou de... é uma ótima porta de entrada para quem está interessado em conhecer mais sobre esse icônico personagem do quadrinho europeu.

4- 5/5 Working Class Heroes - Magenta King e Dalton Cara (Bimbo Groovy, 2013): Pense em seriados japoneses no estilo Changeman e Flashman. Agora imagina se esse troço prestasse. 5/5 é isso. Reinventando a fórmula tradicional dos supergrupos orientais, Magenta e Dalton criaram um universo realista e brutal, no qual a busca por uma vaga na equipe atrai pessoas mais interessadas em fama que em contribuir para o bem coletivo. Com diálogos afiados e arte fenomenal, a dupla mostra que não tem apenas química, mas verdadeiro talento de alquimista ao transmutar lixo asiático em ouro quadrinístico. A boa notícia é que esta dupla endiabrada passou a colocar uns teasers no Facebook que levam a crer que ainda veremos mais de 5/5. Tomara. Eis um conceito que parece promissor. Leia mais sobre aqui.

5- Cavaleiro da Lua vol. 4 e 5 – Jeff Lemire e Greg Smallwood (Panini, 2017): Existem personagens de HQ que vivem por aí, na mendicância, só esperando a oportunidade de serem escritos por um argumentista minimamente decente. E o Cavaleiro da Lua é um deles. Primeiro com Warren Ellis, em Cavaleiro da Lua vol 1 (2015), e agora com Jeff Lemire, o herói lunático consegue sair das sombras para matar a saudade de velhos e novos fãs. Com o auxílio do mais que competente Greg Smallwood, Lemire explora novas facetas da loucura do personagem, que desta vez vai parar num sanatório. Sim, sei que a tecla da loucura já foi batida quinhentas vezes, mas os bons escritores também são os caras capazes de contar a mesma história de um jeito diferente, não é mesmo? A fase de Lemire inclui os volumes 4 e 5 do Cavaleiro, sendo necessária, ainda, a publicação do sexto volume, para concluir a saga. Que bom que tiraram o personagem da geladeira. Finalmente algum editor da Marvel deve ter se tocado que estava na hora de burilar o maior tesouro da editora: a riqueza de personagens e de locações acumulados ao longo das quase seis décadas de existência da Casa das Ideias. É aquela coisa: por que ficar insistindo no enésimo clone do Wolverine se você tem personagens do quilate de Mortalha, Valete de Copas e tantos outros morando no Limbo? Makes no sense, bro.  Um dos bons conceitos trabalhados por Lemire é o de que as identidades do Cavaleiro precisam de tempo para se “sedimentar”. No vol. 5, por exemplo, há o surgimento de nova personalidade, reflexo da necessidade do herói de se adaptar às novas situações que encontra. O problema é que, se a nova personalidade não estiver suficientemente enraizada na realidade, pode se desintegrar sem deixar vestígios. Retirado de sua tumba, o Cavaleiro recebeu tratamento vip na Marvel norte-americana, com direito a tosa, spa rejuvenescedor e escova progressiva. O resultado é esse aí. HQ de respeito, com roteirista de peso e personagem repaginado para os novos tempos.

