MELHORES QUADRINHOS LIDOS EM 2017 - PARTE 2

Li muitos quadrinhos em 2017. Infelizmente, o clichê quantidade não reflete qualidade pode ser aplicado no meu caso. Apesar de ter lido muito material novo e algumas velharias, confesso que tive dificuldades em encontrar gibis que realmente merecessem fazer parte desta lista de melhores leituras. Sei lá. Talvez esteja ficando velho e chato, mas o fato é que não foram muitas as HQs que mexeram com meu coraçãozinho. Bem, isso já foi dito antes, mas a lista de leituras da equipe Raio Laser não tem necessariamente lançamentos do ano, mas gibis de qualquer época. Sim, sei que vocês estão acostumados com listas de gibis recentes, mas lamento informar que não tive tempo nem dinheiro para comprar tudo que saiu em 2017. E, mesmo que tivesse, duvido muito que faria algo diferente do que fiz. Acho um saco essa ditadura do novo e não consigo/quero ficar atualizado. Sorry, folks. Lembra que eu disse que estou ficando velho e chato? Então... (MMA)

Segue a lista, sem ordem de preferência:

PARTE 1

por Marcos Maciel de Almeida

1- Três Sombras - Cyril Pedrosa (Companhia das Letras, 2011): Eis um gibi que me ganhou pela capa. Assim que vi aquela floresta tenebrosa e o título misterioso, percebi que tinha sido fisgado pelo trabalho do francês Cyril Pedrosa. O enredo, entretanto, é bastante indigesto para pais, avós, tios e assemelhados: a tentativa desesperada de evitar a morte de um ente querido. Negação, fuga, dor e aceitação. Três Sombras é sobre tudo isso. Em planos de sequência primorosos – que se passam em locações tão diversas quanto originais - Cyril narra a corrida frenética de um pai numa disputa que ele não pode vencer. Seus adversários são as intrigantes - e incansáveis - três sombras do título.  O traço aparentemente simples de Pedrosa é enganador. Por meio de pinceladas leves, o autor transmite emoções profundas, inerentes a qualquer pessoa. Seus quadrinhos evocam uma melancolia endêmica do gênero humano, como se o peso da existência estivesse apoiado sobre nossas cabeças, à espera de qualquer descuido para poder desabar e acabar de vez com o martírio de viver. Poético, elegante, triste, mas nunca  enfadonho, Três Sombras mostra - num ritmo às vezes ofegante, às vezes preguiçoso - a vã obsessão humana em tentar fugir do inescapável. 

2- Novo Lobo Solitário - Kazuo Koike e Hideki Mori (Panini, 2017): Quem foi o cara que disse que um raio não pode cair duas vezes no mesmo lugar? Este cidadão certamente não leu o Novo Lobo Solitário, de Kazuo Koike. Mais de 40 anos após o encerramento da história de Itto Ogami - finalizada em 1976 - o lendário roteirista japonês retoma a saga do último integrante da família Ogami, Daigoro, a partir do ponto exato em que a série original havia terminado. Para a empreitada, Koike escalou Hideki Mori, que teve de encarar a barra de substituir o gigante Goseki Kojima. E o novato deu conta do recado, conseguindo fazer o impensável: chegar perto de replicar o talento e a técnica de Kojima, também responsável direto pela trajetória de sucesso do Lobo e seu filhote. Se Kojima é hoje reverenciado pelas sequências de ação vertiginosa, enquadramento cinematográfico e fotografia bela e diversa, Mori não ficou para trás e fez o dever de casa, deixando o espírito do velho mestre orgulhoso.  É lançamento caça-níquel? Tenho minhas dúvidas. Kazuo Koike já é lenda no Japão. Escreveu trocentos títulos e ministrou uma pancada de cursos de roteiro. Não é como se o escritor veterano estivesse com a conta de luz atrasada. Koike tem histórico de integridade e comprometimento com os fãs. Tanto é assim que, quando percebeu que seu gibi Samurai Executor - também feito em parceria com Kojima - não estava à altura do trabalho que vinha fazendo com o Lobo Solitário, decidiu matá-lo. E o fez no próprio gibi de Itto Ogami, como vimos em Lobo Solitário - 1ª série, da Panini, publicado em 2005. Por isso, acredito que, se Koike se sentiu impelido a dar continuidade à saga, foi porque ainda tinha algo a dizer. 

