O MELHOR DO FESTIVAL DE ANGOULÊME 2024

por Bruno Porto

O 51⁰ Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême aconteceu de 25 a 28 de Janeiro de 2024 na França com sua tradicional programação incrível de exposições, encontros e lançamentos de todos os tipos de quadrinhos. Os números oficiais mencionam a presença de 1500 quadrinistas e mais de 200 mil visitantes, e a percepção não é muito distante disso. Não me pareceu tão cheio quanto o de 2018 — a primeira edição a que fui — mas o sábado continuava deixando intransitáveis os dois principais espaços de venda e autógrafos de HQs, os pavilhões Le Nouveau Monde, de editoras independentes e afins, e Le Monde des Bulles, onde se concentram as maiores editoras franco-belgas. Via-se muita gente pelas ruas pois, embora fosse inverno na Europa, o clima esteve ótimo, com a temperatura chegando a 15⁰C durante o dia e não muito abaixo de 7⁰C durante a noite.

Uma das regras de ouro do festival é resignar-se que não será possível fazer tudo que se quer, ou mesmo o que se planeja com a maior antecedência. Só o livreto da programação oficial já enumera mais de vinte exposições e cento e cinquenta encontros — entre mesas redondas, visitas guiadas, palestras, conferências e apresentações — espalhados por trinta locais da cidade. Isso sem contar a programação do Off Festival, e a do Off Off Festival, as dezenas de sessões de autógrafos realizadas nas livrarias e pop-up stores, e pelo menos uma dúzia de microexposições em galerias, restaurantes e lojas. Editores, licenciadores, agentes e quadrinistas tem também suas próprias conferências e mesas-redondas voltadas para o aspecto comercial do mercado.

Mesmo não conseguindo fazer tudo que queria — mais uma vez não consegui assistir a dupla Juan Díaz Canales & Juanjo Guarnido falando sobre Blacksad, nem visitei a área dedicada aos mangá (apenas estive na cerimônia de abertura, que aconteceu lá, antes do início do festival) — para mim foi umas das melhores edições a que já fui. Dentro deste recorte parcial e pessoal, comento, a seguir, alguns destes destaques.

MELHOR EXPOGRAFIA

Ocupando o primeiro andar do Vaisseau Moebius, a mostra L'Arabe du Futur, Oeuvre-Monde, dedicada ao ganhador do Gran Prix de Angoulême 2023, Riad Sattouf, era uma tradução plástica de sua série mais popular, O Árabe do Futuro, levando os visitantes a literalmente adentrar aquele universo gráfico. Focada nas referências do autor, buscava contextualizar as épocas retratadas — principalmente entre as décadas de 1970-1990 — pecando, no entanto, por uma certa ausência de originais de suas obras. A imersiva montagem vinha assinada pelo Studio Golem, que já realizara outras belas exposições no festival, com as mostras dedicadas à obra de Robert Kirman (2020) e aos 80 anos do Batman (2019), e no Parque Asterix (que visitei em 2021).

MELHORES TRABALHOS EXPOSTOS

Aqui considerei um empate entre L'Art de Courir par Lorenzo Mattotti, no Museu de Angoulême, e Adolescents en Guerre, no Museu do Papel. A primeira reúne cem desenhos espetaculares à lápis, pastel e nanquim, entre outras técnicas que o veterano quadrinista italiano domina com indiscutível maestria, retratando pessoas correndo, principalmente em competições esportivas. A mostra integra o programa da Olimpíada Cultural, evento nacional que acontecerá durante todo este ano dos Jogos Olímpicos de Paris, em diversas modalidades artísticas.

Os desenhos estão agrupados em séries de quatro a oito ilustrações que exploram diferentes momentos do ato de correr: a sintonia muscular em um grupo diverso de atletas, a reação explosiva ao cruzar a linha de chegada, a construção de uma relação com a estrada em que se corre, a altivez da chama olímpica transportada através de uma cidade às escuras. Em cada uma das paredes pode até ser possível eleger um trabalho favorito, mas não é tarefa fácil diante deste conjunto impressionante.