6- Ultraforce # 0-5 – Gerard Jones e George Perez (Malibu, 1994): Quem precisa de mais uma equipe de super-heróis? Eu. Especialmente se ela tiver boa dinâmica de grupo, vilões minimamente interessantes e o melhor desenhista para gibis do tipo, como George “Me gustan camisetas havaianas” Perez. Lançado em 1994, o título Ultraforce congregava os principais personagens do Ultraverso da Malibu Comics, uma das várias editoras de menor porte existentes no mercado norte-americano dos anos de 1990 dedicada ao ramo dos super-heróis.  A duração da Malibu foi efêmera. No mesmo ano de lançamento da Ultraforce, ela foi comprada/fagocitada pela Marvel, após breves 8 anos. Este tipo de prática predatória não foi criada pela Casa das Ideias, mas isto não exime a gigante dos comics de críticas, dado que tal política somente empobrece o mercado de quadrinhos. Mesmo tendo a Marvel prometido não descontinuar os títulos que havia comprado, o fato é que, após alguns meses, todas as revistas do Ultraverso foram canceladas. Uma pena. Pior para o mercado como um todo e principalmente para os fãs, que perderam alternativas - boas e ruins - de compra. Mas bem, pelo menos Ultraforce foi bom enquanto durou. Tudo bem que Gerard Jones tenha bebido na manjada fonte dos X-Men de Claremont e montado uma equipe formada por seres superpoderosos que juraram defender uma população que os teme e odeia. Apesar disso - ou talvez por essa razão -, conseguiu conferir interação consistente ao reunir medalhões que, como em todo bom gibi de supergrupo, se detestam. A equipe tinha bastante potencial, mas a compra da Malibu pela Marvel, aliada à crise que assolou o mercado de HQs nos EUA em 1994, melou o desenvolvimento das histórias, que passaram a incluir personagens mala-sem-alça do Universo Marvel tradicional, como Cavaleiro Negro e Sersi. E como resultado dessa política de remanejamento intraeditorial de dejetos radioativos, não teve como a Ultraforce sobreviver. 

7- Avengers: The Serpent Crown HC – Steve Englehart e George Perez (Marvel, 2012) e Squadron Supreme TPB – Mark Gruenwald e Bob Hall (Marvel, 1997): O Esquadrão Supremo é um dos grupos mais fodarásticos da Marvel. Especialmente porque é formado pelos personagens principais da Liga da Justiça, com a exceção do Batman, cujo homólogo marveliano – Nighthawk – nunca teve muito espaço nas histórias originais do grupo. Embora já tivessem aparecido em outras edições de Avengers, é apenas na Saga da Coroa da Serpente que o grupo realmente debuta em grande estilo. Foi nessa edição que os fãs babões – como eu – puderam ter uma ideia de como seria o embate entre Liga e Vingadores. E sim, a SCS é o suprassumo do gibi de herói e não sente nenhuma vergonha disso. Assim, há profusão de momentos impagáveis e ridículos, como não poderia deixar de ser. Uma das melhores cenas neste sentido é o surgimento da então novíssima vingadora, Felina, que achou que podia se tornar super-heroína simplesmente porque sabia surfar e tinha praticado esportes na juventude. Paralelamente à história principal, há uma aventura surreal do Thor e da Serpente da Lua, que voltam no tempo diretamente até a época do Velho Oeste (!) do Universo Marvel para resgatar o Gavião Arqueiro. E o retorno de Thor para o presente é um momento de virada para o personagem. Convencido pela Serpente da Lua a não mais “pegar leve” com os inimigos – coisa que costumava fazer para que os duelos em Midgard ainda tivessem alguma graça – o Deus do Trovão roda a baiana e deixa todo mundo com o cu na mão. Como se isso não bastasse, o gibi também é altamente recomendado pelo fato de apresentar a SCS em sua integralidade, sem os cortes safados da Editora Abril.

Quanto ao Esquadrão Supremo de Gruenwald, trata-se de um gibi mais sério, quase cabeça, que pensa a realidade super-heroística em tempos pré-Watchmen e Authority. No gibi, Hyperion e seus colegas tentam construir a utopia perfeita para os cidadãos dos EUA, ainda que, para tanto, tenham de empregar métodos condenáveis, como lavagem cerebral contra criminosos. Temas como autoritarismo e ditadura da minoria são tratados de maneira hábil por Gruenwald, que reconhecia o trabalho na série como o melhor de sua carreira. Não é para menos. O falecido escritor urdiu uma trama envolvente, com diversos pontos de tensão que se acumulam e desembocam num desfecho que não tem nada de anti-climático. Embora não seja nenhum gênio das HQs, Gruenwald conhecia as regras básicas para a elaboração de boas histórias e não deixou pontas soltas, resolvendo os principais conflitos e subtramas do roteiro. Duro ter de admitir, mas o escritor “roda presa” do Capitão América conseguiu fazer uma história competente e intrigante, venerada por gente do calibre de Alex Ross e Kurt Busiek. Se você é fã do Esquadrão Supremo, não deixe de ler as duas edições acima. Se ainda não é, ainda há tempo para se redimir de seus pecados. 

