MELHORES LEITURAS DE 2023 POR LIMA NETO

Um dos grandes mitos da crítica em geral é a ideia de que existe uma neutralidade envolvida nesse trabalho. Ora, se não existe neutralidade nas escolhas do cientista, imagine naquelas feitas pelo crítico. Entender isso é salubre para todos os envolvidos. Aqui mesmo no nosso querido blog encontramos diferentes perfis de ponto de vista. Há aqueles que são totalmente refratários a pensar uma obra sob qualquer ótica que não a da expressão artística. Outros tendem a enxergar valor nas HQs com potencial didático ou em narrativas com ambições mais alinhadas às da literatura. O importante é ter clareza do que é o objeto em que nos debruçamos: as histórias em quadrinhos. Esclarecendo, esta é uma lista de leituras do ano. Embora tenha alguns lançamentos, boa parte dela é feita de material publicado em anos anteriores e inclusive fora do Brasil. Tendo isso em mente, vamos nessa! (Agradecimentos especiais aos amigos/ fornecedores: James, Diogo, Rogélyo e o pessoal do gupo HQBSB). (LN)

por Lima Neto

Monica – Daniel Clowes (Nemo, 2023). Tradução de Erico Assis

Enquanto esta lista está sendo escrita, Daniel Clowes e sua HQ Monica receberam o prêmio máximo de Angoulême, o Fauve d’Or. Não há muito mais o que se acrescentar sobre esse título depois de uma premiação dessas, e mesmo antes disso. Monica já foi debatida em vários veículos de crítica de quadrinhos nacionais e gringos (inclusive aqui mesmo, no nosso verboso Lasercast #64). Mas não é pra menos, Clowes vai tecer um retrato paranoico e lisérgico da personagem título que, ao ser lido, mostra um Estados Unidos ocluso e vibrante. Sinistro e vivo como o solo úmido e rastejante que se encontra debaixo de uma rocha. E, embora essa imagem seja exageradamente colorida, a narrativa de Monica é orquestrada por um artista sentado no topo de suas habilidades. Uma história sobre cultos secretos se deflagra a partir de seus personagens e suas histórias, atravessadas pelas narrativas do tempo e do espaço em que se encontram. Clowes usa sua extensa referência de quadrinhos dos anos 50 e 60 como moldura para narrativas que parecem seguir o caminho da crônica histórica para depois se tornarem algo diferente, de modo controlado e crônico, como uma infecção não tratada. Até que a pústula suture, essa infecção é tratada com a já conhecida sutileza do autor e seu traço nostálgico enganoso que equilibra verossimilhança e artificialidade como quem sabe que tudo não passa de um teatro de traços que devem seguir seu papel. Monica é uma tessitura complexa de realidade e alucinação, onde o complexo, na HQ assim como na vida, não esconde nenhuma resposta satisfatória.  

Travesti – Edmond Baudoin e Micea Cartarescu (Veneta, 2019). Tradução de Maria Clara Carneiro

Adaptações são obras crepusculares. Quando uma adaptação entra numa lista como esta, mesmo que esta lista foque nas leituras do ano, é complexo entender onde repousam suas qualidades. Mas Travesti, a adaptação do livro Lulu do escritor romeno Micea Cartárescu e adaptada pelo quadrinista francês Edmon Baudoin com tradução da balburder Maria Clara Carneiro, se destaca por colocar a presença de Baudoin como adaptador/comentarista no meio do sonho febril que é a narrativa. A história se passa em uma colônia de férias para estudantes na cidade de Budila, distante da capital Bucareste, tendo os Cárpatos como paisagem no horizonte. Por motivos óbvios, o cenário não poderia ser mais distante da Romênia tornada famosa pela descrição gótica melodramática de Bram Stoker. Saem os castelos medievais e as gargantas rochosas dos Cárpatos, e entram as festas e boates recheadas de hormônios sexuais. Entretanto, há muito do romantismo oitocentista em Travesti. Tanto nas belíssimas pinceladas negras de Baudoin e sua representação sinistra da narrativa (um Breccia sob efeito de crack), quanto na própria sexualidade exacerbada da adolescência e a culpa difusa e pesada que alguns jovens carregam esperando que ela os torne mais merecedores de atenção, gênios torturados.

