Quadrinhos pra incomodar: Belga e Berger

Quando eu e Pedro Brandt lemos

O lobisomem/A múmia  e Chuva de merda, percebemos que, por díspares que possam parecer estas HQs, havia um certo substrato comum que as unificava, e justificava que as suas resenhas fossem publicadas juntas. Estes dois quadrinhos não são apenas igualmente incômodos (em sentidos diferentes), mas trabalham releituras da própria tradição do quadrinho brasileiro. Afinal de contas, se tivemos uma longa tradição de quadrinhos de horror (especialmente nos anos 50 - aquelas coisas de Colonnese, Jayme Cortez, Colin, Shimamoto, etc.), esta geração mais underground contemporânea traz novamente o horror à tona, mas sem as ingenuidades da nossa era de ouro. O corpo, suas purulências e excrescências, se torna aqui o objeto de análise e horror. Se Belga o faz por meio de metáforas doentias, Berger usa o humor punk. É tudo lindo. E incômodo. Seguem os textos, um de minha autoria, e outro do Pedro. (CIM)

Anatomia de um filha da puta nada ordinário

por Ciro I. Marcondes

O quadrinista e artista plástico Eduardo Belga não é um filha da puta qualquer. Digo isso sem fazer qualquer julgamento e sem querer enfiar-lhe uma camisa de força moralista. Digo isso porque, ao que me parece, ele pertence à estirpe dos desgraçados mutarellianos, ou seja, a um universo de infelizes glorificados por suas paixões abstrusas, por sua dedicação implacável aos seus prazeres secretos, pela honestidade brutal com que aceitam, compreendem e reproduzem a natureza de seus próprios corpos, em um processo infinito de expiação de si próprios. Filhas da puta quaisquer somos nós, eu e você que está me lendo agora, com nossos túmulos de recalques e icerbergs de traumas submersos, buscando pequenas portas para perversões dentro de um pesado sistema interno de regras e regulações.

Estas impressões nos marcam após lermos o primeiro trabalho solo de Belga, O lobisomem / A múmia, lançado pela coleção Franca do selo Narval, de Rafael Coutinho, que tem a intenção de explorar com liberdade radical a mais profunda intimidade de seus artistas. Bem, atiçar um artista como Belga com uma proposta dessas é mexer num vespeiro de vespas marinhas, e o resultado não é apenas desconcertante. É estarrecedor. A edição é dupla, e precisa ser virada do avesso para se ler cada “história” alternadamente. Na jaqueta que serve como capa, três rostos do próprio Belga, desenhados com precisão anatômica: um deles esfacelado, atropelado; outro já reconstituído, costurado; e outro de defunto maquiado, pronto para o enterro. É um aviso fúnebre do que está por vir.

As duas histórias representam o próprio Belga como personagem de suas fantasias, ambas em fetiches extremos: em “O lobisomem”, ele parte do mote dos Stooges (“I wanna be your dog”) para, em grandes quadros panorâmicos (sem qualquer decupagem, portanto), levar a fantasia de Iggy Pop a uma literariedade gráfica obviamente perturbadora, e de maneira autorrepresentada: Belga é prefigurado como um cachorro (macho ou fêmea), e, acompanhado de frases como “pra andar por aí cheirando o cu dos outros” e “pra achar uma carniça e me refestelar nela”, ele surge como desejo cru e primitivo, sem qualquer cerimônia, como se fosse a própria antítese do pudor. Na segunda, “A múmia”, ele é espécie de cientista/taxidermista que parte de um esqueleto puro, sentado e olhando-o de frente, e, passo a passo, constrói a sua bizarra boneca erótica em cima dele, para depois consumar o ato necrofílico a partir de uma decupagem seca, desta vem em quadrinhos.

À parte a identificação óbvia com a morbidez e parafilias, em um estilo gótico atualizado (a associação com monstros “clássicos” folclorizados pela literatura vitoriana, como o lobisomem e a múmia, não é à toa), sobressai-se, na arte de Belga, sua visão refinada de anatomista. Como se pode ver em sua mínima preocupação com a decupagem, a narrativa e a mise-en-page em si, ele não está muito interessado em fazer quadrinhos. Suas dimensões referenciais são ainda mais longínquas. Logicamente, poderíamos parar nas menções a Mutarelli ou Crepax, mas eu gostaria de recuar mesmo às lições de anatomia de Da Vinci, a Courbet, Francis Bacon ou Lucien Freud. Está evidente que, para Belga, a expressão máxima da arte reside na representação do corpo, em sua transubstancialidade, seu eterno estado de metamorfose, casulo para um estado libidinal permanente do qual ele não é mero reflexo, mas sim simetria, duplo consagrado no corpo do próprio mundo. Daí o até mesmo delicado e meticuloso trabalho em ilustrar passo a passo, em “O lobisomem”, a morte do cachorro a partir da evisceração, e a reconstrução do corpo, a partir das dinâmicas do desejo, por meio da taxidermia em “A múmia”. Mesmo o leitor pode fazer as vezes de “Dr. Frankenstein” ao destacar, do encarte, partes de action figures (“bonequinhos”) e construir, por si próprios, suas versões dos corpos do lobisomem e da múmia.