8- Forming – Jesse Moyniham (A Bolha, 2013): Soap-opera especial que veio desembocar na Terra, com direito a viagem no tempo, incesto, contatos imediatos do 5º grau e conflitos milenares. Cortesia de Jesse Moyniham, um dos responsáveis pela animação A Hora da Aventura. Imperdível. Saiba mais aqui.

9- Meu Amigo Dahmer – Derf Backderf (Darkside Books, 2017): Sem dúvidas, um dos gibis mais perturbadores deste e dos anos recentes. Conta, sob o ponto de vista privilegiado do autor, o convívio nos tempos de High School com aquele que teria a infâmia de se tornar um dos serial killers mais odiados de todos os tempos – Jeffrey Dahmer. Em tom documental/pessoal, Backderf narra a experiência de viver ao lado daquele sujeito que você sabe que é esquisito, mas passa longe de imaginar os anseios perversos que o motivam. O gibi não é tão bem desenhado. As imagens remetem a um Don Martin (Revista MAD) piorado, mas isso não é problema algum. Ao contrário. Por meio de estilo próprio, o autor conseguiu manter a pegada que uma obra de tamanho impacto pessoal necessitava. Outro ponto de destaque é a qualidade gráfica presente na publicação da Darkside Books. Gibizinho capa dura, papel especial, edição de luxo e o escambau. Coisa fina, mano. 

Embora tenha um desenvolvimento por vezes arrastado, Backderf pinta um panorama bastante fidedigno da vida escolar numa pequena cidade dos EUA no final dos anos de 1970. Interessante pontuar aqui que se tratam apenas dos anos prévios ao início da “carreira” de Dahmer como assassino serial. Se quiser saber maiores detalhes sobre os crimes dele, será preciso apelar para a internet. Neste caso, vá por sua conta e risco, camarada. Só não esqueça de levar o saco de vômito. Pensando bem, talvez o ritmo da narrativa não seja arrastado coisa nenhuma. Na verdade, o autor deve ser elogiado por sua habilidade em retratar o clima de marasmo e tédio presentes na comunidade escolar que frequentou, sensação que certamente é partilhada pelos milhões de estudantes espalhados pelos cinco continentes. 

Meu Amigo Dahmer é aquele gibi que você pensa duas vezes antes de pegar, porque sabe que não sairá o mesmo após a leitura. Rola aquele silêncio provocador pouco antes da abertura das páginas, no melhor estilo: “Será que eu realmente deveria estar fazendo isso?”. Se bem que, no fundo, você sabe que não há escapatória. Você vai encarar o desafio. E então... Perdeu, playboy!

