FIQ parte 2 – Entrevistas – Mulheres que arrebentam: Claudia Ahlering e Janaina de Luna

Mais alguns dos bate-papos que tivemos no FIQ 2018, desta vez só com mulheres que fazem a diferença no mundo dos quadrinhos. 

por Marcos Maciel de Almeida

Claudia Ahlering

Claudia Ahlering é desenhista de Ghetto Brother, escrita por seu compatriota alemão Julian Voloj. O quadrinho narra a trajetória de Benjy Melendez, líder de uma das maiores gangues do Bronx nos meados dos anos 70. A história de Benjy tem fortes conexões com aquela contada no melhor filme já feito pela humanidade, Warriors – Os Selvagens da Noite (1979), de Walter Hill. (MMA)

Raio Laser: Você mencionou em entrevistas anteriores que não teve muita participação na elaboração do roteiro de Ghetto Brother. Eu gostaria de saber um pouco de sua experiência como leitora dessa graphic novel. Em minha experiência particular, achei a história da revista surpreendente, ao misturar violência, religião e hip-hop. Gostaria de saber se você também se surpreendeu com o desenvolvimento da HQ. 

Claudia Ahlering: Não foi algo tão surpreendente o elemento religioso, porque minha visão sobre a história compreende uma multiplicidade de temas, ou seja, as gangues, o hip-hop e a identidade cultural judaica. Para o autor da revista, Julian Voloj, todos estes temas são muito importantes, especialmente porque ele é judeu. Inclusive, ele escreveu um novo quadrinho que também enfocará o aspecto religioso.

A questão religiosa é bastante preciosa para o povo alemão, e isso inclui temas como a ocupação do Bronx por imigrantes judeus.

Essa abordagem religiosa interessa muito mais para os alemães que a cultura das gangues. E esse também é meu caso. A questão da identidade cultural judaica é bastante cara para mim, em razão de sua proximidade com a minha cultura e isso não ocorre com a cultura de gangues, que já é algo mais distante. Apesar disso, achei toda a experiência bastante enriquecedora: contar uma história de gangues e poder puxar um fio inesperado ligado à questão religiosa. 

Raio Laser: Você foi criada na Alemanha. Qual a sua percepção sobre o fato de que jovens americanos tendam a ser mais violentos – e aí eu incluiria também a questão dos massacres em escolas –, que os jovens europeus, sobre os quais há menos relatos referentes a condutas agressivas? Baseada em sua criação como jovem europeia, como você vê essa questão?

Claudia Ahlering: Na Alemanha, as leis para aquisição de armas são muito mais rigorosas que nos Estados Unidos. Lá, as pessoas simplesmente não pensam em se armar. Elas ainda têm o trauma da Segunda Guerra. Há um sentimento do tipo: “Aquilo foi muito horrível. É melhor que não tenhamos armas”. A mentalidade geral é essa. As pessoas não acham que seja importante ter uma arma em casa para se proteger. Entretanto, isso está mudando um pouco, com a questão do terrorismo. Ainda assim, persiste a mentalidade de que vivemos num lugar no qual não precisamos andar armados. 

Raio Laser: Para mim, o grande poder de Ghetto Brother está relacionado à sua faceta multitemática. Na sua opinião, qual o aspecto mais impactante dessa HQ? 

Claudia Ahlering: O que mais me impressionou foi a questão da rivalidade entre as gangues de jovens. Nos lugares em que morei, tanto em Berlim, como em Hamburgo, que é minha cidade natal, essa questão da rivalidade juvenil é algo que ficou no passado, não é tão forte como foi em Nova York. Então, para mim, foi muito impactante, ao fazer essa história, tentar entender porque surgiam essas rivalidades. Eu tenho a impressão que o Julian escreveu de uma forma que fosse divertida e legal de ler, mas queria chamar a atenção para a questão dessa rivalidade e violência entre jovens. Ele queria fazer as pessoas pensarem, enquanto estivessem se divertindo. Era como se dissesse: “Olha, isso pode acontecer, mas não é legal”. 

Raio Laser: Sempre fui grande fã de filmes de gangues, como The Warriors (EUA, 1979) e The Wanderers (EUA, 1979). Acredito que, no Brasil e na América Latina, muitas pessoas também tenham fascínio por essa temática. De modo similar, na Itália há grande admiração pelo Velho Oeste. Nesse sentido, quais seriam as principais influências culturais midiáticas para a juventude alemã?

Claudia Ahlering: The Warriors foi influente na Alemanha. Em geral, os jovens alemães sofrem bastante influência da cultura norte-americana, já que no pós II Guerra Mundial nosso país recebeu muita ajuda financeira dos EUA. Ainda assim, persistem muitas subculturas que são tipicamente alemãs, tais como a ocupação cultural de moradias, os movimentos culturais de resistência e as lutas sociais dos anos 80. Para nós, o fenômeno da cultura de gangues é algo muito distante, percebido como de procedência norte-americana, não chegando a influenciar tanto nossa cultura. Os jovens alemães veem a questão do Bronx nos anos 70 com um misto de nostalgia e curiosidade, para saber mais sobre o passado, mas não é algo que chega a nos influenciar. 

Warriors, Os Selvagens da Noite (1979)

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Janaina de Luna

Janaina de Luna é editora-chefe e proprietária da Mino Editora. Criada em 2014, a empresa ganhou destaque em razão da alta qualidade gráfica e artística de seus lançamentos. Indo na contramão do mercado na época de seu surgimento, a Mino apostou em publicações de autores nacionais em formato luxuoso, obtendo grande sucesso. Com um catálogo bastante variado, que passa por queridinhos dos comics mundiais como Jeff Lemire e autores de forte pegada autoral/independente como Seth, a editora conseguiu espaço cativo no coração dos fãs da nona arte no Brasil. (MMA)

Raio Laser: Acredita que as editoras de quadrinhos no Brasil compitam entre si por um público que é fixo ou cada uma teria o próprio espaço delimitado? O lançamento de uma editora influencia o da outra, tendo em consideração que os leitores têm orçamento limitado?