Conversando com Belga sobre sua obra repulsiva e genial, veio a confissão de que havia, neste trabalho, a ideia de dialogar também com o pop, com estes monstros imaginários, com estas imagens dos contos de terror. Repensando o quadrinho após ouvir este relato, percebi o quanto isso fazia sentido se pensarmos que o pop (seja na figura do “lobisomem juvenil” de O garoto do futuro ou na múmia de Brandan Fraser), pudico, anódino e asséptico (tal qual a chamada “cultura nerd” que nos assombra hoje em dia), precisa deste empurrão em direção à filhadaputagem de Eduardo Belga para abrir os seus olhos e perceber que seus ídolos caídos são feitos deste mesmo material espúrio e em putrefação.

Assim, torna-se educativo ver a múmia, originalmente concebida pelos antigos como valise para a

 vida eterna, se transformar em objeto de necrofilia (ressaltando as pulsões de vida e morte freudianas). Da mesma forma, o cachorro, hoje a coqueluche de brinquedo de uma burguesia assustada demais para encarar sua própria reprodutibilidade, retorna à sua forma instintiva, canibal e incestuosa, num frenesi libidinoso baixo demais para podermos nos recordar que isso também está dentro de nós. Não à toa, isso me lembrou o lobisomem estuprador com que Coppola representou o Drácula em seu filme. Mas Belga foi além. Sua filhadaputagem foi desnudar estas relações literalmente até os ossos, e este ultrajante é a matéria prima com que ele constrói sua arte.

Gostaria de terminar este texto devolvendo outra canção punk ao Belga, pensando em sua própria hipotética resposta a estas palavras.

Vamos de Misfits:

an omelet of disease awaits your noontime meal

her mouth of germicide seducing all your glands

i ain't no goddamn son of a bitch

you better think about it baby

O Lobisomem/A Múmia

De Eduardo Belga. 56 páginas (cor/p&b). Lançamento: Cachalote. R$ 28

Poesia de banheiro elevada à arte

por Pedro Brandt

Gostar de Chuva de merda não é para qualquer um. Calma! Estou me referindo ao título da coletânea de quadrinhos de Luiz Berger lançada recentemente em parceria pelas editoras Gordo Seboso e Ugra Press.

São 52 páginas (produzidas entre 2011 e janeiro de 2015) de escatologia nas quais convivem diarreias, caganeiras, flatos, coprofagia, sexo doentio, canibalismo, cocô, doenças venéreas, vômitos, infanticídio, fezes, satanismo, gente feia, demência, zoofilia, excrementos, cerva vagabunda, drogas, sangue, suor e vísceras.

Pode não parecer, mas trata-se de um trabalho fino. Explico: Berger está naquela categoria de autores que conseguem fazer o grotesco palatável, convidativo aos olhos, tal qual Crumb, Marcatti, Ed “Big Daddy” Roth e Basil Wolverton – todos, imagino, referências no trabalho dele. Berger aplica volume e elasticidade com muita destreza em seus desenhos, e consegue deixar tudo muito sujo e carregado na medida. O resultado é visível o suficiente sem parecer limpo e sem nublar a compreensão das páginas, todas muito bem-construídas, com angulações e enquadramentos diversos. A plasticidade dos desenhos e a quase fofura da aparência dos personagens – por mais paradoxal que isso possa parecer – mais atraem do que repelem. Quem se lembra da Gang do Lixo sabe do que estou falando.

Ajuda a digestão o sempre presente alívio cômico das HQs. É quase como se não estivéssemos lidando com assuntos tão intestinais. A sensação é diferente, por exemplo, de quando lemos quadrinhos bizarros e carregados de uma carga psicológica tensa, opressora, que exigem mais estômago, como os mangás de Suehiro Maruo e as obras antigas de Lourenço Mutarelli. Com o grotesco suavizado, por assim dizer, cabe ao leitor se divertir – sem peso na consciência – com as situações repugnantes apresentadas pelo autor.