É claro que sempre haverá as velhas viúvas do mangá original que lamentarão o fato de que o novo trabalho estaria  corrompendo a obra anterior, que deveria ter sido mantida intocada e etc. Não dê ouvidos para tais lamúrias. Ignore as reclamações desse povo que não faz sexo. Pule de cabeça nos novos capítulos da saga de Daigoro, o garoto que tem os olhos de gelo e a capacidade de derreter os corações mais embrutecidos. 

3- O Mensageiro Verde-Cinza - O Spirou de Schwartz e Yann - Yann Le Pennetier e Olivier Schwartz (Sesi Editora, 2016): Nunca tinha lido nada do Spirou, importante integrante da Santíssima Trindade da BD franco-belga, ao lado de Tintim e Asterix. Bem, continuo sem ter lido nada. Ou quase. Explico. A série Spirou de... convida grandes expoentes e revelações da BD para reinventar o personagem clássico criado por Rob-Vel em 1938, mas consagrado por André Franquin cerca de uma década depois. Já teriam ouvido falar em algo parecido?  Sim, Sidney Gusman nunca escondeu que a série Spirou de... inspirou a criação das incontornáveis Graphic MSPs, que promovem o lançamento - no formato graphic novel -de versões repaginadas dos personagens do Universo de Mauricio de Sousa. No caso em questão, Yann jogou Spirou no meio de uma trama internacional em que o mensageiro de hotel e herói involuntário quase evita a II Guerra Mundial. Tudo isso com um toque de humor e aventura bastante espontâneos que honram a história e o legado do personagem. Prestes a completar 80(!) anos de existência em 2018, Spirou ainda é um ilustre desconhecido no Brasil, e a série Spirou de... é uma ótima porta de entrada para quem está interessado em conhecer mais sobre esse icônico personagem do quadrinho europeu.

4- 5/5 Working Class Heroes - Magenta King e Dalton Cara (Bimbo Groovy, 2013): Pense em seriados japoneses no estilo Changeman e Flashman. Agora imagina se esse troço prestasse. 5/5 é isso. Reinventando a fórmula tradicional dos supergrupos orientais, Magenta e Dalton criaram um universo realista e brutal, no qual a busca por uma vaga na equipe atrai pessoas mais interessadas em fama que em contribuir para o bem coletivo. Com diálogos afiados e arte fenomenal, a dupla mostra que não tem apenas química, mas verdadeiro talento de alquimista ao transmutar lixo asiático em ouro quadrinístico. A boa notícia é que esta dupla endiabrada passou a colocar uns teasers no Facebook que levam a crer que ainda veremos mais de 5/5. Tomara. Eis um conceito que parece promissor. Leia mais sobre aqui.

5- Cavaleiro da Lua vol. 4 e 5 – Jeff Lemire e Greg Smallwood (Panini, 2017): Existem personagens de HQ que vivem por aí, na mendicância, só esperando a oportunidade de serem escritos por um argumentista minimamente decente. E o Cavaleiro da Lua é um deles. Primeiro com Warren Ellis, em Cavaleiro da Lua vol 1 (2015), e agora com Jeff Lemire, o herói lunático consegue sair das sombras para matar a saudade de velhos e novos fãs. Com o auxílio do mais que competente Greg Smallwood, Lemire explora novas facetas da loucura do personagem, que desta vez vai parar num sanatório. Sim, sei que a tecla da loucura já foi batida quinhentas vezes, mas os bons escritores também são os caras capazes de contar a mesma história de um jeito diferente, não é mesmo? A fase de Lemire inclui os volumes 4 e 5 do Cavaleiro, sendo necessária, ainda, a publicação do sexto volume, para concluir a saga. Que bom que tiraram o personagem da geladeira. Finalmente algum editor da Marvel deve ter se tocado que estava na hora de burilar o maior tesouro da editora: a riqueza de personagens e de locações acumulados ao longo das quase seis décadas de existência da Casa das Ideias. É aquela coisa: por que ficar insistindo no enésimo clone do Wolverine se você tem personagens do quilate de Mortalha, Valete de Copas e tantos outros morando no Limbo? Makes no sense, bro.  Um dos bons conceitos trabalhados por Lemire é o de que as identidades do Cavaleiro precisam de tempo para se “sedimentar”. No vol. 5, por exemplo, há o surgimento de nova personalidade, reflexo da necessidade do herói de se adaptar às novas situações que encontra. O problema é que, se a nova personalidade não estiver suficientemente enraizada na realidade, pode se desintegrar sem deixar vestígios. Retirado de sua tumba, o Cavaleiro recebeu tratamento vip na Marvel norte-americana, com direito a tosa, spa rejuvenescedor e escova progressiva. O resultado é esse aí. HQ de respeito, com roteirista de peso e personagem repaginado para os novos tempos.