10- Justice League Europe # 15-19 – Keith Giffen/Gerard Jones e Bart Sears (DC Comics, 1989): Admito que sempre fui um dos caras da turma “do contra”. Adoro apreciar as coisas que ficam meio que escondidas quando todos estão olhando para uma única direção. Com Liga da Justiça, não foi diferente. Enquanto todos louvavam (com razão) a Liga da Justiça América de Giffen e DeMatteis, eu me divertia mais com as aventuras dos “primos pobres”, ou seja, a Liga da Justiça Europa. O mix de personagens era delicioso. O Flash Wally West safadão, a liderança insegura do Capitão Átomo, o tom debochado/melancólico do Metamorfo e o fato – bastante realista, por sinal – de que todos queriam comer a Mulher-Maravilha. Junte-se a estes ingredientes um desenhista no auge da forma – Bart Sears – e o resultado não poderia ser menos que fenomenal. O estilo de Sears, especialista em desenhar seres metálicos e robotizados, caiu como uma luva no gibi, a tal ponto que considero, humildemente, suas representações do Capitão Átomo e do Soviete Supremo como as versões definitivas dos personagens até hoje.  Depois de uma sequência memorável (JLE # 1-14), em que acompanhamos as tentativas hilárias e infrutíferas do Capitão Átomo em liderar uma equipe totalmente disfuncional, chegamos ao momento mais louco e apoteótico do gibi, numa história chamada “O Vetor Extremista”. Nela, somos apresentados a um grupo de malfeitores – Os Extremistas – que homenageia/plagia os grandes vilões do Universo Marvel, como Doutor Destino e Magneto, entre outros. A ideia dos caras é simples: ou a Terra se rende ou eles vão acionar todo o arsenal nuclear do planeta. O problema é que a maioria dos membros da LJE tem poderes de dar pena, sendo necessária a criação de uma estratégia de ataque decente para que o grupo não passe mais uma vergonha. A história também conta com a participação de alguns dos “Vingadores” da DC, na verdade os Campeões de Angor, na forma de Gaio (Jaqueta Amarela) e Feiticeira Prateada (Feiticeira Escarlate), agora membros efetivos da LJE. 

Além dos diálogos afiados e dos desenhos primorosos, há easter eggs interessantes, como a aparição do desiludido Tio Mitch, criador de um parque de diversões cujo staff – totalmente formado por robôs – é incapaz de aceitar o fato de que possam existir pessoas que não têm o menor interesse em estar 100% anestesiadas por uma felicidade artificial. Trata-se, na verdade, de uma bela homenagem/sacaneada no legado do velho Walt Disney.  Muito já foi dito sobre a fase da Liga da Justiça de Keith Giffen. Não tenho muito a acrescentar. Ler esta fase é como observar aquele grupo de amigos que já está junto há muito tempo e adora se sacanear. A única diferença é que eles são super-heróis. Lutam contra o crime e depois vão tomar uma. Quer dizer, tomariam uma se os gibis da época não fossem tão politicamente corretos. E esse clima de descontração é proveniente da mente insana do fanfarrão Keith Giffen, louco para causar. E se a Liga da Justiça América já recebia a maior parte da atenção, Giffen podia esculhambar mais no título irmão, para nossa alegria.

Rapidinhas Raio Laser #07

Dizem que o quadrinho brasileiro nunca viveu momento tão bom. Pode ser que sim, pelo menos no quesito variedade. Afinal, tem de tudo um pouco. E, pasmem, encontrar muitas opções de gibis nacionais virou lugar comum, graças à disseminação de “livrarias Shopping Center” e mega lojas virtuais. Mas essa maior proliferação dos quadrinhos made in Brazil não ocorreu da noite pro dia. Medalhões da HQ nacional tiveram de comer muito arroz com feijão nas chamadas publicações independentes para conseguir seu lugar ao sol. E se a variedade dá as cartas nos gibis publicados por editoras de pequeno, médio e até grande porte, como Cia das Letras, essa diversidade representa apenas uma gota no oceano na cena de publicações indie. Basta dar uma volta em qualquer feira de HQ que se preze para perceber que a galera está lançando gibi de tudo quanto é tipo. E os gibis e zines analisados nesta nova edição do Rapidinhas não são exceção. Espere encontrar por aqui uma gama de narrativas sobre paixões não correspondidas, underground musical e pancadaria urbana gratuita, entre outras drogas. Como vaticinou James Kochalka em seu The Horrible Truth About Comics, o negócio é se expressar, e os manos e as minas arregaçaram as mangas e colocaram o lápis para trabalhar. Mais que isso: deixaram-se arrebatar pela liberdade que o formato DIY permite. O resultado foi – e continuará sendo – visceral.

Esta seleção do material independente que recebemos/compramos é uma excelente oportunidade de conhecer um pouco dos monstros que habitam o inconsciente coletivo de quadrinistas profissionais e amadores que escolheram a nona arte dar seu recado. As razões pelas quais fizeram isso são variadas. Sede de fama, desejo de exorcizar demônios pessoais, falta do que fazer e etc. Não importa. O que vale é que esses caras tiveram coragem de dar a cara a tapa. Sorte nossa.