Janaina de Luna: Eu acho que sim. Não necessariamente existe uma competição direta, mas achar que não existe uma competição é meio ingenuidade, porque o dinheiro das pessoas é finito. Então as pessoas são obrigadas a fazer opções sim. Mas eu acho que, mais do que competir, as editoras no Brasil têm o papel de trazer mais gente para o quadrinho nacional. Então, na verdade, quando há mais editoras, eu acredito que isso ajude a Mino a vender mais, que é o oposto do que ocorreria num cenário com menos editoras. 

Raio Laser:  Como fazer para ampliar esse público restrito, que às vezes deixa de comprar Mino para comprar um título de outra editora? Como tentar angariar novos fãs para as HQs?

Janaina de Luna: Eu não fico pensando muito assim. Todos falam em estratégias para fazer com que as pessoas leiam mais quadrinhos e etc... Eu sempre fico pensando que o que eu realmente posso fazer – de verdade – é lançar alguns títulos. Nada é mais efetivo que... Claro. Tudo seria mais efetivo se houvesse uma política educacional melhor, uma renda melhor... Mas isso não está na minha mão. Mas das coisas que eu posso fazer, eu sempre penso que fazer quadrinhos melhores, fazer meu trabalho melhor é a única forma efetiva de conseguir trazer mais público para a editora. Não fico pensando muito no que eu vou fazer para que o leitor compre da minha editora. A gente pensa na Mino e a gente pensa em como fazer a Mino crescer cada vez mais. 

A Vida É Boa Se Você Não Fraquejar, de Seth

Raio Laser:  Pegando esse gancho: é muito comum ouvir dizer que quadrinho não dá dinheiro no Brasil. Quanto do retorno da Mino é financeiro e quanto é de satisfação pessoal?

Janaina de Luna: Quadrinho dá muito pouco dinheiro. Principalmente se você quiser fazer as coisas da maneira certa. Eu já tive outros empregos, em outros ramos, e, se eu contasse como é feito, as porcentagens com as quais nós trabalhamos, o jeito que o mercado se organiza, qualquer ex-parceiro ou colega meu antigo iria achar que eu estou maluca. Fazer livro é muito difícil, fazer quadrinho é mais difícil ainda.

No cenário político em que vivemos não parece que vá ficar mais fácil, pelo contrário. Toda a esperança que a gente teve nesse curto período de um governo mais voltado para o social – não vou nem dizer “de esquerda”, mas de “centro-esquerda”-, a gente está vendo se desmantelar de modo muito fácil e eu não consigo ver perspectivas de melhora. Mas isso não quer dizer que eu não vá continuar lutando.

Agora é muito pouco dinheiro que se ganha com quadrinhos. Mas isso não nos impede de remunerar de forma decente. Quando eu falo isso, eu quero dizer: dentro do apurado para os autores e todas as pessoas envolvidas. E eu acho que o autor de quadrinhos ganha muito muito pouco, porque as tiragens são muito pequenas e eu acho que o trabalho é muito grande. É que às vezes eu vejo esse discurso de que não há dinheiro como uma desculpa para não se remunerar autor e colaborador e etc. Existe algum dinheiro no quadrinho, mas com certeza quem está nessa por dinheiro está no lugar errado. É engraçado. A gente passa a vida falando de quadrinho, a gente fica o fim de semana em eventos de quadrinhos, a gente dorme falando em quadrinhos, eu sou casada com um quadrinista e nas férias a gente vai para eventos de quadrinhos a passeio. É aquilo. Você faz isso, porque não consegue fazer outra coisa. 

Raio Laser:  Mas você teria algum deadline do tipo: “se daqui a 5 anos a coisa não virar, aí vou partir para outra coisa” ou a paixão fala mais alto e você continuará independente de qualquer outro fator?

Janaina de Luna: Eu não tenho esse deadline, porque acho que isso é uma ilusão. Não acho que daqui a 4 anos a coisa vai virar. Eu não acho que o problema é que a Mino não virou. Eu acho que – realmente – do jeito que o mercado está organizado, não é uma estrutura que nasceu para dar lucro do jeito que a gente imagina, do jeito que a gente quer trabalhar. Não é um lucro condizente com o nível de trabalho e de especialização que a gente tem. Mas a gente faz a Mino por amor. A Mino é autossustentável. Ninguém mais precisa colocar dinheiro na Mino. Todos os autores da Mino são pagos e todas as contas são pagas, às vezes há alguns atrasos claro, mas enfim... No final está tudo certo. E a gente também tem outras fontes de renda que mantêm nosso padrão de vida. Mas não é um projeto ganhar dinheiro daqui a 3 anos. Não é nosso objetivo. A gente quer crescer e ganhar dinheiro à medida que a operação fique maior, mas não é uma coisa que a gente pense que “ainda não está dando dinheiro”. O mercado é assim. O mercado livreiro é difícil. Mas eu – que sou a dona da Mino – trabalho em outras frentes também, tenho outros projetos.

Então não é que eu espere que a Mino daqui a 3 anos esteja dando dinheiro. Eu não tenho esse tipo de esperança e nem de ilusão. E não é um objetivo também.

Gideon Falls, de Jeff Lemire e Andrea Sorrentino. Lançamento da Mino previsto para outubro/2018

Raio Laser:  Como você enxerga a Mino no futuro? Daqui a uns 10 anos por exemplo? Com mais publicações ou talvez publicando um autor com o qual você sempre sonhou, mas que não conseguiu em razão do custo do copyright? Como você enxerga o futuro ideal para a editora?