Tal é o caso do jovem Martin, máscara de Cartárescu dentro do livro. Gótico no sentido mais pedestre da palavra, Martin sonha ser um escritor desconhecido que deixará sua grande obra para ser descoberta após a morte. Enquanto a morte não vem, Martin divide suas horas de vigília entre o asco pelo apetite sexual ameboide de seus colegas e a busca por uma experiência sexual oposta à energia orgiástica de seus companheiros e em seus sonhos, e se defronta com uma teia de pesadelos aracnídeos e uma memória diáfana de uma irmã perdida no passado. O clímax da narrativa, acionada pela personagem de Lulu, transcende o senso comum que emana do título. É pessoal, mas é também sobre o outro. Porque Travesti trata de duplos, de ir ao encontro do duplo, o sujo que encontra o ascético tal qual Baudoin ao viajar pela Romênia em busca de refazer os passos do jovem Cartárescu. Nessa noite narrativa, a fragilidade do que se pode chamar de “unidade” se desfralda. Nossas ficções pessoais se dissolvem no sonho e na memória, tão crepuscular como esta mesma adaptação. A tempo, o título “Travesti” também é pintado pela multiplicidade de sentidos. Como tudo mais nesta adaptação, seu título ecoa pelas paredes da memória coletiva, escondendo mais do que se encerra em uma interpretação mais corriqueira. 

3 - Mulher Maravilha - História: As Amazonas - Kelly Sue DeConnick, Phil Jimenez, Gene Ha e Nicola Scott (Panini, 2023). Tradução de Dandara Palankof & Erick Garcia

Não é novidade que a entrada de criadoras mulheres na linha de produção dos comics de super-herois norte-americanos causou um rebuliço sadio na indústria e deixou um sem número de marmanjos de cabelo em pé. Desde a camiseta da personagem Mocking Bird, que estampa na capa de sua revista o dito “Ask me about my feminist agenda”, escrita por Chelsea Cain, e ainda antes, essa invasão necessária criou uma legião de opositores debiloides culminando no movimento (mais para “espasmo”) Comicsgate. Tudo isso gera um ruído. E não dos bons ruídos, daqueles que criam linguagem. Mas sim um ruído que esconde e afasta a crítica de se embrenhar nesse caminho pastoso que é o embate entre a diversidade e o conservadorismo de uma indústria que vem lutando pra se sustentar. No meio disso tudo, entretanto, surgem pérolas, e Mulher Maravilha - História: As Amazonas é uma pérola grande, raivosa e mítica que se destaca com facilidade entre seus pares. Escrita por Kelly Sue DeConnick e com a arte de Phil Jimenez, Gene Ha e Nicola Scott e tradução da minha querida colega e amiga Dandara Palankof (com a ajuda de Erick Garcia no material de extras),  História é uma HQ séria e reverente, que mergulha na mitologia grega para abordar o nascimento das Amazonas e com isso estampar com todas cores que uma contraposição ao patriarcado não é uma luta de hoje (como o ruído quer que acreditem), mas que está presente desde o início da civilização ocidental. A princesa Diana de Themyscira não é uma personagem fácil de escrever, fora seu título mensal, suas histórias tendem a girar em torno de inúmeras recontagens de sua origem, com resultados muitas vezes irrelevantes. A personagem passou por diversas interpretações e arquétipos: de guerreira até secretária e modelo, mas uma das mais marcantes é a versão embaixatriz desenvolvida por George Perez nos anos 80. Perez se espelha no Thor de Walt Simonson, que mergulha o personagem em suas origens mitológicas, e traz uma Mulher Maravilha coesa, com uma história precisa e calcada na tradição grega (tradição essa que informou, aliás, muito da aventura super heroica do início dessa indústria).

DeConnick vai fazer o mesmo para contar a origem das Amazonas, porém em um tom muito mais mitológico que a fase de Perez. E isso tem um motivo diretamente ligado à camiseta da Mockingbird. A narrativa mitológica grega narra o embate da civilização contra a selvageria. São os deuses patriarcais do Olimpo se erguendo contra a natureza caótica e feminina dos antigos Titãs. É nesta chave que História vai ser narrada. A história das deusas do Olimpo que conspiram contra as leis de Zeus ao criar guerreiras que buscam trazer justiça às subjugadas mulheres gregas. A personagem de Hipólita, rainha das Amazonas, assume ares messiânicos como a mortal se ergue para liderar e fazer crescer as hordas das semideusas. Tudo em História é uma carta de amor ao mito da Mulher Maravilha. Diferente de outras interpretações, entretanto, é uma carta de amor amarga que narra a aparente futilidade da luta pela libertação feminina. Luta abandonada pela própria Hera, esposa de Zeus e “aquela que tudo vê” , e que, por isso mesmo, não se junta à conspiração de suas irmãs. História não é uma HQ de super-herois no sentido mais estrito do conceito. É uma HQ sobre feminismo e sobre as complexidades simbólicas e reais desse esforço. É sobre o monopólio do imaginário e sua consequência. Tudo isso está embalado no texto ácido e esperto de DeConnick e na belíssima arte de apaixonados pela personagem, como Phil Jimenez (que merece uma edição em PB, já que as cores não combinaram com o detalhamento da arte, gerando páginas confusas ao ponto de se tornarem borrões), a beleza nouveau do traço de Gene Ha e a solidez contemporânea das aguadas de Nicola Scott. Quer saber mesmo sobre a agenda feminista das mulheres do quadrinho norte americano de super-herói (e o que esta guarda de ancestral e mítico)? Vai encontrar um tanto das respostas em História. 