Gostaria de dizer que a escolha do material resenhado aqui segue critérios altamente rigorosos, mas estaria mentindo. A verdade é que a equipe do Raio Laser mete a mão na pilha de publicações recebidas e separa aquilo que parece mais apetitoso. Às vezes rolam algumas indigestões, mas faz parte. Ok, podem criticar nossos métodos, mas eles são democráticos. Nesta semana e na próxima (tivemos de dividir esta por dois!), vamos nos debruçar sobre gibis da Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Goiás, Fortaleza e Deus sabe onde. Tem coisa nova e coisa velha. Tem gibi gourmet e tem zine com página xerocada. Lemos todos com carinho. (MMA)

Caso queira aparecer por aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070.

por Marcos Maciel de Almeida, Márcio Jr. e Ciro I. Marcondes

Seres Urbanos: Antologia do Quadrinho Underground Cearense – Vários (SEBO, 2015, 100 p.): Essa aqui estávamos devendo há um tempo, mas valeu a espera. O Márcio Jr já havia dado um pitaco aqui. Para quem não sabe, “Seres Urbanos” é o nome de um coletivo de zineiros de Fortaleza dos anos 90. Foram oito anos de produções praticamente ininterruptas e esta antologia reúne material representativo de dezenas de zines, exposições, colunas em jornais e outras manifestações em que eles estiveram metidos. A publicação foi financiada pela Secretaria de Cultura do Governo do Ceará, que fez seu papel para preservar a atualidade desta incrível coleção sobre os hábitos, ansiedades, gostos (o zeitgeist, enfim) de uma cultura alternativa nos anos 90.

Esses sujeitos eram zineiros roots, sempre na correria para publicar um volume desproporcional de coisas que vendiam a preço de custo, distribuíam na entrada de shows, enviavam pelo correio, movimentavam a cena da cidade. A antologia ainda vem com um rico texto estilo “reportagem por entrevistas” nas páginas finais, direcionando influências e o momento histórico de cada autor e cada gênero abordado nos zines. O principal quadrinista a publicar era Weaver Lima, um cara ligado também à música alternativa de Fortaleza – bandas como Velouria e Second Come... alguém se lembra dessas porras? Até mesmo a nossa saudosa Low Dream está em grande estima nas páginas de Seres Urbanos - , com influência da Revista Animal, Love and Rockets, Angeli, etc. Além de ser um ilustrador carismático, Weaver era bom em escrever ótimas histórias de típicas festinhas e showzinhos de rock dos 90’s Brasil afora, com a tradicional caracterização blasé e decadentista da juventude underground da época (quando era chique fazer bandas alternativas que cantavam em inglês, tipo Pin Ups). Virou um prestigiado artista plástico.

Fora Weaver, a antologia apresenta um sortidão de gêneros zinescos que marcaram época (arte postal, colagens, charges, cartazes) e também da produção dos outros caras. Lupin, por exemplo, faz um estilo “hebdomadaire francês”, inserindo citações de poetas e filósofos em quadrinhos de deboche. O estilo realista, com diálogos e situações das ruas de Fortaleza, de Mychel TC, é uma das melhores contribuições. Leitura urbana brazuca infalível, pra Quintanilha nenhum botar defeito. Em geral esta produção não fica atrás do que era apresentado por outros estados, e dá amostra do que foi o trampo underground brasileiro entre os anos 80 e 90, especialmente nas febris manufaturas desses zines, que eram a internet da época, e que não deixam a desejar em relação ao que se faz hoje na web, tanto em qualidade quanto em quantidade. Uma parte enorme deste material se perdeu para sempre.