Janaina de Luna: Eu não consigo fazer um plano de 10 anos. Eu não consigo enxergar, porque eu já tive vários outros negócios e já trabalhei com várias outras coisas e acredito que tudo tenha começo, meio e fim. Não sei muito como a Mino vai ser. Eu queria que as coisas fossem mais fáceis no sentido de que houvesse mais incentivo e um modo de produção mais favorável. Isso é o que eu gostaria. Mas isso não depende muito do meu trabalho. A Mino está onde eu gostaria que ela estivesse agora. Não tem nenhum autor que eu gostaria muito de lançar, que eu não tenha lançado ainda. Quer dizer, com exceção do Gipi (Gian Alfonso Pacinotti, autor de A Terra dos Filhos (Veneta, 2018)) que, quando eu ia negociar, descobri no mesmo dia que já havia fechado com a Editora Veneta. Mas isso é uma felicidade, porque a Veneta está lançando e tudo bem. 

Eu tenho uma sorte incrível de estar com todo mundo com quem eu queria trabalhar eu estou – de alguma forma – trabalhando. E é uma felicidade quando vai surgindo gente nova.

Então daqui a 10 anos eu queria que a Mino não tivesse ficado para trás. É minha única preocupação. Quando eu falo “para trás” não é em termos de poder ou dinheiro. Não. Eu queria que nós fôssemos atuais como a Mino é hoje.

Hoje é uma editora que está antenada com o que está acontecendo no universo dos quadrinhos. Quando eu falo isso, não é só publicar coisa nova e moderna. É também fazer resgate. A Mino olha para o que está acontecendo com o quadrinho. E o meu desejo – se a Mino ainda existir daqui a 10 anos –  é que a gente tenha essa mesma vontade e esse mesmo olhar para o quadrinho nacional e mundial que a gente tem agora. 

Raio Laser:  A Mino é reconhecida como uma editora de elevada qualidade gráfica (impressão, capa, papel e etc). Você está plenamente satisfeita com os livros da Mino enquanto produto físico ou ainda sente falta de algo que poderia fazer e não faz em razão de medidas como redução de custos?

Os Morcegos-Cérebros de Vênus e Outras Histórias (Mino, 2017)

Janaina de Luna: Bem, quem me conhece sabe – em quinze minutos – que eu nunca vou estar satisfeita com nada... rs. Porque eu sou totalmente workaholic, louca e desesperada.. rs. Eu tenho orgulho do que eu faço, do trabalho que eu fiz, mas eu não estou nem perto de estar satisfeita. Eu comecei sem saber fazer quase nada e agora eu sei quase nada menos um pouquinho... rs. Então eu acho que ainda tem muito chão pela frente. Eu acho que estou só começando, então eu acho que todo livro que sai eu queria ter mudado alguma coisa... rs. Estou longe de estar satisfeita, mas estou orgulhosa. Você consegue entender que são duas coisas diferentes? Eu tenho orgulho. Acho que o trabalho é bom, mas estou longe de estar satisfeita. O dia em que estiver satisfeita, eu morro... rs. Aí eu desisto. Aí eu fecho a Mino e vou aprender a fazer outras coisas. 

Raio Laser: Qual o(a) principal dificuldade/obstáculo/desafio no mercado editorial brasileiro atualmente para editoras do porte da Mino?

Janaina de Luna: Tem dois grandes desafios particularmente difíceis. O primeiro é encontrar autores no Brasil com obras consistentes em quadrinhos mais extensos. Às vezes eu sinto falta disso sim. Mas eu entendo completamente que nosso mercado autoral é algo muito viciante. Mas eu acho que estou me surpreendendo bem nesses últimos tempos, quer dizer, nos últimos meses mesmo, sabe? Eu acho que tem um pessoal que está aí fazendo um material há poucos anos mais direcionado para o quadrinho curto. E editorialmente para a gente é muito difícil colocar coisas muito curtas. E por isso fica todo mundo brigando pelos mesmos autores.

Não porque não haja gente fazendo coisas incríveis, mas é difícil encontrar um Thiago Souto que faça um quadrinho de 200 páginas, sabe? É que demora um tempo para você construir um autor.

Não é do dia para a noite. Não é só o cara falar: “Eu vou começar a fazer quadrinhos hoje!”. O Thiago que neguinho aponta que é um cara novo, tá fazendo quadrinhos há sete anos. Então, demora. Mas eu sinto que nós estamos melhorando muito nesse aspecto. Tem um pessoal com um trabalho muito bom, mas eu quero que eles estejam prontos para fazer obras mais extensas.

O outro desafio que eu acho é a falta de crédito. A gente trabalha – e isso ninguém fala – num sistema muito maluco que é o seguinte: eu vou comprar os direitos e eles são pagos em dólar, o que é já um problema. E aí demora três meses para a gente fazer o livro e eu já tenho de pagar a gráfica. E aí o livro demora mais um mês para chegar na loja. E a loja depois que vende leva uns três meses para me pagar. Então entre o tempo que eu comecei a gastar para o tempo em que eu comecei a receber, lá se vão uns 7/8 meses. E você precisa ter dinheiro para financiar essa operação de 8 meses. E a gente não tem linha de crédito para publicação no governo. E aí e difícil, porque nossa margem de lucro é muito pequena. 

E eu falo isso, porque as pessoas às vezes se esquecem que esse esquema de editora é um negócio e que nós temos que nos sustentar. As pessoas pensam na paixão, no livro... Mas eu tenho que ter dinheiro para me sustentar. E a gente não tem uma linha de crédito que permita isso de uma forma mais saudável. A gente acaba tendo que pagar juros que às vezes estão embutidos nos prazos de gráfica e etc, que acabam corroendo a pequena margem de lucro que temos. Então, depois que as lojas me compram – e hoje é praticamente só a Amazon – demora 90 dias para pagar um livro que eu já paguei os direitos uns 4/5 meses antes. Já paguei o tradutor, já paguei tudo. Essa falta de fôlego financeiro não existe. No próprio BNDES, que poderia ajudar com isso, as linhas de crédito estão praticamente canceladas. E aí é difícil, porque nós somos pequenos. Esse tipo de problema – que ninguém fala – é um dos principais tipos de problema no mercado editorial. 