Os expressivos desenhos de Mattotti no entanto igualam-se em beleza com os originais da exposição Adolescents en Guerre, reunindo artes de três álbuns da Éditions Dupuis que tem em comum a presença de jovens em conflitos armados. São eles o recém lançado Le Lierre et l’araignée, relato real sobre um grupo de adolescentes — entre eles o avô do autor, o quadrinista Grégoire Carle — que se juntou à resistência nos arredores de Strasbourg durante a Segunda Guerra; Le combat d’Henry Fleming, quadrinização do francês Steve Cuzor para o romance O emblema vermelho da coragem, de Stephen Crane, sobre um jovem recruta durante a Guerra Civil estadunidense; e o segundo volume da premiada série Madeleine, Résistante, relato autobiográfico de Madeleine Riffaud (co-escrito com Jean-David Morvan com arte de Dominique Bertail) sobre sua aventuras como membro da resistência em Paris, aos 16 anos.

ORIGINAIS DE DOMINIQUE BERTAIL E DE GRÉGOIRE CARLE EXPOSTOS

Distribuídas em espaços expositivos que permitem uma imersão em cada um dos livros, as pranchas permitem que se assimilem os distintos momentos narrativos das histórias, que são construídos em ritmos diferentes mas sempre, sem exceção, deslumbrantes. Aqui, no entanto, a forma sobrepõe-se à função pois, apesar do um fio temático, Adolescents en Guerre faz mais sentido como ação promocional da Dupuis do que como reflexão para a questão dos horrores da guerra, ou o que o valha.

PÁGINA ORIGINAL DE LE COMBAT D’HENRY FLEMING DE STEVE CUZOR

Por outro lado, tecnicamente falando, L'Art de Courir não é uma exposição de quadrinhos: são ilustrações que dialogam com textos da escritora Maria Pourchet e da curadora Marguerite Demoëte… mas assim como em relação a exposição da Dupuis, eu não ligo. Ambas são compostas por trabalhos de grande qualidade artística, que inclusive podem ser levados para casa: tanto o catálogo de Mattotti como os álbuns da Dupuis — estes, com sessões de dèdicaces — estavam à venda nos locais das mostras. Felizmente, o bem produzido catálogo de L'Art de Courir não seguiu a tradição das demais exposições do Festival, que costumam ter catálogos bem caros e apenas meses depois do final do evento (esse custa cerca de €30). Isso é tão frustrante que até me pergunto se não seria estratégia para que os visitantes não gastem dinheiro (e espaço na mala) com catálogos e sim com os próprios quadrinhos…

MELHOR CURADORIA

Outro empate aqui — entre duas exposições montadas no Musée de la Bande Dessinée — que se destacam pela seleção de trabalhos expostos. O museu abriga 18 mil artes originais de histórias em quadrinhos, além de milhares de publicações raras e todos os tipos de objetos ligados a este universo. Embora a exposição do acervo permanente tenha sérios problemas de ergonomia, costumam obter belos resultados quando botam este acervo para jogo à serviço de um tema — como aconteceu com as mostras Picasso e os Quadrinhos (2021) e De Popeye à Persépolis: Quadrinhos e o Cinema de Animação (2022). Em CROQUEZ! — que no contexto pode ser traduzida como “Abocanhe!” — a curadoria de Marine Bidaud e Mathieu Charrier trata da presença da comida nas HQs.

A ENTRADA DA EXPOSIÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DA IMAGEM DO CARTAZ, DE AUTORIA DE POSY SIMMONDS, VENCEDORA DO GRAN PRIX D’ANGOULÊME 2024.

Bem conduzida, a exposição é um desbundante desfile de todos os tipos de suportes — originais, publicações, rascunhos, embalagens, anúncios — explorando os mais diferentes aspectos narrativos de comidas & bebidas em seus ambientes (cozinhas, restaurantes, supermercados, à mesa), indo de personagens conhecidos por sua relação com pratos específicos — Obelix e seus javalis, Popeye e seu espinafre, Mafalda e sua arquiinimiga A Sopa — até capas de revistas como The New Yorker e Fooding France ilustradas por quadrinistas como Chris Ware, Adrian Tomine e Tom Gauld.