6- Ultraforce # 0-5 – Gerard Jones e George Perez (Malibu, 1994): Quem precisa de mais uma equipe de super-heróis? Eu. Especialmente se ela tiver boa dinâmica de grupo, vilões minimamente interessantes e o melhor desenhista para gibis do tipo, como George “Me gustan camisetas havaianas” Perez. Lançado em 1994, o título Ultraforce congregava os principais personagens do Ultraverso da Malibu Comics, uma das várias editoras de menor porte existentes no mercado norte-americano dos anos de 1990 dedicada ao ramo dos super-heróis.  A duração da Malibu foi efêmera. No mesmo ano de lançamento da Ultraforce, ela foi comprada/fagocitada pela Marvel, após breves 8 anos. Este tipo de prática predatória não foi criada pela Casa das Ideias, mas isto não exime a gigante dos comics de críticas, dado que tal política somente empobrece o mercado de quadrinhos. Mesmo tendo a Marvel prometido não descontinuar os títulos que havia comprado, o fato é que, após alguns meses, todas as revistas do Ultraverso foram canceladas. Uma pena. Pior para o mercado como um todo e principalmente para os fãs, que perderam alternativas - boas e ruins - de compra. Mas bem, pelo menos Ultraforce foi bom enquanto durou. Tudo bem que Gerard Jones tenha bebido na manjada fonte dos X-Men de Claremont e montado uma equipe formada por seres superpoderosos que juraram defender uma população que os teme e odeia. Apesar disso - ou talvez por essa razão -, conseguiu conferir interação consistente ao reunir medalhões que, como em todo bom gibi de supergrupo, se detestam. A equipe tinha bastante potencial, mas a compra da Malibu pela Marvel, aliada à crise que assolou o mercado de HQs nos EUA em 1994, melou o desenvolvimento das histórias, que passaram a incluir personagens mala-sem-alça do Universo Marvel tradicional, como Cavaleiro Negro e Sersi. E como resultado dessa política de remanejamento intraeditorial de dejetos radioativos, não teve como a Ultraforce sobreviver. 

7- Avengers: The Serpent Crown HC – Steve Englehart e George Perez (Marvel, 2012) e Squadron Supreme TPB – Mark Gruenwald e Bob Hall (Marvel, 1997): O Esquadrão Supremo é um dos grupos mais fodarásticos da Marvel. Especialmente porque é formado pelos personagens principais da Liga da Justiça, com a exceção do Batman, cujo homólogo marveliano – Nighthawk – nunca teve muito espaço nas histórias originais do grupo. Embora já tivessem aparecido em outras edições de Avengers, é apenas na Saga da Coroa da Serpente que o grupo realmente debuta em grande estilo. Foi nessa edição que os fãs babões – como eu – puderam ter uma ideia de como seria o embate entre Liga e Vingadores. E sim, a SCS é o suprassumo do gibi de herói e não sente nenhuma vergonha disso. Assim, há profusão de momentos impagáveis e ridículos, como não poderia deixar de ser. Uma das melhores cenas neste sentido é o surgimento da então novíssima vingadora, Felina, que achou que podia se tornar super-heroína simplesmente porque sabia surfar e tinha praticado esportes na juventude. Paralelamente à história principal, há uma aventura surreal do Thor e da Serpente da Lua, que voltam no tempo diretamente até a época do Velho Oeste (!) do Universo Marvel para resgatar o Gavião Arqueiro. E o retorno de Thor para o presente é um momento de virada para o personagem. Convencido pela Serpente da Lua a não mais “pegar leve” com os inimigos – coisa que costumava fazer para que os duelos em Midgard ainda tivessem alguma graça – o Deus do Trovão roda a baiana e deixa todo mundo com o cu na mão. Como se isso não bastasse, o gibi também é altamente recomendado pelo fato de apresentar a SCS em sua integralidade, sem os cortes safados da Editora Abril.