O Formigueiro (Mino, 2017)

Raio Laser:  É muito comum que os donos de editora digam que não existam muitos critérios para a montagem do catálogo. Fala-se muito que “o quadrinho deve ser bom”. A Mino também segue essa linha ou prefere privilegiar uma estratégia específica como, por exemplo, de divulgar autores independentes? Qual o critério utilizado na hora de escolher o catálogo da editora?

Janaina de Luna: Cara, eu entendo quando a pessoa fala “quadrinho bom”. Às vezes pode ser chato e bobo falar “quadrinho bom”. Eu acho lógico, porque... eu ia falar uma besteira. Eu ia falar que todo mundo quer lançar quadrinho bom, mas as pessoas querem lançar quadrinho que vende. Não tem muito mistério. A gente sabe que tem um pessoal aí que lança umas coisas que a gente fala: “Jesus!”, mas que vendem. Há casos de editoras que são pagas para lançar determinado material. A Mino não é paga para vender e isso já é um diferencial. 

Eu lanço o que eu gosto. E mais do que isso: eu já não estou ficando rica e se eu não lançar o que eu gosto, aí lascou! Rs. A Mino tem interesse em trabalhar o autor, então eu gosto de quadrinhos de alguém que esteja pensando a linguagem. E quando eu falo a linguagem, não é necessariamente a linguagem formal, dos cânones. Eu me refiro a ter alguma coisa a mais, alguma coisa importante, alguma coisa que precisa ser discutida. Eu quero lançar coisas que representem o melhor de um nicho, de um momento. Coisas que sejam como a Coleção Incendiária (Coletâneas da Mino dedicadas a temas e épocas específicos dos quadrinhos. Até o momento já saíram dois álbuns:

Os Morcegos-Cérebros de Vênus e Outras Histórias; e O que havia na caixa da Sam Dora?, ambos lançados em 2017), que registram o melhor que estava sendo feito naquela hora. Eu acho que O Formigueiro de Michael Deforge (lançado pela Mino em 2017) é uma das melhores coisas que foram feitas no quadrinho underground americano. Eu acho que o Seth (autor de A Vida É Boa, Se Você Não Fraquejar (Mino, 2018) e Wimbledon Green (A Bolha, 2014)) é um dos expoentes das HQs. Então, a gente tenta fazer um panorama do melhor que existe em várias... Quando eu quero lançar algo do Diego Gerlach, eu faço isso porque acho que ele é o melhor talvez nesse tipo de quadrinho que ele faz. O que a gente quer é ter um catálogo que seja o melhor. Shiko (autor de Lavagem (Mino, 2015) e Azul Indiferente do Céu (Mino, 2014)), para mim, é um dos melhores autores no que é feito nacionalmente no quadrinho de gênero. Porque a gente tem um Marcelo D’Salete (autor de Cumbe (Veneta, 2014) e Angola Janga (Veneta, 2017) e muita gente boa. Mas quem está fazendo quadrinho de gênero? Porque o Shiko faz quadrinho de gênero. A gente fez Lavagem, que é um terror. Estamos lançando dele Três Buracos, que é um bangue bangue no sertão. Enfim, são quadrinhos de gênero. E quem está fazendo quadrinho de gênero que seja tão melhor que o Shiko? Não tem. 

Então temos essa preocupação de fazer um retrato do melhor de cada coisa. Isso, porque ainda existe muito preconceito no quadrinho, contra super-herói, por exemplo. Tem gente que acha que super-herói é ruim e bom mesmo é – sei lá – só o quadrinho alternativo. E isso não se restringe apenas ao quadrinhos. Tipo: quem lê Pedro Franz (autor de Suburbia (Hunter Books, 2012)) acha que Jeff Lemire é uma porcaria, porque saiu na Image ou porque fez o Arqueiro Verde. E é aquela coisa: quem leu Pedro Franz nunca nem leu o Arqueiro Verde, e vice-versa. 

Eu sou - de verdade - apaixonada por quadrinhos. Então, para mim, eu me empolgo lendo a Coleção Incendiária e Jack Kirby. E também me empolgo lendo Jason (autor de Sshhhh! (Mino, 2017)). Eu acho que precisa ter essa mistura. É lógico. Isso sou eu como editora. Cada um escolhe o que quer ler. Então, estou trabalhando num projeto agora que envolve autores nacionais, como o Mike Deodato, e está ficando divertidíssimo. E tem gente que tem preconceito, porque o cara faz super-heróis.  Eu acho isso uma bobeira. Quando a gente resolveu trazer o Gideon Falls, da Image, perguntaram: “Mas, pô, você vai lançar Image?”. Eu falei: “Cara, mas a Image...? A Image é foda!”

A Image mudou muita coisa no mercado, tá ligado? Do mesmo jeito que a Fantagraphics é foda. Eu quero lançar o melhor da Fantagraphics, o melhor da Image... Se eu pudesse, eu pegava o melhor da DC, o melhor da Marvel, mas infelizmente... rs. É aquela coisa: eu vou ter a chance de lançar o Mignola e não vou lançar o Mignola? Mignola é o melhor no que ele faz. E o Richard Corben (autor de Ragemoor (Mino, 2018) e Espírito dos Mortos (2017))? Já temos dois e ainda vamos lançar mais um. Cara, eu quero lançar quadrinho de gênero. Para mim, o Corben faz parte do que se faz de melhor no quadrinho de gênero no mundo. Então é isso. Queremos fazer um panorama do que é bom no quadrinho mundial. 

Raio Laser:  Última pergunta: Em que momento você sente mais prazer em ser editora da Mino? É na hora que você vê o livro pronto? Ou é na hora que você está escolhendo qual será o próximo lançamento? O que te dá mais satisfação?