Fora do Padrão – Justin Hall org. (O Grito!, 2023). Tradução de Dandara Palankof

Próxima em nossa lista está a antologia Fora do Padrão. Uma coletânea de quadrinhos que traça um perfil da produção de HQs de autores LGBTQIA+ nos Estados Unidos e que mostra a riqueza e variedade de títulos em mais de 50 anos de história. Com desde narrativas despojadas até pequenas obras de arte em quadrinhos, Fora do Padrão é um dos lançamentos mais importantes no Brasil (o mais importante, na minha opinião), trazendo nomes conhecidos como Trina Robbins, Howard Cruse, Ralf Köning, Alison Bechdel (isso só pra ficar nos nomes conhecidos) sob a organização de Justin Hall . O livro sai pelo selo de quadrinhos da revista o Grito! e trata- se de mais um trabalho de tradução da trabalhadeira Dandara Palankof, ao lado de Paulo Floro na edição contando ainda com letras da lendária Lilian Mitsunaga. Mas já falamos bem sobre esse livro no Lasercast #61, então clica aqui pra conferir. 

O Livro da Selva – Harvey Kurtzman (Veneta, 2021). Tradução de Alexandre Barbosa de Souza

Dando sequência à nossa lista temos o incrível O Livro da Selva, de Harvey Kurtzman, publicado em 2021 pela Veneta e com tradução de Alexandre Barbosa de Sousa. Kurtzman dispensa apresentações, até porque não há nestas linhas espaço suficiente para descrever o impacto de suas criações na sociedade norte-americana e mundial. Mas caso você não o conheça, pode mergulhar de cabeça nessa HQ que não tem risco de erro. Além do conteúdo integral do que, originalmente, seria um livreto ao estilo MAD (como os famosos Respostas Cretinas Para Perguntas Idiotas) e que acabou por se tornar um precursor hilário e amargo do que viria a ser a Graphic Novel, O Livro da Selva vem acompanhado de ótimos paratextos assinados por Gilbert Shelton, Denis Kitchen, Art Spiegelman, Peter Poplasky e Bob Crumb. A HQ é o resultado da tortuosa carreira editorial de Kurtzman, um percurso comum dentro da indústria de impressos norte americana em meados do século XX, mas que, no caso de Kurtzman, emparelhou sucessos históricos (como a revista MAD ao lado de William Gaines) e fracassos retumbantes. O fato é que Kurtzman criou uma forma de ver e mostrar os EUA pelas páginas impressas, e aqui esta forma é aplicada ao cotidiano de maneira contundente, sem se preocupar com padrões editoriais. Engraçada e desconfortável, a HQ se torna a válvula de escape do autor, e Kurtzman usa de toda sua maestria caligráfica e domínio do ritmo gráfico para expor e caçoar a selvageria porcamente escondida por trás da pretensa civilidade capitalista. Seja em uma paródia detetivesca conduzida pela onomatopeia do Jazz sobre um protagonista abjeto e ridículo, porém galã de Hollywood. Ou ainda a grotesca representação do cotidiano editorial de uma grande editora. Ou mesmo uma hilária paródia de faroeste sobre um xerife incopetente ou a degenerada história de uma cidade podre e seus cidadãos idiotas (como uma comunidade composta por Beavis e Buttheads, só pra sentir como a influência de Kurtzman perdura até hoje). Um nome, entretanto, brilha tanto quanto Kurtzman nesta edição da Veneta: trata-se do trabalho de letreiramento incrível (e já citada) da lendária Lilian Mitsunaga, entregando um lettering orgânico brilhante. O Livro da Selva é uma prova que Kurtzman entendeu o ocidente dos meios de comunicação como ninguém, e desta forma, ensinou esta parcela do mundo a enxergar a si mesma.