A principal qualidade desta antologias que não se dedicam apenas a um autor, personagem ou publicação, é a de não ficar restritas apenas a leitores de quadrinhos — embora haja peso no argumento de que na França todos o são. Provocando um contraponto, na sala ao lado — circundando a exposição permanente do museu — foi montada uma versão expositiva da edição comemorativa dos 77 anos da antologia semanal Journal Tintin, lançada em outubro do ano passado com quase 400 páginas.

A revista em si não existe desde 1988 — com o nome Tintin Reporter durou até 1993 — mas foi de extrema importância para a HQ franco-belga, tenho publicado nomes como Edgar P. Jacobs, Albert Uderzo & René Goscinny, Franquin, Greg, Hugo Pratt, Willy Vandersteen, Tibet, William Vance, Jacques Martin e Hermann, entre outros. Criada em 1946 por Raymond Leblanc, era comandada por Hergé, que semanalmente contribuia com uma página das aventuras de seu Tintim, reunidas posteriormente em álbuns. Com o slogan “a revista para jovens de 7 a 77 anos”, chegou a ter tiragens de 600 mil exemplares e a publicar HQs de todos os gêneros.

Além das edições francesa e belga (que era chamada Kuifje, como o personagem é conhecido na Bélgica flamenga e Holanda), ganhou a partir dos anos 1950 edições próprias na Holanda, Suiça e Canadá. Nas décadas seguintes, foi a vez de Portugal (1968-1983), Brasil (apenas vinte e seis números, publicados concomitantemente aos portugueses), Grécia (1969–1972) e Egito (1971-1980).

O CLÁSSICO BLAKE & MORTIMER DE EDGAR P. JACOBS REVISITADO POR LEWIS TRONDHEIM.

Para a edição comemorativa, foram selecionados personagens representativos da trajetória do lendário periódico, reinterpretados por quadrinistas contemporâneos. Estavam expostas as artes originais destas recriações, bem como exemplares da revista — oriundos do acervo do museu — onde os originais haviam aparecido na capa. Neste diálogo de gerações, os artistas convidados mantiveram seus estilos próprios — pelos quais foram convidados a integrar a homenagem — mas se mostraram reverentes com o material original.

O REPÓRTER RIC HOCHET E OS IRMÃOS BOB & BOBETTE GANHAM VERSÕES DE DANY E CLARA LODEWICK.

A hercúlea seleção da exposição já fora feita pelos editores da publicação, mas mesmo assim deu origem a uma montagem eficiente, que foi acrescida de reproduções de páginas das HQs da revista, QR Codes e biografias dos quadrinistas do passado e do presente, em um amplo resgate de memória afetiva nos quadrinhos.

MELHOR EXPOSIÇÃO QUE NÃO É EXPOSIÇÃO

Mencionei o aspecto imersivo tanto da cenografia de L'Arabe du Futur, Oeuvre-Monde como de cada uma das salas de Adolescents en Guerre, mas elas não se comparam com Dracula: Immersion dans les ténèbres, apresentada na capela do Liceu Guez de Balzac. Para promover o lançamento na França do mangá de terror #DRCL: Midnight Children, de Shin'ichi Sakamoto, foi produzida uma apresentação audiovisual da narrativa da HQ — baseada no romance Drácula, de Bram Stoker — no interior desta capela do século 19, com impactantes sequências projetadas em video mapping nas paredes e teto, continuamente, com duração de cinco minutos cravados.

Se hesito em classificar #DRCL como uma “exposição”, o faço apenas por entender que há uma certa expectativa em relação ao formato como estas são apresentadas no Festival, permitindo uma compreensão maior dos bastidores de uma HQ. Isso não significa de maneira alguma que é uma atração menor — muito pelo contrário. Não sendo particularmente um leitor de mangá, ou mesmo de quadrinhos de Terror, foi uma experiência bastante prazerosa assimilar a narrativa apresentada, provavelmente mais do que teria lendo a HQ em si ou visitando uma exposição mais formalmente constituída.