Janaina de Luna: Cara, o livro pronto para mim não dá prazer. Quer dizer, não é que não dá prazer, mas é que eu nem dou muita importância. Para mim, o livro pronto dá um desespero, pela obrigação de verificar se não há nenhum erro ali. Depois que o livro já está pronto, o meu trabalho já acabou. O que me dá mais prazer é trabalhar com os autores. É sentar com o Shiko para ficar a noite inteira discutindo sobre um personagem que pegou um rumo diferente. Por exemplo, no Três Buracos, a história ia ter um casal (hetero) e o Shiko mudou para que o casal fosse homoafetivo, com duas meninas. E a gente fica o dia inteiro discutindo por que isso, por que aquilo. Isso me dá prazer. Pensar: “Pô, vou lançar o Jason. Qual vai ser o formato?”. Isso me dá prazer. A parte criativa me dá prazer. O resto é só parte do trabalho. Depois que o livro foi para a gráfica, já não tem mais nenhuma importância.

Raio Laser:  Isso me lembra determinados integrantes da Raio Laser, que depois de receberem as compras de gibis, nem chegam abri-los e já estão pensando na próxima aquisição...

Janaina de Luna: A gente é doido né?...rs. 

Lavagem (Mino, 2015)

Rapidinhas Raio Laser #06

Indo direto ao ponto desta vez, esta é a sexta edição das nossas Rapidinhas (I.E.: resenhas curtas de quadrinhos autorais nacionais). Ela contou com o esforço de quase toda a equipe Raio Laser. Vejam que as Rapidinhas vão ficando mais longas e menos rápidas. Não importa. São mais onze textos fresquinhos para você. (CIM)

Caso queira aparecer por aqui, envie seu material para:

RAIO LASER

SQS 212 Bloco G Apto 501.

Brasília-DF

Brasil

CEP: 70275-070

por Márcio Jr., Pedro Brandt, Marcos Maciel de Almeida e Ciro I. Marcondes

MUNDO PARALELO Aventura e Ficção nº 1 – Vários (Independente, 2016, 152 p.): Pode parecer estranho, mas histórias em quadrinhos adultas (ou quase) já foram um meio de comunicação extremamente popular no Brasil. Majoritariamente encontradas em bancas de revista, custavam o equivalente a uma ou duas carteiras de cigarro, e suas tiragens mais baixas ultrapassavam com tranquilidade dez mil exemplares. Neste panorama, as revistas mix eram bastante comuns e tinham por característica trazer diversos autores em uma mesma edição, quase sempre em narrativas curtas e fechadas.

Animal, Circo e Heavy Metal, entre tantas outras, tiveram seu momento e deixaram saudade – saudade essa que o editor e roteirista Walter Klattu deseja matar com Mundo Paralelo: Aventura e Ficção (subtítulo saborosamente surrupiado da saudosa revista publicada pela Editora Abril).

A intenção é das melhores. Nesta primeira edição – houve um nº zero anterior, importante lembrar –, Klattu nos entrega um calhamaço com 13 histórias, em excelente impressão, por módicos R$ 8,00. A capa, belíssimo trabalho da dupla Eduardo Cardenas e Eduardo Schaal, tem envergadura para estampar qualquer Metal Hurlant da vida, e ainda traz uma crocante aplicação em prata no título. Se o miolo da revista apresenta um timaço de desenhistas, a maioria dos roteiros se debate contra o complexo labor das narrativas curtas.

Klattu e Cardenas abrem a picada com Obuz, uma HQ de 16 páginas – que necessitaria outras cem para desenvolver adequadamente a miríade de conceitos e personagens apresentados. Cardenas retorna com sua arte fantástica em O Sol Negro – trama vampiresca que também clama por mais espaço –, e Próto 9, onde arte-finaliza Sebastião Seabra, valorizando a qualidade do desenho do veterano. E por falar em veteranos, é sempre um prazer reencontrar o craque Mozart Couto, mestre do quadrinho nacional e nosso maior expoente no gênero Espada & Magia. Em Urian, Mozart mostra o que todos já sabemos: que ele faria um Conan à altura de John Buscema. Guerreiros também estão presentes nas duas HQs ilustradas com maestria por João Azeitona: A Caça e Zulu – o roteiro mais bem resolvido de toda a edição, autoria do macaco velho Gian Danton.

Loop é a única HQ de Mundo Paralelo em que o texto (inventivo e inusitado) é superior ao desenho. Dois feras escolados dão um gás extra aos roteiros de Klattu: Em O Velho Bunko, Rodrigo Rosa manda um storytelling impecável; e Fabio Cobiaco cria um balé de movimento impressionista em Arena. Volcânia Blues, Vór, Macarius e Muru, ainda que diferentes entre si, apresentam a mesma estrutura: desenhos no mínimo eficientes para tramas que não se concluem, dando a impressão que novos capítulos virão para desenvolver melhor os personagens apresentados. Se a ideia for mesmo essa, o hiato entre as edições cria um sério problema de continuidade para as HQs.

De qualquer forma, Mundo Paralelo é um gibizaço. A coragem (e paixão) de Klattu em reviver um formato de publicação em desuso há pelo menos duas décadas é digna de muito mais que louvor: é digna de leitura. Infelizmente, a revista segue o velho esquema de distribuição independente, em lojas específicas e internet. Gostaria muito de ver os resultados de uma Mundo Paralelo distribuída pelas bancas do país. Por apenas oito mangos e com o recheio que traz em si, tenho quase certeza que o apelo junto ao público seria surpreendente. (MJR)

BlitzkriegBruno Seelig (Independente, 2016, 14 p.): Traço fino, angulações bem pensadas, bom timing, certo tom cartunesco (pero no mucho) e uma historinha de 14 páginas. Boa impressão e sombreamento na coloração azulada, múltiplas referências, uma lição simples e singela.