O Grande Vazio – Léa Murawiec (Comix Zone, 2023). Tradução de Fernando Paz

Foi com Adorno e sua trupe de apocalípticos de Frankfurt que tornou-se claro o fato de que os meios de comunicação e de lazer permitiam ao capital avançar por um campo rico para exploração: o da atenção. O tempo livre do ser humano virou campo de batalha para capturar uma parcela qualquer da atenção do indivíduo após (e durante) sua hora de trabalho. A HQ O Grande Vazio, da francesa Léa Murawiec e de tradução de Fernando Paz, leva esta realidade frankfurtiana para seu paroxismo: uma sociedade onde a atenção se tornou matéria prima vital para a existência do indivíduo. É com esse mote sagaz que  a HQ conta a história de Manel Naher, uma garota apática e antissocial que vê sua vida ameaçada após descobrir que uma cantora homônima está ordenhando a pouca lembrança e atenção que a mantinha viva nesse mundo coberto por placas e neons com nomes de pessoas que pagam para serem lembradas, porém cercado por uma amedrontadora zona conhecida como Grande Vazio. Essa realidade metafórica é contada através de um desenho de cartum preciso e expressivo. A experiência da autora como designer está presente em cada página, não apenas nas escolhas de cor ou em seu traço reminiscente de animações publicitárias dos anos 50 (algo como o cruzamento da mangaká Junko Mizuno e um Gabriel Góes como em visto em Flores), mas muito no trabalho cabuloso (não há palavra que expresse melhor) de tipografia que preenche páginas e páginas com letterings manuais diversos que são onipresentes na história. E além de tudo isso, a  narrativa visual precisa e divertida de Murawiec insere o leitor no mundo trágico e visualmente carregado da história já na primeira página. O Grande Vazio é uma fábula sobre identidade e sociedade que caminha do simpático ao abjeto, com ecos de familiaridade gráfica dispostos de forma original e empolgante. Enfim, uma ótima HQ.

Choques Futuristas – Alan Moore, Dave Gibbons, Alan Davis e vários (Mithos, 2016). Tradução de Pedro Bouça e Helcio de Carvalho

De todas as formas de periodicidade que as HQs possuem mundo afora, a publicação semanal é provavelmente a menos usual em terras brasileiras. As revistas semanais estão presentes em vários países, muitas vezes convivendo com títulos mensais, e a Inglaterra possui uma longa tradição de títulos com essa periodicidade . Lembrando sempre do mantra Mcluhaniano “O meio é a mensagem”, os quadrinhos semanais têm sua própria forma de narrar. Nos anos 70 e 80, as estas revistas eram um celeiro de histórias fantásticas e muita ficção científica. São histórias curtas e geralmente desenhadas em um preto e branco dramático em histórias que apresentam a humanidade expandindo sua vida pelo sistema solar e os problemas gerados por esta jornada. Um dos títulos mais consagrados nessa tradição é a revista 2000 AD, com histórias seriadas e “one shots”, e, entre suas páginas, as historietas de sci-fi corrosivas e carregadas da ironia britânica intituladas Choques Futuristas, escritas por Alan Moore (na companhia de uma constelação de artistas do reino unido como Dave Gibbons, Steve Dillon, Alan Davis e tradução de Pedro Bouça e Helcio de Carvalho). São contos rápidos, de duas a 4 páginas de ficção científica carregadas de humor negro e uma dose cavalar de E.C. Comics e Harvey Kurtzman na sua confecção. O Moore destas páginas é muito próximo do Moore de sua tira Maxwell: Um cronista do cotidiano inglês com língua afiada e de olho no que aquela sociedade tem de mais ridículo.  Para pintar seus chocantes retratos futuristas, Moore vai beber direto na fonte da EC Comics, criando anfitriões bizarros e divertidos como o Ro-bocão, um cronista dos pequenos embates entre humanos e máquinas, e o observador alienígena Tharg. Algumas histórias chegam a emular o formato de sessões da revista Mad. Assim como o próximo título desta lista, a arte é  marcada pela estética barroca do alto contraste, uma forma de extrair do preto e branco sua carga mais dramática. A arte de Dave Gibbons, em uma história em que o computador central da cidade se apaixona por um cidadão comum, é um dos melhores momentos de sua carreira. As narrativas variam em qualidade, mas todas são diversão garantida. 