MELHOR EXPOSIÇÃO DO FESTIVAL QUE NÃO ACONTECEU EM ANGOULÊME

O cancelamento da ida do quadrinista Daniel Clowes à Angouleme foi muito sentida. Um dos três finalistas ao Gran Prix 2024 — concedido na abertura do evento à britânica Posy Simmonds, que também não compareceu — o estadunidense levou o prêmio máximo do Festival, o Fauve d’or, pelo seu àlbum Monica (resenhado aqui por Lima Neto)... só que contraiu Covid na abertura de sua exposição na Galerie Martel, em Paris, dias antes do Festival.

Mas se Clowes não vai a Angoulême, nós vamos à ele. Passei dois dias em Paris antes de embarcar de volta a Toronto e fui conferir a mostra, que reune quarenta desenhos do autor. Embora o carro-chefe seja justamente seu álbum mais recente, também estão lá rascunhos, estudos de cor e originais de outros títulos, como Paciência (2016), The Death Ray (2004), David Boring (2000) e Como uma luva de veludo moldada em ferro (1993), além de ilustrações editoriais e capas para a revista New Yorker.

Uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a grande diferença de tamanho entre os estudos de cor das capas e as artes finais dos desenhos em si. Se os layouts são previsivelmente menores que o formato final impresso, algumas das ilustrações finalizadas aparentam ser três vezes maiores que o livro pronto. Isso permitia ver em grandes detalhes as pinceladas precisas do artista e, pela ausência de cores, pormenores do desenho. Bem diferente da experiência de uma mostra em Angoulême, a galeria estava praticamente vazia quando a visitei, com apenas outras duas pessoas.

ILUSTRAÇÃO COM 25 X 52 CM DE GHOST WORLD (2003) À VENDA POR €28.000, CARTAZ AUTOGRAFADO DE PATIENCE POR €190 E CATÁLOGO DA MOSTRA POR €24.

Os valores das peças expostas também impressionava, variando entre €7 mil e €28 mil. Mas também encontravam-se à venda serigrafias assinadas (€190) e, por valores bem mais acessível (além do próprio álbum Monica), catálogos desta e de outras exposições com reproduções de muitas das peças expostas. Aliás, a Galerie Martel acabou de entrar no meu circuito de lugares a se visitar quando em Paris só pelos cartazes e catálogos de mostras de artistas que já abrigou, como o uruguaio Alberto Breccia, o argentino José Munoz, a italiana Gabriella Giandelli, os franceses Tomi Ungerer e Roland Topor, o italiano Lorenzo Mattotti, o suiço Thomas Ott, e os estadunidenses Milton Glaser, Charles Burns, Gary Painter, Robert Crumb, Chris Ware e Art Spiegelman, entre outros.

A MELHOR EXPOSIÇÃO DO FESTIVAL D’ANGOULÊME 2024

Exposições sobre a obra de roteiristas de quadrinhos são extremamente desafiadoras porque — diferente das mostras dedicadas a desenhistas, personagens, uma HQ ou mesmo de um revista (e esta edição do Festival, por exemplo, teve tudo isso) — não podem se valer apenas da tangibilidade dos quadrinhos, seja no formato de artes originais, das publicações em si, ou muito menos de folhas datilografadas. Se bem feitas, devem conseguir apresentar de forma convidativa e clara, as características dos temas trabalhados, inspirações, as metodologias de trabalho, e até mesmo um incursão na relação do roteirista com os artistas visuais com quem colaboram. Angoulême já apresentou montagens interessantes neste sentido, como as de René Goscinny e de Loo Hui Phang em 2022, analisadas aqui na Raio Laser, mas Le Scénario Est Un Bricolage, abordando a obra de Thierre Smolderen, mostrou-se excelente nesta abordagem.