Seres Urbanos tem sabor udi-grudi, traz à tona os esnobes anos 90, discute com propriedade as agruras e angústias desta época, que não são tão diferentes das de hoje. Apesar do humor caústico, esses quadrinhos se pautavam na alienação da juventude, no vazio existencial, em preocupações como o caos urbano e o aquecimento global (na época, “efeito estufa”). Porém, não eram histéricos, os zines procuravam sentido em meio ao caos e não eram escorados em ativismo de fachada. O olhar desamparado e misterioso do personagem da capa coloca margem para a diferença entre uma cultura de “teenage angst” pré-internet e o zine-de-luxo-pra-designer que se faz hoje. Aproveito então a oportunidade para lembrar que em Brasília também temos nossa versão do “zine responsa com a cabeça enfiada na baixaria e rock and roll”: Tupanzine, o fanzine mais antigo em atividade no DF. (CIM)

O Ateneu, Crônica de SaudadesMazô (Independente, 2014, 23 p.): Em tom altamente pessoal, Mazô narra parte de suas memórias afetivas escolares, passadas no tradicionalíssimo Colégio Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. Vencedor do prêmio de HQ independente Dente de ouro de 2016, o gibi convida o leitor a viajar pelo Ateneu particular de Mazô. Contendo colagens de fotos, bilhetes e outros objetos pessoais de sua vida escolar, a autora constrói espécie de diário público de sua vida privada. Mas não espere encontrar fofocas quentes ou detalhes sórdidos. Mazô faz uso de uma linguagem – narrativa e visual – que tanto mostra quanto esconde. Os detalhes estão lá, e apenas poucos enturmados irão compreender o real significado das imagens. Não que seja o caso de gibi feito apenas para aqueles da panelinha, mas sim para indicar que algumas lembranças só dizem respeito àqueles que as viveram.

O traço de Mazô é bastante experimental e ela brinca bastante com esboços. São ilustrações aparentemente simples, mas que se mostram rebuscadas, especialmente quando se analisa a riqueza das expressões faciais dos personagens. Sabe aquele esquema do “menos é mais”? É bem por aí. Afinal, artistas que se propõem a serem econômicos no desenho têm de se ater ao que realmente importa. Mantendo essa pegada parcimoniosa, Mazô capricha na composição de cores, que é feita primordialmente de bege escuro, preto e branco. Aliás, as imagens brancas são todas pintadas com um efeito que lembra giz de quadro negro, o que foi uma grande sacada.

Ao decidir revelar um pouco de seu passado estudantil, Mazô mostra que as experiências dos jovens são universais, por mais particulares que possam parecer. (MMA)

5/5 Working Class Heroes – Dalts, Go Carvalho e Magenta King (Bimbo Groovy, 2013, 70 p.): Lembra de Changeman, Flashman e assemelhados? Lembra aquele esquema de 5 jovens com uniformes parecidos, que se juntam para sentar o braço em monstros mais bizarros que perigosos? Então, esta é a pegada aqui. Só que, desta vez, os criadores resolveram levar a coisa a sério. Ou quase. Embora a intenção seja mostrar como seria a realidade de um grupo desse tipo no mundo real, os personagens principais usam uniformes que remetem a bichinhos fofinhos, como que para demonstrar o ridículo inerente a esse universo. No gibi, conhecemos um pouco da superequipe 5/5, grupo de heróis-celebridade que jurou proteger o mundo em troca de fama e contratos milionários. São três histórias que abordam diferentes aspectos da equipe.

Na primeira, “O Novato”, de Dalts, somos apresentados a um cidadão que consegue obter o traje de um dos 5/5. É uma história surpreendente, tanto pela qualidade do roteiro quanto pela arte. Dalts revela um talento impressionante, pelo grande domínio do ritmo da narrativa e pela plasticidade e estilo quase sujos que privilegiam cenas de ação vertiginosas.  Dalts parece gritar: “Ei, mercado americano, olhe para mim, já estou pronto”. E é realmente uma pena que ele ainda não tenha tomado os comics de assalto, já que é um quadrinista de responsa. Na segunda – e mais fraca história do gibi – “The Man Machine”, de Go Carvalho, conhecemos os funcionários de apoio da 5/5, numa história metida a engraçadinha, mas que só consegue fazer passar raiva. Finalmente, em “Os 5 Novatos”, Magenta King chega chutando bundas num conto em que 5 aspirantes a integrantes do 5/5 participam de um reality show que testa suas habilidades no campo de batalha. Magenta, assim como Dalts, tem uma arte de cair o queixo, e usa retícula, sombreamento e hachuras numa combinação original e desconcertante. Se Dalts lembra Travis Charest em começo de carreira, Magenta emula a visceralidade de Tom Raney.