Planeta Rojo - Alfredo Grassi e Luis “Lucho” Olivera (Deux Book, 2023)

O próximo quadrinho da lista não possui periodicidade semanal como a anterior, mas suas histórias compartilham de uma mesma sensibilidade setentista que deu origem à 2000 AD.  Se na Inglaterra a fantasia científica é lugar para a irionia e o humor negro, na Argentina suas páginas darão lugar ao temor e o sofrimento. Trata-se da edição encadernada do quadrinho argentino Planeta Rojo (do roteirista Alfredo Grassi e com a belíssima arte de Lucho Olivera). Planeta Rojo narra a aventura humana em um futuro típico da ficção científica setentista. Robôs asimovianos, naves espaciais assassinas, seres mirabolantes e muita tensão filosófica entre os humanos que lidam com as agruras de colonizar Marte, o planeta vermelho. Grassi é conhecido no Brasil pelo quadrinho futebolístico Dico o Artilheiro, que também contou com a arte de Lucho Olivera (substituindo o lendário José Luis Salinas). O pequeno encadernado da editora Deux Books reúne todo o material publicado na revista Skorpio da Ediciones Record em 1979. São narrativas dramáticas onde o frio do espaço serve de cenário para estudos dos temores e paranoias humanas, da loucura e da solidão. A pena de Olivera brilha em tessituras complexas e layouts fantásticos em que os elementos constitutivos das páginas se misturam criando uma união narrativa bem característica da arte no período. Também aqui encontramos o preto e branco expressivo e dramático, as páginas de Olivera são de pura psicodelia pb, o que não é de se adimirar vindo de um aluno de Hugo Pratt e Alberto Breccia. Planeta Rojo não tem previsão nenhuma de sair por aqui (embora ainda é preciso averiguar se algum capítulo foi publicado na versão nacional da Skorpio, talvez o grande Márcio Júnior saiba responder), e que essa nota ajude as editoras daqui a se interessarem pelo material.

Fantasia Nórdica: A Saga de Vei - Sara B. Elfgreen e Karl Johnsson (Faro Editorial, 2022). Tradução de Delfin

Provavelmente não existe mitologia que esteja mais saturada, desgastada e carregada de tons duvidosos que a tradição nórdica. Do Thor da Marvel até o levante da direita neonazista europeia (e mundial), a mitologia nórdica tornou-se símbolo do que há de mais desagradável na sociedade atual (olá incels). Por isso a surpresa em encontrar esta A Saga de Vei, dos criadores suecos Sara B. Elfgreen (roteiro) e do artista Karl Johnsson (arte) e tradução de Delfin. Publicada pela editora Faro Editorial, A Saga de Vei traz um frescor incrível para personagens cansados ao mesmo tempo que os coloca em segundo plano. Vei é uma campeã de uma das muitas tribos de humanos que vivem sob a proteção dos gigantes de Jotunhein onde são adorados como deuses. A história tem início com Vei sendo resgatada no mar por um navio de Midgard que busca ir ao encontro de Odin. Esse encontro vai ser o ponto de partida para uma narrativa de desencanto onde os deuses se revelam seres mesquinhos e distantes, apostadores em uma disputa mítica com os gigantes do gelo, os patronos do povo de Vei.

Elfgreen vai fugir de todos os lugares comuns no que tange essas lendas: saem os deuses benevolentes, entra em cena uma relação quase simbiótica entre aqueles que devem viver sob o jugo desses seres divinos. Há uma clara valorização da personagem feminina e uma inversão de papeis tradicionais, como o personagem que seria o heroi da narrativa tornar-se um sidekick (e também um homem que se encontra frágilizado diante da situação em que se encontra, porém sexualizado, objetificado). A arte de Johnsson é bela e competente em sua narrativa visual, trazendo para o imaginário versões das paisagens nórdicas muito diferentes daquelas acostumadas a preencher as telas da cultura pop. Os próprios gigantes do gelo se aproximam das divindades védicas em suas peles índigo e seus muitos membros. Os pontos fracos, entretanto, estão na cor digital carregada e o oportunismo safado da editora em colocar o título original em segundo plano e trazer o “subtítulo” Fantasia Nórdica como nome principal da HQ. Não fosse a insistência do amigo que me emprestou, eu teria passado direto por esta leitura sem pensar duas vezes. Nada mais cansativo do que um título como esse. Fora isso, A Saga de Vei se aproxima do que DeConnick vai realizar em História, trazendo maturidade, renovando o imaginário e sustentando, sim, uma agenda para estes velhos mitos desgastados.