Blitzkrieg, do gaúcho Bruno Seelig, é uma aposta nostálgica (“Oh ! que saudades que eu tenho / Da aurora da minha vida, / Da minha infância querida / Que os anos não trazem mais!”), tipo ressaca de Stranger Things, no imaginário “moleque” da sexta série. O acabamento é lindo, o cuidado com expressões, letreiramento e design de personagens é ótimo e as interações entre eles são bastante aceitáveis. Me incomoda apenas o tom muito “bonzinho” da HQ (tem até uma querela estilo “Luther King x Malcolm X”) e sua mensagem fofa e insípida no final, que me lembrou Garrocho e Damasceno. O texto propõe uma masculinidade na infância repensada segundo ditames contemporâneos de sensibilidade e respeito ao próximo. Ok, bons valores, e o gibi é despretensioso. Mas acho que faltou algum tempero, uma pequena dose de malícia, um princípio de desvirtuação (vejam bem, não tô pedindo pra ser escroto). Dito isso, Seelig é um talento que valerá a pena observar nos próximos tempos. (CIM)

Fim do Mundo André Ducci (Arte e Letra, 2014): André Ducci não economizou esmero durante a produção de Fim do Mundo. O gibi exala grandiosidade e elegância, ambas favorecidas pela edição caprichada e pela fineza do traço. Esta HQ sem palavras – mas jamais muda – narra a viagem de um esquimó em busca de si próprio.

Esta jornada em terrenos nevados, águas profundas e montanhas inexpugnáveis terá por companhia apenas silêncio e solidão, algozes impiedosos para Amyr Klink algum botar defeito.

Durante sua jornada incessante, o esquimó nasce e renasce em diferentes identidades, como que para demonstrar a perenidade de sua obsessão, que se tornou maior que a vida. Bem, pelo menos foi isto que consegui entender. Posso estar totalmente errado em minha interpretação. Mas de uma coisa, eu não tenho dúvidas: o gibi de André Ducci é poesia pura esculpida em formato de arte sequencial. (MMA)

Catacumba - Kiko Garcia (Kikocomics, 2015, 40 p.): Idealizada, escrita, ilustrada, editada e publicada pelo paulistano Kiko Garcia, a revista Catacumba apresenta quadrinhos de terror à moda antiga, ao estilo das clássicas Eerie, Creepy e, especialmente, de publicações nacionais como Kripta, Spektro e Calafrio.

Cada história é sarcasticamente (“Boa noite meus tenebrosos amigos! Então tiveram coragem de descer à sinistra catacumba?”) apresentada por uma criatura, espécie de morto-vivo, que contextualiza aos leitores parte do que virá a seguir. As três edições (a mais recente é de setembro de 2016), com três histórias cada, são temáticas, respectivamente: “Pavor da escada”, “Loiras macabras” e “Antiquários dos horrores”

A narrativa de terror para ser eficiente depende muito da criação de climas, de como as informações visuais e textuais são construídas no sentido de impressionar o leitor, tirar seu fôlego, surpreendê-lo. Aqui – como, em geral, também nos quadrinhos que inspiraram Catacumba – a narrativa é bastante crua, dependendo muito dos textos dos recordatórios e menos das sequências de ilustrações. É um terror que, se não assusta necessariamente pelo que é “falado”, instiga o olhar e, em segundo lugar, alguma curiosidade para saber o desfecho de cada trama – que bebem de causos, lendas urbanas e “histórias que o povo conta”. Destaque para “Revelação maldita”, da edição 2, com uma história digna de Mojica Marins.

Catacumba funciona bem porque Kiko Garcia conhece o território (maldito) onde pisa e, mais do que uma homenagem à antigas HQs de terror, seus quadrinhos transpiram paixão por essa matriz. Seu traço tem algo da carpintaria em preto e branco de alto contraste dos mestres Flávio Colin e Júlio Shimamoto. A maneira como ele junta os painéis dentro da página – com requadros de diferentes tamanhos e cortes – dá uma fluidez onírica ao conjunto. Quem curte essa vibe não pode deixar de conhecer. (PB)

O Intestino EloquenteAndrício de Souza (Editora Espirro, 2015, 154 p.): Bem, fazer uma resenha dos “quadrinhos” de Andrício de Souza é uma tarefa um tanto quanto paradoxal. Afinal, este camarada está no campo do pastiche de tudo e todos, absolutamente. Pastiche dos quadrinhos, quando na verdade ele apenas desenha pessoas reais (com caneta Bic!) recitando “poesia” chula de quinta categoria. Pastiche da própria poesia quando, bem, recitar umas tolices no esquema “batatinha quando nasce” (o famoso ABAB) com conteúdo ultrajante só pode atingir a própria suposta “nobreza” da arte poética, tão ignorada também por tudo e todos hoje em dia. Até mesmo o nome do maluco é um pastiche – de Maurício de Sousa, “patrono”, “godfather”, “tirano monopolizador” do quadrinho nacional. O que sobra disso tudo? Ora, veja bem: alguém que escreve “Se eu te chamar de vagabundo / Será para elogiar / Não há nada mais idiota / Que gostar de trabalhar”, para mim, certamente tem grande valor.

Andrício se refestela na tosquêra. Seu estilo lacônico de escrever (há textos explicativos antes dos “capítulos”, de uma ironia besta, ao mesmo tempo modesta e retardada), encantador de tão prosaico e autista, é de uma simpatia meio que injustificável. Parece algo como um André Dahmer com a cabeça cheia de Zoloft. Nessa linha, avesso do avesso, Andrício vai moendo temas tradicionais da poesia (o amor, o trabalho, a filosofia, a família, Deus) e outros nem tanto (como o cocô e o xixi). É um festival de besteirol inteligente, e chegamos a vislumbrar que, em algum lugar do multiverso, exista um Andrício que é realmente um bom poeta, outro que é realmente um bom quadrinista, e até mesmo um que ocupe

o lugar de Maurício de Sousa no “iron throne” dos quadrinhos nacionais. Dito isso, vale ressaltar a habilidade (uma coisa meio “escola técnica” mesmo) de Andrício em reproduzir fisionomias, gestos e cacoetes de seus personagens, sejam os modelos pessoas famosas ou não. Parte da graça está em observar expressões, detalhes das roupas e estilos destes poetas anônimos. Mas a graça mesmo está em versos inesquecíveis como: “Tive um pesadelo horroroso / De que meus pais estavam transando / Acordei e fiquei bastante aliviado, / Era apenas o mundo acabando.” Jênio! (CIM)