Quanto ao Esquadrão Supremo de Gruenwald, trata-se de um gibi mais sério, quase cabeça, que pensa a realidade super-heroística em tempos pré-Watchmen e Authority. No gibi, Hyperion e seus colegas tentam construir a utopia perfeita para os cidadãos dos EUA, ainda que, para tanto, tenham de empregar métodos condenáveis, como lavagem cerebral contra criminosos. Temas como autoritarismo e ditadura da minoria são tratados de maneira hábil por Gruenwald, que reconhecia o trabalho na série como o melhor de sua carreira. Não é para menos. O falecido escritor urdiu uma trama envolvente, com diversos pontos de tensão que se acumulam e desembocam num desfecho que não tem nada de anti-climático. Embora não seja nenhum gênio das HQs, Gruenwald conhecia as regras básicas para a elaboração de boas histórias e não deixou pontas soltas, resolvendo os principais conflitos e subtramas do roteiro. Duro ter de admitir, mas o escritor “roda presa” do Capitão América conseguiu fazer uma história competente e intrigante, venerada por gente do calibre de Alex Ross e Kurt Busiek. Se você é fã do Esquadrão Supremo, não deixe de ler as duas edições acima. Se ainda não é, ainda há tempo para se redimir de seus pecados. 

8- Forming – Jesse Moyniham (A Bolha, 2013): Soap-opera especial que veio desembocar na Terra, com direito a viagem no tempo, incesto, contatos imediatos do 5º grau e conflitos milenares. Cortesia de Jesse Moyniham, um dos responsáveis pela animação A Hora da Aventura. Imperdível. Saiba mais aqui.

9- Meu Amigo Dahmer – Derf Backderf (Darkside Books, 2017): Sem dúvidas, um dos gibis mais perturbadores deste e dos anos recentes. Conta, sob o ponto de vista privilegiado do autor, o convívio nos tempos de High School com aquele que teria a infâmia de se tornar um dos serial killers mais odiados de todos os tempos – Jeffrey Dahmer. Em tom documental/pessoal, Backderf narra a experiência de viver ao lado daquele sujeito que você sabe que é esquisito, mas passa longe de imaginar os anseios perversos que o motivam. O gibi não é tão bem desenhado. As imagens remetem a um Don Martin (Revista MAD) piorado, mas isso não é problema algum. Ao contrário. Por meio de estilo próprio, o autor conseguiu manter a pegada que uma obra de tamanho impacto pessoal necessitava. Outro ponto de destaque é a qualidade gráfica presente na publicação da Darkside Books. Gibizinho capa dura, papel especial, edição de luxo e o escambau. Coisa fina, mano. 

Embora tenha um desenvolvimento por vezes arrastado, Backderf pinta um panorama bastante fidedigno da vida escolar numa pequena cidade dos EUA no final dos anos de 1970. Interessante pontuar aqui que se tratam apenas dos anos prévios ao início da “carreira” de Dahmer como assassino serial. Se quiser saber maiores detalhes sobre os crimes dele, será preciso apelar para a internet. Neste caso, vá por sua conta e risco, camarada. Só não esqueça de levar o saco de vômito. Pensando bem, talvez o ritmo da narrativa não seja arrastado coisa nenhuma. Na verdade, o autor deve ser elogiado por sua habilidade em retratar o clima de marasmo e tédio presentes na comunidade escolar que frequentou, sensação que certamente é partilhada pelos milhões de estudantes espalhados pelos cinco continentes. 