Mulher Maravilha: Terra 1 Volume 3 - Grant Morrison e Yanick Paquette (Panini, 2021), tradução de Rodrigo Oliveira

Para finalizar esta lista, segue um título que certamente vai fazer meu amigo Márcio Jr arrancar suas belas madeixas além de seriamente afetar minha credibilidade como crítico de quadrinhos deste tão abonado blog. Não é por menos, trata-se de outra HQ das grandes editoras norte-americanas, de uma personagem que já figurou nesta lista e por um autor que sou declaradamente fã. Trata-se do título Mulher Maravilha: Terra Um, escrita por Grant Morrison e com arte de Yanick Paquette e tradução de Rodrigo Oliveira. Nenhum desses autores precisa de uma apresentação, Paquette já trabalhou antes com Morrison e agora estrela como improvável artista de uma continuação de Incal. Já Morrison vinha passando por um período de superexposição que afastava até mesmo leitores contumazes como é o meu caso. A série Terra 1 buscava ser uma espécie de “Universo Ultimate” da editora DC, um esforço de embalar seus personagens octogenários em uma nova roupagem para um público novo. A versão de Mulher Maravilha sai em três volumes e, apesar da técnica conhecida de Morrison de mergulhar nas histórias iniciais da personagem para recriar seu contexto o mais próximo do que era buscando mostrar o que esses títulos tinham de mais criativo - que definitivamente gerou um cenário belo onde coisas como o jato invisível perder sua forma fálica para assumir uma forma vaginal e as Amazonas terem na base da sua cultura a submissão à uma autoridade amável, conceito do criador da personagem, William Moulton Marston - , o primeiro volume é um pouco mais que outra história de origem da princesa Diana. O segundo volume, já se passando no mundo do patriarcado, traz o choque de realidade entre Themyscira e o mundo real, onde a personagem título passa a entender sua situação através da visão do insidioso Dr. Psycho (aqui, em uma versão sinistra de agente secreto desenhado aos moldes de Nick Cave e especializado em manipular o oponente por meio do diálogo). O segundo volume já apresenta um grande avanço, com diálogos cáusticos entre Diana e Psycho problematizando o ideal da Amazonas (e sua natureza feminista).

Mas é o terceiro volume que merece seu lugar nesta lista. Nele vemos um Grant Morrison que não aparecia nas HQs há muito tempo: criativo, relevante, conciso e direto. Morrison mostra algo que raramente é visto nas narrativas de super-heroi: seu final. E é um final mítico, que fala sobre sacrifício com o peso da religiosidade, construindo uma espécie de cristianismo feminino movido pelo amor maternal, comum a homens e mulheres. Não há muito tempo, Morrison se assumiu como pessoa não-binarie, o que pode ser visto como marketing para alguns, mas que faz bastante sentido para aqueles que acompanham sua trajetória. O fato é que esta posição fora do gênero provavelmente pode ser responsável pela ambiguidade sutil que a leitura deste terceiro volume vai suscitar. Diante da grande vitória das Amazonas e do paraíso que se instaura na terra após isso (sim, não nego que Morrison bebe das criações do Alan Moore - nesse caso, Miracleman - mas o que me atrai é justamente a releitura que ele propõe com essas apropriações), fica um gosto duvidoso no fundo da garganta que busca avisar que, não importa se trata-se de patriarcado ou matriarcado, toda utopia, toda religião e todo império não prescinde de excluídos e de críticos.

Essa sutileza e criatividade com que constrói esse futuro, deixando nas entrelinhas o seu preço, é a mostra de um leitor maduro. Grande parte desse sucesso é o limite de páginas. Geralmente suas fases gigantescas em títulos mensais descambam no caos (ou já começam assim, como é o caso da recente fase no Lanterna Verde). Um dos problemas, entretanto, é a arte de Paquette. Uma revista sobre mulheres exige um desenhista que saiba desenhar corpos femininos naturais das mais variadas formas. O primeiro volume chega a ser ofensivo com o desfile de Amazonas que parecem manequins de loja ou atrizes pornô. A representação de Nick Cave no segundo volume é um ponto positivo (embora faça mais sentido que esta sugestão tenha partido do próprio Morrison). Apesar disso, Paquette evolui bastante na terceira edição com representações variadas e ricas.