Montada no segundo andar do Vaisseu Moebius, a exposição é resultado da conquista do Prêmio René Goscinny de Melhor Roteiro na edição passada do Festival pelo álbum Cauchemars ex machina, que tem arte de Jorge González, argentino radicado na Espanha desde a década de 1990. Nascido em Bruxelas, Smolderen habita este meio há quatro décadas, e não só como roteirista. Ele também é historiador, pesquisador e atuou como crítico (na revista Cahiers de la bande dessinée quando era editada por Thierry Groensteen) e como professor da École Européenne Supérieure de L'Image - ÉESI em Angoulême, sendo autor de artigos e livros sobre as obras de quadrinistas como Hergé, Moebius, George Herriman, Milton Caniff e outros.

Como roteirista de quadrinhos desde 1987 — estreando no segundo volume de Hybrides, em colaboração com o ilustrador e roteirista Séraphine — transitou por diversos gêneros, indo da Ficção Científica e Aventuras Históricas à HQs policiais e de espionagem, passando até mesmo pelo universo dos quadrinhos com uma biografia mezzo inventada: os quatro volumes de McCay (2000-2006), com desenhos de Jean-Philippe Bramanti, exploram com grande liberdade e encontros imaginários a vida e obra do criador de Little Nemo, Winsor McCay.

A exposição abre com uma pequena área obrigatória para Cauchemars ex machina, em que se destacam os originais de González, que não executa toda a página em uma só prancha, repetindo digitalmente partes dos desenhos em outros requadros ou mesmo aplicando da mesma forma os cenários. Mas a diversão começa mesmo na segunda parte, composta por painéis quadrinizando o processo de escrita de Smolderen — ilustrados por colaboradores como Alexandre Clérisse — tanto ao analisar a obra de outros quadrinistas como ao produzir seus roteiros de HQs.

Complementando esta explanação prática, estão expostos algumas de suas referências bibliográficas, bem como suas ferramentas de trabalho, começando pela máquina de escrever Olympia Dactylette em que produziu seu primeiro ensaio Les Carnets volés du major (1983), onde comparou Os Charutos do Faraó (1934), de Hergé, e A Garagem Hermética (1977), de Moebius.

Também estão expostos dois antigos computadores Apple utilizados na produção de publicações teóricas como Milton Caniff, Images de Chine (1986) e Hergé: Portrait Biographique (1988, em parceria com Pierre Sterckx), além de disquetes e anotações manuscritas.

UM MACINTOSH ORIGINAL DE 1984 E UM IMAC DE 1999 E ENVELOPES COM ARTES ORIGINAIS DE DOMINIQUE BERTAIL UTILIZADOS NO WEBZINE COCONINO WORLD (1998-2008).

No terceiro módulo da mostra, Manières de faire des mondes (“Maneiras de se fazer mundos”) o trabalho de pesquisa, construção de personagens e elaboração de enredos de Smolderen ganha forma nas artes originais de seus diversos parceiros — como Dominique Bertail (Ghost Money), Enrico Marini (Gipsy), Philippe Gauckler (Convoi), Philippe Marcelé (Colère Noire) e Egger (Nombre), entre outros. Após preambularmos pela construção de seu modo de pensar, é por meio desta justaposição de estilos artísticos e gêneros de ficção que absorvemos com mais propriedade a versatilidade da criatividade de Smolderen.

ILUSTRAÇÕES DE DOMINIQUE BERTAIL PARA O SITE COCONINO WORLD, PROJETO IDEALIZADO POR SMOLDEREN.

UM GOSTINHO DO ACERVO DE ORIGINAIS DE THIERRY SMOLDEREN: UMA TIRA DE TERRY E OS PIRATAS, DE MILTON CANIFF, DE 1936 É UTILIZADA COMO BASE PARA DESENHOS DE DOMINIQUE BERTAIL, EM 2015.