Meu Amigo Dahmer é aquele gibi que você pensa duas vezes antes de pegar, porque sabe que não sairá o mesmo após a leitura. Rola aquele silêncio provocador pouco antes da abertura das páginas, no melhor estilo: “Será que eu realmente deveria estar fazendo isso?”. Se bem que, no fundo, você sabe que não há escapatória. Você vai encarar o desafio. E então... Perdeu, playboy!

10- Justice League Europe # 15-19 – Keith Giffen/Gerard Jones e Bart Sears (DC Comics, 1989): Admito que sempre fui um dos caras da turma “do contra”. Adoro apreciar as coisas que ficam meio que escondidas quando todos estão olhando para uma única direção. Com Liga da Justiça, não foi diferente. Enquanto todos louvavam (com razão) a Liga da Justiça América de Giffen e DeMatteis, eu me divertia mais com as aventuras dos “primos pobres”, ou seja, a Liga da Justiça Europa. O mix de personagens era delicioso. O Flash Wally West safadão, a liderança insegura do Capitão Átomo, o tom debochado/melancólico do Metamorfo e o fato – bastante realista, por sinal – de que todos queriam comer a Mulher-Maravilha. Junte-se a estes ingredientes um desenhista no auge da forma – Bart Sears – e o resultado não poderia ser menos que fenomenal. O estilo de Sears, especialista em desenhar seres metálicos e robotizados, caiu como uma luva no gibi, a tal ponto que considero, humildemente, suas representações do Capitão Átomo e do Soviete Supremo como as versões definitivas dos personagens até hoje.  Depois de uma sequência memorável (JLE # 1-14), em que acompanhamos as tentativas hilárias e infrutíferas do Capitão Átomo em liderar uma equipe totalmente disfuncional, chegamos ao momento mais louco e apoteótico do gibi, numa história chamada “O Vetor Extremista”. Nela, somos apresentados a um grupo de malfeitores – Os Extremistas – que homenageia/plagia os grandes vilões do Universo Marvel, como Doutor Destino e Magneto, entre outros. A ideia dos caras é simples: ou a Terra se rende ou eles vão acionar todo o arsenal nuclear do planeta. O problema é que a maioria dos membros da LJE tem poderes de dar pena, sendo necessária a criação de uma estratégia de ataque decente para que o grupo não passe mais uma vergonha. A história também conta com a participação de alguns dos “Vingadores” da DC, na verdade os Campeões de Angor, na forma de Gaio (Jaqueta Amarela) e Feiticeira Prateada (Feiticeira Escarlate), agora membros efetivos da LJE. 

Além dos diálogos afiados e dos desenhos primorosos, há easter eggs interessantes, como a aparição do desiludido Tio Mitch, criador de um parque de diversões cujo staff – totalmente formado por robôs – é incapaz de aceitar o fato de que possam existir pessoas que não têm o menor interesse em estar 100% anestesiadas por uma felicidade artificial. Trata-se, na verdade, de uma bela homenagem/sacaneada no legado do velho Walt Disney.  Muito já foi dito sobre a fase da Liga da Justiça de Keith Giffen. Não tenho muito a acrescentar. Ler esta fase é como observar aquele grupo de amigos que já está junto há muito tempo e adora se sacanear. A única diferença é que eles são super-heróis. Lutam contra o crime e depois vão tomar uma. Quer dizer, tomariam uma se os gibis da época não fossem tão politicamente corretos. E esse clima de descontração é proveniente da mente insana do fanfarrão Keith Giffen, louco para causar. E se a Liga da Justiça América já recebia a maior parte da atenção, Giffen podia esculhambar mais no título irmão, para nossa alegria.