Cabuloso Suco Gástrico – Breno Ferreira (Elefante em Quadrinhos, 2015): CSG foi separado no nascimento de seu irmão, o gibi Quadrinhos Perturbados, resenhado nas Rapidinhas Raio Laser número 5. Assim como na revista de João Rabello, reinam aqui as tiras baseadas em temas aleatórios e com altas doses de ironia. A grande diferença é que, em CSG, temos um desenhista mais pronto, capaz de segurar a onda para retratar suas ideias insanas. O surrealismo dá as cartas aqui, seja por meio dos enquadramentos escolhidos ou pela seleção de temas insólitos, tais como o monstro que sai das profundezas para fazer sua declaração de imposto de renda ou o homem que tem o vaso sanitário como terapeuta. Um dos méritos de Breno é sua habilidade em trabalhar com temas como amor, opressão dos tempos modernos e desesperança com um olhar humorístico que não é nem clichê nem piegas. O que mais me chamou a atenção foram as tiras intituladas “Paródias da Vida da Morte”, nas quais Breno narra o cotidiano da Senhora de capuz e foice que, veterana na arte de testemunhar os momentos finais dos seres humanos, destila a quintessência do sarcasmo. Estas paródias são bem boladas e acho que poderiam segurar um gibi inteiro. Embora peque pela irregularidade na qualidade das piadas,

CSG é uma boa pedida para filosofar e refletir, de forma divertida, sobre os rumos atuais da nossa boa e velha humanidade. (MMA)

Mikrokosmos – Thiago Souto (Independente, 2014, 24 p.): Mikrokosmos tem uma qualidade inegável: a ousadia de se pensar o grid da uma história em quadrinhos como de alguma forma análoga à partitura musical. Segunda publicação de Thiago Souto e lançada na forma de zine, esta HQ tem tratamento refinado no acabamento e coloração (a música, os delírios e o abstrato em geral aparecem em púrpura; o resto, em carregados tons de cinza), além de uma aproximação conceitual interessante. Souto vai misturando a sensibilidade emocional e musical de seu protagonista (ele é um astronauta que um dia foi um grande músico) à resolução pragmática de um problema com sua nave no espaço. Acaba-se ressaltando aquela sensação que temos quando estamos fazendo um trabalho MUITO perrengue e começamos a lembrar da nossa infância, de toda nossa trajetória e sofrimentos.

A presença da música é inegavelmente bela e bem construída, com a mãe do personagem – exímia concertista do “Concerto para piano Nº 2”, de Rachmaninoff. Um dos mais belos do gênero, por sinal – servindo como superego de um protagonista torturado e traumatizado. Um dos melhores momentos é quando Souto equipara a mão que toca piano com aquela que aperta botões da cabine de comando da nave. Mikrokosmos é feita assim, de belas analogias, boa quadrinização e referências eruditas. Fica no meio do caminho entre Astronauta – Magnetar, de Danilo Beyruth, e Aama de Frederick Peeters, ainda que guardadas as proporções de uma produção modesta e zinesca como esta e o status editorial das outras. É certo que Mikrokosmos carrega certa frieza “espacial” na maneira desajeitada de lidar com tantas ambições (é ainda difícil de se deixar levar pelas emoções sugeridas), e a arte poderia ter um detalhamento mais elaborado. Lembra um rascunho, em forma e conteúdo, mas está de bom tamanho para uma produção independente e levemente experimental. (CIM)

Incoerente Coletivo Nº 2; Metrô – Guilherme de Lacerda, Dino Motta, Filipe Henz, Eduardo Calazans, Marmota, Lucas Bonacho (Incoerente Coletivo, 2016, 56 p. e 18 p.): Direto de Taguatinga vem esse coletivo de quadrinhos que só tem a somar à prolífica cena do DF. Assim como outras publicações independentes com participações de brasilienses, como Aerolito e Mandíbula, as publicações do Incoerente Coletivo são irregulares, e há um natural desnível entre os artistas (sem querer criar tretas!), mas o projeto em si é estimulante e interessante. Há força de vontade, boas ideias e a disposição para realizar coisas. Meio caminho andado. O que pintou na minha mão foi a edição número 2 da revista mix do coletivo. Seis artistas dividem suas influências num volume gordinho cheio de histórias cuja bela capa ostenta um Mustang laranja num posto de gasolina perto do crepúsculo. Uma coisa assim “Hopper encontra Tarantino num quadrinho de rua”. Trata-se de cinco histórias, todas bem ajambradas, coerentes narrativamente, trabalhando gêneros diversos (da aventura especial, à aventura marítima, ao cyberpunk, ao drama familiar). Minhas favoritas foram “Sonda 7/9”, por Filipe Henz, com corretos questionamentos sobre nosso lugar no universo, uma arte dinâmica e personalizada, e a eficiente manutenção de um mistério; e “Augusto, o arauto da destruição”, por Marmota e Lucas Bonacho, típico quadrinho de fanboy de RPG, mas com muito carisma nos desenhos meio mangá e humor na dose certa. Lembra as coisas antigas (digo anos 90) de Marcelo Cassaro e aquele Bear, da Bianca Pinheiro. Os outros são um pouco mais amadores, seja na arte ou nas ideias. É preciso o coletivo crescer na robustez da proposta, e fazer algo menos descartável. Mas um passo de cada vez.