A parte final da mostra explora sua obra teórica mais conhecida, o livro de 2009 Naissances de la Bande Dessinée: De William Hogarth à Winsor McCay (“Os Nascimentos dos Quadrinhos”, inédito no Brasil), em que conecta a produção de quadrinhos em países europeus e nos EUA com a cultura visual da imprensa e as então emergentes tecnologias no campo da produção e exibição de conteúdo audiovisual, como a fotografia, o rádio e o cinema.

Aqui foram destacados tópicos abordados no livro, como o real desinteresse de Töpffer, tido como um dos pioneiros das histórias em quadrinhos, para com a linguagem em si — tema, aliás, que ele anuncia como seu próximo trabalho, Töpffer contre l’art séquentiel. Esta seção da exposição inclui ainda originais e páginas de HQs de álbuns desenvolvidos por Smolderen com os desenhistas Alexandre Clérisse (L'Été Diabolik, Une année sans Cthulhu e Souvenirs de l'empire de l'atome) e Laurent Borland (Retour à zéro) influenciadas pelas descobertas e novas perspectivas de estilo e linguagem que a pesquisa para Naissances de la Bande Dessinée estabeleceu.

NA ABERTURA DA EXPOSIÇÃO, SMOLDEREN COMENTA OS TRABALHOS DE BORLAND E CLÉRISSE.

OS MELHORES ENCONTROS DO FESTIVAL

Exposições sobre quadrinhos são ótimas, mas um Festival se faz principalmente de encontros — tanto com as HQs em si como com pessoas que também gostam delas. Visitei a abertura da mostra de Thierry Smolderen acompanhado do meu eterno e querido anfitrião André Valente, que vive em Angoulême há oito anos e fez seu mestrado na ÉESI orientado por ninguém menos que o próprio Smolderen. Durante a visita guiada, André me apresentou Morgane Parisi, quadrinista, ilustradora e antropóloga que assina a arte do melhor mapa que Angoulême já viu — e nem era o oficial do Festival, e sim o da programação Off-Festival — pois considera os sobes-e-desces medievais pelas ladeiras da cidade.

Esta edição serviu também para que eu conhecesse pessoalmente a raiúca Dandara Palankof, que veio ao festival pelo Projeto Brasil em Quadrinhos mediar a mesa redonda Histoires D'un Brésil Diversifié no badalado Espace Franquin. Depois de anos de papo por whatsapp e pelo menos dois históricos episódios do Lasercast (discutindo representação racial em Asterix e o FIQ 2022), foi muito bom conversar ao vivo, comemorar e bebemorar a ocasião.

Na mesa brasileira que ela comandou, Gabriela Güllich, Marília Marz e Marcelo D'Salete apresentaram um panorama da cena brasileira de quadrinhos por um viés de representatividade e diversidade de temas e de autores. Foi uma grande alegria ver o interesse das pessoas que lotaram o pequeno auditório da Salle Méliès pelo Brasil e como este é refletido em sua produção quadrinística. Definitivamente há espaço para os Quadrinhos Brasileiros na Europa.

Por conta da cobertura Eurocomics + Raio Laser, entrevistei pessoas que muito provavelmente não teria conhecido fora desta função, como o diretor editorial da Dupuis, Stéphane Beaujean, ou os simpatícíssimos quadrinistas Guilhem Bec e Richard Marazano, autores da espetacular trilogia Les trois fantômes de Tesla, uma das minhas grandes descobertas desta edição. Gravei entrevistas também com o mais paraibano dos quadrinistas franceses, Fabien Toulmé; com meu xará Bruno Dorigatti, editor da Darkside Books; com os generosíssimos Jean Jacques Wattel, leiloeiro, e Daniel Perez, especialista em Hergé; e, claro, com Thierry Smolderen.

Além de Dandara, Gabriela, Marília e Marcelo, foi ótimo conhecer e conversar com os editores Daniel Lopes, da Pipoca e Nanquim, e Bartek Rabij, da editora polonesa Mandioca (que publica André Diniz, Laudo Ferreira e Samuel Casal), a quadrinista Sole Otero, autora de Naftalina, o delicado resgate de uma saga familiar passada na Argentina ao longo do século passado, e o ilustrador Jason Lapidus, co-autor de Group of Seven, uma aventura de ficção histórica do exército canadense durante a Primeira Guerra Mundial.