Forming: eram os deuses alienígenas?

por Marcos Maciel de Almeida

Já sabia, há tempos, da existência da Editora A Bolha, do Rio de Janeiro. Nunca tinha, entretanto, adquirido nada que eles haviam publicado. Tudo mudou quando compareci à terceira edição da Dente, feira de publicações independentes, em Brasília. Estava lá um stand da editora cheio de belezinhas prontas para serem degustadas. Eram muitas opções, mas a grana estava curta. Decidido a não deixar a banquinha de mãos vazias, mas perdido em meio a tantas HQs bacanas e desconhecidas, resolvi pedir ajuda a quem manja do assunto. E ninguém melhor para isso que a própria fundadora d'A Bolha, Rachel Gontijo, também presente na feira. Ela me indicou Forming vol 1. O legal foi que já estava de olho no gibi, uma edição capa dura classuda, com cores que berravam psicodelia. Obrigado, Raquel. Você juntou a fome e a vontade de comer.

Alguns momentos antes, ao participar de um debate acerca do mercado de HQ independente no Brasil, Rachel havia falado sobre algumas de suas motivações para criar e continuar trabalhando com A Bolha. Um dos objetivos da editora é mostrar que existem muitos outros autores interessantes na cena quadrinística nacional e internacional, que não chegam ao grande público em razão das condições predatórias do mercado de publicações brasileiro. Dificuldades como obtenção de crédito financeiro, margens extorsivas dos distribuidores (leia-se Amazon) e a própria estrutura do mercado editoral brasileiro - que anda de mãos dadas com as chamadas "livrarias-shopping centers" – impedem o florescimento de uma cena que crie espaço para as variadas formas de expressão artística, especialmente as autorais, dentro e fora do universo dos quadrinhos. A Bolha vai na contramão de tudo isso. Busca, portanto, garantir a existência de áreas de convivência pacífica para todos: sejam grandes, pequenos, azuis, amarelos ou verde-verdinho-marrons.  O esforço de Rachel tem valido muito a pena. Desde sua criação, A Bolha já publicou quadrinhos de diversas vertentes, disponibilizando HQs estranhas, inconformistas, vibrantes, mas – sobretudo – necessárias. São mais de trinta petardos.

Forming é um deles.

Criado por Jesse Moyniham, um dos artistas responsáveis pelos storyboards da tresloucada animação Hora da Aventura, Forming é a delirante saga de uma sociedade humanoide oriunda do cruzamento de alienígenas com humanos. O problema é que o patriarca extraterrestre, Mithras, revelou-se um mala sem alça e o restante da família resolveu escorraçá-lo da face da Terra. A narrativa enfoca vários momentos importantes para a formação dos personagens, como os quebra-paus familiares do presente e a chegada dos visitantes das estrelas em priscas eras. Em clima despretensioso, Moyniham vai tecendo uma complexa genealogia de personagens às voltas com destinos ora bizarros, ora prosaicos. Tem de tudo aqui. Viagem no tempo, seres mitológicos, personagens bíblicos, organizações alienígenas com funcionários relapsos, incesto e pancadaria. É aquele gibi que você vai lendo torcendo para não acabar, dando rápidas olhadelas no número de páginas restantes e suando frio quando percebe que o fim está próximo. 

Mithras

Forming é um universo instigante e conta com um elenco surpreendente. Adão e Eva, soldados hermafroditas, gnomos, divindades galáticas e guerreiros de sovaco raspado da quarta dimensão participam de uma epopeia histórica com ares de novela mexicana. E o drama adquire proporções cósmicas quando deuses demasiadamente humanos passam a interagir em pé de igualdade com seus adoradores. Criadores e criaturas passam, então, a dançar uma valsa sórdida que poderá trazer – e trará – consequências desastrosas para todos os envolvidos.  Usando e abusando de grades de 9 quadros, o autor desvela uma aquarela de cores que deixaria Albert Hoffman, criador do LSD, com um sorriso nos lábios.

Um dos grandes temas que perpassa o gibi é o relacionamento humano com a religião. De forma sutil, mas constante, o autor suscita diversos questionamentos de cunho espiritual, como por exemplo o fato de que as entidades destinatárias da adoração humana podem não ser flor que se cheire. Outra questão levantada é a adoração religiosa cega e automática, livre de reflexões, que oprime qualquer tipo de manifestação que aponte novas direções e ideias.