Como dito anteriormente, a bizarria e o ultraje está por todo lado. Enquanto o carismático Rato Robson se lembra com afeto da gatinha que lhe passou uma DST, o Dr. Zárgov nos apresenta seu plano de dominação mundial. Seu Raimundo, por sua vez, entra numa espiral de loucura, e Juan, o pervertido, nos apresenta uma galeria de freaks. Sobra até para o marinheiro Popeye, Luluzinha e Bolinha. Detalhar as tramas – curtas, de rápida leitura – seria estragar o prazer de quem decidir se aventurar com Chuva de merda.

As histórias funcionam muito bem, especialmente pela arte e pelo domínio da narrativa gráfica. Mas não dá pra não perceber que os argumentos têm algo de lugar comum, como se já tivéssemos lido essas histórias antes ou as escutado na mesa de um bar qualquer. 

Isso, entretanto, não diminui a qualidade do trabalho de Berger aqui compilado. Pelo contrário. Elevar a poesia de banheiro ao estado de arte é tarefa para os realmente talentosos.

Chuva de merda

De Luiz Berger. 52 páginas (16 coloridas). Lançamento: Gordo Seboso e Ugra Press. Tiragem: 500 exemplares. R$ 18.

Teia de aranha em quadrinhos

por Ciro I. Marcondes*

Uma casa de madeira junto a um farol na praia. Um homem tremendo, em aparente estado de intensa angústia e sofrimento, espera na porta. Uma bela mulher nua o observa da janela. O homem fuma, cospe sangue, o mar bravio se agita. Ele segue neste estado tremeluzente, elétrico, impassível. Um carro sai pela enseada. Uma história de pesadelo tem início. Quem são este homem e esta mulher? O que significam estas cenas? A que tipo de interioridade se conectam? De que inconsciente óptico fazem parte?

Estas imagens fazem parte do começo de Torpor, que o pernambucano Mateus Acioli lançou em 2014 pelo selo Narval para a coleção “Franca”, que é uma espécie de carta branca para os quadrinistas mais talentosos desta geração independente expressarem sua intimidade artística, suas ideias mais livres e radicais. São imagens que anunciam um submundo onírico e oblíquo, de difícil penetração, mas de acesso livre a um fluxo de impressões fortes, revisitando os universos selvagens do sexo e do torpor da vida e da morte. Trata-se de uma história silenciosa e carregada de uma iconografia que varia entre a psicanálise e o ocultismo, sempre com uma ação desconfortável na mente.

A primeira impressão que temos ao nos depararmos com os quadrinhos de Acioly é a de um certo desdém. O nosso, pela frouxidão da narrativa, pelas lacunares arestas abertas, que parecem, de início, um recurso fácil; e o dele, pelo “desleixo” no desenho, bastante simples, minimalista, onde até o traçado dos requadros é tremido e irregular. Avançando em leituras e releituras desta obra cíclica e infernal, percebemos, porém, que esta impressão é um erro. É como acontece com outros quadrinistas de estilo elementar, como Rafael Coutinho ou o francês Johann Sfar: estes quadrinhos estão em função de um olho arquetípico. Não são nem narração, nem documento e nem poesia, mas são todos ao mesmo tempo.

A escolha por uma obra quase inteiramente silenciosa não é por acaso. A jornada de um homem em direção ao segredo do seu desejo e, por fim, à experiência da morte, necessita de um arrojo que as palavras não comportam – a não ser que estejam em estado de poesia, quando aparecem aqui –, e a imagem crua e selvagem, sem referente, aparece como uma solução. Ela liga o torpor febril do protagonista à linguagem do sonho, e a associação livre, por meio da metamorfose destas imagens, se mescla a uma grande variedade de propostas para as páginas e os quadros. O resultado é um mapa de signos de morte e desejo que se apropriam do homem em seu estado limítrofe. Imagens da natureza se mesclam a estes signos para trazer também um sentido fugidio, profano e espectral para a figura feminina, não muito longe do que Lars Von Trier fez em Anticristo.

Através de uma rica cena da experiência de quase-morte, potente como uma martelada, somos definitivamente abatidos por esta história em quadrinhos sintética e intensa. Ela enfim nos domina com seu impressionismo cheio de sinestesias, e qualquer desconfiança inicial se dissipa. As imagens finais (um sino rachado, uma caveira com pinos, um salto feminino), o que significam? Mais do que elaborar um discurso para os personagens, elas cumprem bem a função de hipnotizar e deixar em estado de torpor também o leitor. Em transe, automaticamente recapitulamos os signos do início, reabrimos a revista, voltamos reiteradamente a este entrelugar que a obra nos coloca. Um triunfo milimetricamente calculado, uma teia de aranha em quadrinhos paranoicos. Sejamos vítimas dela. 

*Publicado originalmente no jornal Suplemento

Nº 03