Mas o Festival também foi feito de reencontros — que inevitavelmente produzem novos encontros — com amigos como Pedro Bouça, que me trouxe a edição portuguesa da versão do Journal Tintin de As Jóias da Castafiore e os dois volumes (difíceis de se encontrar) de Barelli: À Nusa Penida, do genial Bob de Moor, e me apresentou Mario João Marques e Safaa Dib, seus sócios na editora portuguesa A Seita. Também de Portugal, revi Paulo & Susa Monteiro e vários amigos do Festival de Banda Desenhada de Beja — e ainda ganhei de Susa Monteiro o deslumbrante álbum Mensagem, adaptação de Pedro Vieira de Moura do livro de poemas de Fernando Pessoa, ilustrado por ela em sua primeira incursão mais extensa nas HQs.

Reencontrei ainda dois outros amigos feitos em Beja, os espanhóis Keko e Antonio Altarriba, merecidamente radiantes nesta edição do Festival. Em parceira com o roteirista Carlos Portela, Keko conquistou o Fauve Polar, prêmio dedicado a thrillers policiais, com Contrition, uma pesada HQ que se passa em uma pequena cidade da Flórida habitada por ex-condenados por crimes sexuais. Já Altarriba assina o roteiro do livro que mais me impactou este ano, El cielo en la cabeza, com desenhos de Sergio García e cores de Lola Moral, e que merecidamente levou o Grand Prix de la Critique dado pela Associação de Jornalistas e Críticos de Quadrinhos da França. A HQ é a angustiante história de um menino congolês de 12 anos, transformado em soldado, e que atravessa a África tentando chegar à Europa em busca de algum futuro. Visualmente é um encanto, com composições de página espetaculares que transbordam simultaneamente beleza e tristeza, desespero e sublimidade. Já havia conversado longamente por telefone com Sergio sobre seu formidável painel Guerra, desenvolvido em 2021 para a exposição Picasso et la Bande Dessinée , e foi ótimo confirmar que, assim como Lola, o que tem de talentoso também tem de simpático.

Se é impossível eleger o que teria sido um “melhor encontro” do Festival — visto que todos contribuiram para o mosaico de experiências desta memorável edição — cabe, no entanto, o registro de duas conversas agradabilíssimas com o quadrinista canadense Chris Oliveros, autor do que considerei o melhor quadrinho que li ano passado, Are you willing to die for the cause?. Na primeira, no stand da editora Pow Pow, que publica a versão francesa do livro, conversamos sobre o que o motivou a contar a história da Frente de Libertação do Quebec (FLQ) e como estava sendo a reação ao livro, que traz à tona o que chamei de “um episódio conturbado e pouco conhecido da história canadense”. Atualmente trabalhando na continuação, contou-me que o rapto de políticos canadenses realizados pela FLQ em 1970 foi inspirado no sequestro do embaixador dos EUA no Brasil no ano anterior. Esse incidente é relatado no livro O Que é Isso, Companheiro? (1979) de Fernando Gabeira, e foi transposto para as telas, em 1997, por Bruno Barreto. Como ele assistiu o filme mas só conhecia o ator Alan Arkin, que viveu o embaixador estadunidense, emendamos um papo sobre como os principais nomes do elenco — Pedro Cardoso, Fernanda Torres, Luis Fernando Guimarães, Selton Mello — eram mais conhecidos por trabalhos em comédia. O papo continuou no dia seguinte, desta vez na companhia de André Valente, no simpático café Yellow Spoon da Rue Hergé, em que discutimos diversos assuntos, incluindo o surgimento dos quadrinhos no Brasil, características do nosso mercado e porque não há um intercâmbio maior com as HQs produzidas em Portugal.

Alguns destes encontros, bem como todas as exposições mencionadas acima, fazem parte dos quinze vídeos que estão no canal Eurocomics. Querendo mais Angoulême, passa lá!