Diagramação com 9 quadros. A mais comum em Forming

Pancadaria divina

Navegando pelas páginas de Forming pude compreender mais claramente a ideia por trás d'A Bolha. Na junção de formatos aparentemente incongruentes, como o independente e o luxuoso, a editora quebra os tabus que tanto restringem a diversidade das produções em uma forma de arte que é – essencialmente – transgressora. A mensagem aqui é que tem pra todos. Pode ter gibi indie com capa dura. Pode ter com papel bom. Pode ser colorido. E se não for assim, ninguém tem nada a ver com isso. 

Forming vol.2 deve ser lançado até o segundo semestre de 2018. Aguardo ansiosamente. Enquanto isso, vou dar uma vasculhada nos outros títulos d'A Bolha Editora. Prevejo novas sessões de entretenimento de alta qualidade. 

Teaser para Forming volume 2. 

Pequeno guia Raio Laser para os webcomics






















Dois fenômenos interessantes se agregam neste post. Primeiro, o enfoque nos webcomics, um interesse meu já com certo tempo, mas que não tive tempo de desenvolver autonomamente. Se há algo que, dentro da ideia de "quadrinhos além", pode se inventariar para uma transformação do meio das HQs e gerar formas de expressão híbridas, isso já está expresso no presente dos webcomics. O que nos leva ao segundo fenômeno auspicioso: a estreia do nosso querido leitor, consumidor apaixonado e dedicado de todo espectro de atuação dos quadrinhos, o jovem ilustrador Thales Lira. Como eu sabia que, além de pegada como arqueólogo das HQs, ele curtia explorar este ambiente inovador dos webcomics, convidei-o, após ler textos seus de boa qualidade, para escrever este pequeno guia para nós. Também conferi tudo que ele indicou e acho que vale um baita debate lá caixa de mensagens. Thales está para se formar em artes visuais na Unicamp e agora cabe decidir o que pode impulsioná-lo mais: se a teoria ou a prática. Greetings! (CIM)

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por Thales Lira

Falar de webcomics hoje está longe de ser algo inovador, já que diversos artistas serializam e publicam trabalhos na internet, chegando a ser quase uma norma para qualquer aspirante a quadrinista: “Tenha um site, gera conteúdo, atraia pessoas para o seu trabalho” seria a regra não-escrita.

Desde que Scott Mcloud apontou para as possibilidades da web no desenvolvimento das histórias em quadrinhos, diversos autores já se aventuram nesse terreno. Alguns usando como uma extensão das formas tradicionais como serialização de tiras, algo típico de jornais, outros explorando as possibilidades do meio, como a famigerada tela infinita, uso de imagens já prontas (clip-art, os “memes”) e alguns casos até animação.

O que se pretende aqui é fazer algumas indicações de webcomics que considero interessantes no momento. Como todo apontamento, ela está sujeita a gostos pessoais, fenômenos astrológicos e desvios de caráter, portanto nunca dará conta de toda extensão e diversidade que figura na rede. Vamos então às indicações, em uma ordem arbitrária sem hierarquia de valor:


Hark! A Vagrant! - Kate Beaton:  Apesar do tema de sua série ser algo que muitos considerariam de nicho - humor geralmente com base histórica ou de personagens literários - a abordagem de Kate consegue fazer rir sem precisar ter diploma em História. Recentemente compilada num volume pela Draw & Quarterly, sua obra apresenta uma interessante justaposição de diálogos modernos (geralmente falas de um jovem suburbano norte-americano) com figuras de um passado já distante. Esse anacronismo é realçado pelo seu traço que ecoa ilustradores da virada do século passado, mas por um viés mais cartunesco, quase rascunhos. Tudo isso pode parecer formulaico num tempo em que é comum ver mashups dos mais díspares (Orgulho e Preconceito e Zumbis me vem à mente), mas a obra de Kate se destaca por permanecer fiel até certo ponto às suas fontes históricas e não cair no mero pastiche pop. 