O melhor elogio que posso dar a 5/5 é dizer que Dalts e Magenta souberam utilizar o formato independente para despirocar geral. Sem amarras ou censura, esses caras deixaram seus demônios correrem pelados na montanha e o resultado foi duca. Mesmo explorando gênero aparentemente esgotado como o dos supergrupos japoneses, os dois mostraram que, quando se tem lenha para queimar, até a centelha decadente dos seriados de grupo pode voltar a fumegar. (MMA)

Mata-me, ó Deus – Marcos Guerra, Marcos Garcia e Carlos Alberto (K-ótica, 2015, 36 p.): a boa capa de Mata-me, ó Deus promete uma HQ de alta potência onírico-lisérgica.  A promessa, infelizmente, não se cumpre. Estão lá as quase obrigatórias referências a Alejandro Jodorowsky, mas sem a atmosfera violenta e insólita típica do mago chileno. O roteiro é simples e auto-explicativo, sobrando pouca margem de manobra para o leitor participar mais ativamente da construção da narrativa – algo típico do gênero em questão. Restaria então à arte de Marcos Garcia (veterano do fanzinato nacional, responsável pelo antológico Acunha, publicado nos anos 1980) e Carlos Alberto promover as epifanias metafísicas desejadas. Não é o que acontece. Apesar dos desenhos bonitos (salta aos olhos a influência do seminal Watson Portela), a estrutura gráfica está muito mais próxima de um comic book pré-Image do que das BDs europeias.

Mata-me, ó Deus pode encontrar ressonância junto a públicos ligados ao consumo de plantas de poder. Todavia, para um leitor exclusivamente em busca de uma boa HQ, a magia não acontece. (E confesso ter ficado bastante impressionado com a depilação da personagem feminina, uma das poucas sobreviventes de um mundo devastado.) (MJR)

CeruleanCatharina Baltar (Independente, 2016, 80 p.): Fiquei “enamorado” desse quadrinho da Catharina Baltar (daqui de Brasília) nas duas últimas feiras Dente e resolvi tomar coragem e adquirir um volume da última vez. O que me atraiu: a excelente paleta de cores azul-lilás-turquesa (“cerulean”) pintada em aquarelas. Não importa muito que Cerulean seja um quadrinho indie tolinho, misturado com mangá shoujo, sobre uma sereia que fica encantada com um lifestyle millenial. Um mundo geek de redes sociais, board games e mangás. Não me importa que, das 80 páginas do livro, apenas 40 comportem a história (sendo o resto, extras). Importa mesmo é que, apesar de ter um tom adolescente, Cerulean consegue discutir a identidade e a solidão do jovem pós-moderno com alguma propriedade. Isso por si só a transforma em uma boa HQ juvenil. A sereia do título, afinal de contas, decide adotar o excêntrico mundo dos otakus e ser para sempre uma forasteira, algo que reflete um pouco a realidade dos otakus reais. Aos poucos, a despeito da antipatia inicial, fui me entregando ao propósito e à mentalidade deste quadrinho: como qualquer mangá comercial, ele tem algo de inventivo e excitante, e ao mesmo tempo algo de descartável. Se você tem dúvidas quanto à história, no entanto, pode ficar apenas com a arte extremamente carismática, com um tratamento de cores raro no quadrinho brasileiro contemporâneo. Sem dúvida uma aquisição significativa para o cenário de quadrinhos da capital. (CIM)