O outro gibi, um formatinho adorável chamado Metrô, reúne o mesmo time desta vez para elaborar uma visão coletiva em histórias sobre o metrô no DF. São loucos, crianças, bullys, motoristas. Enfim, gente normal e amalhoada pela vida, sempre de passagem, sendo o transporte público metáfora para certa efemeridade. Não é o tema mais original, mas quem se importa? Sempre funciona. A edição é bastante caprichada, gostosa de se ler, e a qualidade dos sketches (formando uma totalidade conceitual) é maior do que nas histórias individuais da edição 2 de Incoerente Coletivo. Ficamos no aguardo do futuro desses caras. (CIM)

Nanquim Descartável # 4 – Daniel Esteves e vários (HQ em Foco, 2010): As desventuras amorosas de Ju, Sandra e Tuba são o tema principal deste gibi, que se passa na capital paulista. Os personagens, bem construídos, são bastante verossímeis e poderiam, tranquilamente, fazer parte de qualquer turma de amigos no Brasil. Deles, o que mais gostei foi Tuba, uma espécie de Rolo (Turma da Mônica) da Geração Z. Tudo muito bom, tudo muito bem, mas o autor poderia ter dado melhor destino para suas criações. A HQ peca pelo clima de novelão que permeia todas as histórias, especialmente as de Ju. Esta última precisa urgentemente de sessões de terapia para resolver seus problemas sentimentais de modo mais rápido. Talvez a obrigação de ter de pagar pela consulta faça com que ela seja mais objetiva em suas reflexões, já que ela fala mais que qualquer personagem do Chris Claremont. Outra coisa que prejudica o andamento do gibi é a alta quantidade de frases do tipo autoajuda, que só servem para adornar a história com uma suposta profundidade. Em suma, se estiver em busca de diversão do gênero romance juvenil despretensioso, dê uma chance. Se estiver querendo ler algo impactante, fuja. (MMA)

Eu sou um Pastor Alemão; Eu era um Pastor Alemão – Murilo Mendes (Pólen, 2014 e 2015): Esta HQ de agradável visual narra o cotidiano de Cão, um dedicado pastor alemão designado protetor de um rebanho de ovelhas em uma fazenda qualquer. Cão, um profissional verdadeiramente caxias, costuma sofrer bastante nas mãos de uma certa ovelha negra do grupo dos ruminantes,  que parece ter como prazer único azucriná-lo. Esta interação entre o animal certinho e o descolado é bacana, mas poderia ser melhor aproveitada. E esse não é o único senão do gibi. No primeiro volume há utilização da técnica de repetição de cenas com variação dos diálogos, para representar a passagem do tempo. O problema é que o recurso é usado de forma excessiva, e há momentos em que a imobilidade dos cenários e personagens chega a cansar. Embora o recurso tenha seus méritos, não se pode esquecer que a arte sequencial não tem esse nome por acaso e exige, ao menos, pequenas variações no andamento para afugentar a ideia de estar diante de um desenho animado estacionado no mesmo frame. Apesar disso, a repetição intensa dos quadros tem seus méritos, especialmente quando serve de contraste para a aparição repentina de novos enquadramentos. Acostumados com a rotina, os leitores são profundamente impactados pela mudança de ritmo e de escala na narrativa. É bacana escapar da prisão da repetição e desembocar numa cena inteiramente nova, cheia de grandiosidade. É um verdadeiro sonho de liberdade.

Há uma diferença significativa entre os dois volumes. O primeiro tem um final bem bolado, que poderia ter servido como desfecho para a saga de Cão. O segundo tem menos cenas repetitivas, mas peca por não apresentar evolução suficientemente interessante em relação ao que havia sido mostrado antes. A sensação é de estar diante de um suflê requentado. (MMA)

665: The Neighbor of the Beast - A Vizinha da Besta – Tiago Holsi (Céleblo Comics, 2016, 80 p.): Goiânia não possui tradição no campo das HQs. As poucas experiências concretizadas foram pontuais e não tiveram a devida continuidade. Os últimos três anos, entretanto, têm assistido a uma consistente tentativa de superar este estágio embrionário. Novos quadrinistas como Cátia Ana (O Diário de Virgínia), Francisco Costa (A Última Fábula), Ronaldo Zaharijs e Rodrigo Spiga (137) têm dado a cara a tapa em publicações que, mesmo sem atingir a maturidade, apresentam um desejo explícito de profissionalização. Dessa turma, o maior destaque é Tiago Holsi.

Holsi ganha a vida como ilustrador, mas definitivamente seu lance são os quadrinhos. Antes do Juscelino Neco, no auge da constrangedora febre dos livros para colorir, lançou com sucesso – e por conta própria – Zumbi pra Colorir. Na sequência veio a primeira HQ longa, Entardecer dos Mortos, que fez um belo barulho no último FIQ. E em 2016 foi a vez deste 665: A Vizinha da Besta.

O desenho de Thiago Holsi tem os pés fincados no cartum. Sempre acreditei que seu estilo pudesse se prestar a algo mais sujo, ácido, underground. Seu traço traz essa possibilidade. Mas a verdade é que Tiago navega com grande desenvoltura por águas infanto-juvenis, como atesta 665. E aqui ele faz isso com qualidade, perspicácia e um certo grau de experimentalismo.

665 começa com estrutura de livro infantil. Texto nas páginas da esquerda e ilustração nas da direita.

 Dona Graça é uma velhota cegueta que não se dá conta que seu vizinho é o capeta. O enredo segue por aí, mesclando humor leve, design caprichado, desenhos divertidos e ótima colorização. Então é Natal e o Diabo presenteia Dona Graça com um par de óculos que permitem à viúva enxergar a verdadeira natureza do morador do Edifício Babilônia, 666. A velha estica as canelas e, a partir daí, a narrativa toma outro rumo, assumindo-se como uma HQ propriamente dita.

O final é fofo. Mas o que vale é o perfeito timing de Tiago Holsi em estabelecer um preciso ponto de inflexão para sua história e explorar essa virada atrelando forma e conteúdo. A variações da linguagem quadrinística, longe de meros maneirismos, servem àquilo que quer contar. Como roteirista, falta capinar uns lotes. Ele mesmo reconhece isso. E ainda assim é, no momento, o autor mais consistente e preparado do Estado de Goiás. Aposto um frango caipira que, num futuro próximo, ouviremos falar muito desse comedor de pequi. (MJR)