Emily Carrol: Emily, assim como Kate, demonstra influências de ilustradores no seu trabalho, mas, em seu caso, isso deriva mais do fato de a ilustração ser sua fonte primária de trabalho. Tendo começado recentemente a publicar suas HQs online (os primeiros trabalhos datam de 2010), sua obras vêm sido recebidas com entusiasmo pela comunidade online. Geralmente suas histórias se ambientam no passado, trazendo os perigos e o terror que tempos antigos evocam. Emily também se utiliza do formato da imagem na web e suas possibilidades (links e imagens que se podem se deslocar tanto verticalmente quanto horizontalmente) para potencializar suas narrativas. Destaque para suas histórias The Prince & The Sea, His Face All Red e Margot's room

2001 - Blaise Larmee: Uma das figuras mais controversas do cenário alternativo norteamericano atual, Blaise parece operar com mais proximidade com o mundo das artes visuais do que com o mercado de HQs. O modus operandi de Larmee pode ser visto como uma forma conceitual de fazer quadrinhos, disposto a alargar conceitos de maneira análoga aos artistas da década de 60/70. 2001, sua webcomic, parece não negar sua condição de imagem virtual num meio virtual. Os personagens interagem num fundo extremamente minimalista que muda gradualmente no decorrer da história (que é condicionada pela barra de rolagem), suas falas são representadas em uma fonte claramente inspirada nas primeiras usadas em computação. Em certo ponto, um dos personagens chega a dizer: é esse o seu espaço? Isso parece ser o ponto central na obra: como narrar uma história virtual em um ambiente virtual. 


What Things Do: “Nós queremos ler quadrinhos, bons quadrinhos, muitos deles e todo tempo” escreve Jordan Crane na descrição do seu site. What Things Do compila diversos trabalhos, de um grupo seleto de artistas alternativos norteamericanos, trazendo obras antigas, inéditas e algumas serializações. Dentre as HQs disponíveis, merece destaque a obra de Michael Deforge (situações surreais, horror, tentáculos e muitas secreções), a série Barack Hussein Obama de Steve Weissman (aventuras bizarras do atual presidente dos EUA) e The clouds above, do próprio Jordan Crane, que já foi editada em livro pela Fantagraphics e se adequou muito bem ao formato de leitura vertical.

Electrocomics: Criado pela artista Ulli Lust, que visitou recentemente o Brasil na RioComicon, Eletrocomics funciona com uma plataforma para publicação de ebooks, todos disponíveis de forma gratuita e mantidos por meio de doações.  O site possui um rol de artistas internacionais variado (grande parte europeu) com destaques para as obras de Olivier Schrauwen (editado este ano pela Fantagraphics), Amanda Vähämäki, Frédéric Coche e da idealizadora Ulli Lust (que possui disponível a serialização do Today is the last day of  your life, ganhadora do prêmio revelação em Angoulême).


Forming Jesse Moynihan: A vida na Terra começou com um alien rebelde que decidiu tomar o planeta como seu, contrariando as ordens que lhe foram designadas. Com o tempo sua família cresce e conflitos nascem entre os seus descendentes, antigos empregadores, os habitantes originais e entidades de outros planos. Esse é uma parte do enredo da webcomic criada por Jesse, que vem sendo serializada desde 2009 e esse ano ganhou uma compilação pela editora britânica Nobrow. Com um traço que lembra a linha clara francesa com um esquema de cores vivo e berrante aliado a um humor às vezes absurdo, a obra de Jesse segue como umas das séries mais estranhas e fascinantes de se acompanhar na rede. 

Como dito anteriormente, essas escolhas dificilmente encompassam toda a diversidade do ambiente virtual. Inúmeros trabalhos extremamente interessantes como as serializações no site do IG, os trabalhos de Ryot, ou 2101,de Jason Overby, poderiam figurar na lista acima. E, para os interessados em se aprofundar na história dos webcomics, recomendo a coluna No One Knows You’re A Dog (uma referência a um famoso cartum da New Yorker que diz que, na Internet, ninguém sabe que você é um cachorro) do Comics Journal, que possuiu bastante material historiográfico e boas recomendações.