Encruzilhada – Marcelo d’Salete (Barba Negra, 2011, 120 p.): Este Encruzilhada é meu primeiro contato com o trabalho do quadrinista d’Salete. Sim, anos atrasado, e por isso mesmo quis começar com um trabalho fundacional da sua obra, algo que definiu seu estilo e imaginário. Paulistano, o autor se vale das contradições brutais da grande metrópole para expor, assim mesmo metendo o dedo na ferida, a desigualdade social e racial em diversos tipos de interações tipicamente brasileiras. Mas se engana quem pensa que isso vem assim, despejado ou descuidado, como se fosse um mero panfleto. Primeiro, o discurso possui muitas nuances e sutilezas, e o quadrinista se vale de diversos tipos de transições entre os quadros para construir mais que simplesmente uma história, mas também ambientação, odor, temperatura, aspecto. Em segundo lugar, como ele bem evidencia tirando sarro de Cidade de Deus, a violência está (muito) presente em suas histórias, mas não é o foco de sua análise. Não se trata de cosmética aqui. Sua análise social atinge aspectos psicológicos, econômicos e afetivos.

Além disso, d’Salete é também um esteta. Encruzilhada são contos curtos que vislumbram situações de ostensivo constrangimento à população negra. Um menor infrator é espancado pela polícia. Uma vida é tirada às custas de um celular que roda de mão em mão. Um DVD pirata é roubado e um homem preso por engano. A violência, porém, está nos detalhes perniciosos das relações. Neste ambiente, seu assassino pode ser seu primo, e o motivo um objeto de consumo descartável. D’Salete examina estas situações com elegante esquadrinhamento das cenas. São comuns citações ao cinema e a baluartes do capitalismo. O teor do discurso aparece muito em marcações discretas, grafites, paisagens urbanas.

O volume de informações, inclusive, é grande e por vezes as narrativas ficam embaçadas, confusas. D’Salete fragmenta os corpos, pensa planos e páginas oblíquas, efetivamente erige as cenas pelo avesso da narrativa tradicional.Encruzilhada é obra de mestre, que demonstra profundo entendimento do ato de extrair sentido das histórias, deixando arte, pensamento e discurso todos em evidência. Pequeno clássico recente da nossa historiografia quadrinística, ao lado de nomes como Rafael Coutinho e Marcello Quintanilha, que primam por abordagens parecidas. Li a tempo, ainda bem! O quadrinho foi relançado pela Veneta em 2016. (CIM)

Rapidíssimas (zines):    

Apnéia – Ina (Independente, 2017, 8 p.): Este é um lindo trabalho gráfico (delicado, poético, silencioso) que evidencia o potencial dos quadrinhos como pura sinestesia, como arte visual que mira os sentidos, que dissocia a narrativa de uma função meramente denotativa. Trata-se da quadrinização, em singular lápis azul, de um homem mergulhando com uma baleia. Leva-se um minuto para ler. Reverbera-se na cabeça por muito mais tempo. (CIM)

Compartilhe Comigo e Hey! Look Around! – Renata Rinaldi (Tinta de Raposa, 2016 e 2017, 10 p. e 12 p.) – Há algum tempo que devemos uma apreciação melhor do trabalho da brasiliense Renata Rinaldi, que vem pondo suas patas de raposa também em cenário nacional (Pagu Comics; concorreu ao HQMix, etc.). Estes dois zines são boa amostra do potencial do seu trabalho. As ilustrações, também em estilo shoujo, só melhoram: ela dosa bem influências de ocidente e oriente e, assim como a resenha de cima, faz narrativas mudas (que são puro quadrinhos). 

Compartilhe Comigo é muito bobinho, mas tem apelo para tweens e atrai pela bela capa laminada. Hey! Look Around!, por outro lado, já pode ser levada mais a sério. É uma linda (e bem escrita) fábula sobre desapego, amizade e espiritualidade. Isso tudo em dez páginas cheias de bons recursos em HQ, o que nos faz pensar que a Renata está preparando seu melhor trabalho. Chega logo! (CIM)