Miracleman: construção do mito em três atos

Miracleman capa.jpg

por Marcos Maciel de Almeida

No dia 21 de março o pessoal da Raio Laser fez algumas indicações de leitura para a quarentena. Eu sugeri as 16 edições de Miracleman feitas por Alan Moore no início dos anos 80. Bem, já que eu estava indicando, resolvi também passar pela experiência de maratonar o material, pois havia passado um tempo desde a última vez em que havia me debruçado sobre ele. Valeu a pena? Já adianto que sim. Tanto que resolvi escrever um texto mais completo sobre a importância dessa obra que, para mim, merece figurar lado a lado entre os grandes trabalhos do Bruxo de Northampton.

A análise será dividida em três partes, seguindo a disposição dos encadernados que compilaram a saga. Particularmente, acredito que o transcorrer da série assemelhe-se à construção das três partes principais de uma casa. Moore, num primeiro momento, lançou os alicerces sobre os quais a obra seria baseada. Em seguida, ergueu a estrutura que sustentaria este novo mito. Finalmente, montou a cobertura da mansão tendo o cuidado de não deixar as telhas muito fixas, afinal não se pode impor limite para o voo dos deuses e da imaginação.

Miracleman um sonho de voar.jpg

Por algum motivo há avaliações em profusão na internet sobre o primeiro volume, sendo praticamente inexistentes análises acerca das edições subsequentes. Este fenômeno poderia ser explicado por várias hipóteses. Uma delas é que obviamente os números iniciais atraem mais leitores, gerando, em consequência, maior número de opiniões, em blogs ou canais do Youtube. O que me causa estranhamento é que, aparentemente, grande parte do público que acompanhou o início abandonou o barco em algum momento posterior, já que as fases seguintes são pouco comentadas. Bem, para quem pulou fora, fica meu sincero lamento.

Livro Um – Um Sonho de Voar

Para que uma casa seja bem feita é essencial que sua base seja assentada sobre uma fundação sólida. É exatamente isso que o mago barbudo faz aqui. Fazendo uma bela lembrança do legado original do personagem, criado por Mick Anglo, e que bombou durante quase uma década (1954-1963) no Reino Unido, Moore prepara o terreno para que o Miracleman, repaginado, possa trilhar novos rumos. No começo da série, o alter-ego do herói, Michael Moran, havia se esquecido da palavra mágica que lhe dava poderes e levava uma vida ordinária, sem suspeitar que podia se transformar no grandioso Miracleman, cópia cuspida e escarrada do Capitão Marvel, inicialmente da Fawcett e posteriormente da DC. Um belo dia ele se recordou da palavra gatilho e – como no clássico de Wilson Simonal – vestiu azul e sua sorte então mudou. Era o retorno para um mundo de aventuras e glórias. Como diria um amigo meu: “Se algum dia foi pobre, nem lembrava mais”.

Além do violento confronto com seu ex-sidekick, Kid Miracleman, que havia se tornado um vilão da pior espécie, destaco nesse livro a parte final, em que se revela a origem do herói. Numa história que lembra bastante a chocante “Lição de Anatomia” do Monstro do Pântano – também de Moore e lançada posteriormente –, a gênese do personagem é mostrada num plot twist desconcertante. Sem desmerecer a fase original, mais ingênua, de Miracleman, Moore lança as bases para uma completa reformulação do herói em particular e do gênero super-heroístico como um todo.

Essa história, não por acaso batizada de “Zaratustra”, remete ao conceito do Übermensch de Nietzsche. Para o filósofo alemão, surgiria a era dos “super-homens” que venceriam o niilismo, inaugurando um novo sistema de valores morais para a humanidade. E Miracleman, potencialmente, seria esse Übermensch. Guiado pela ética super-heroística, o protagonista, de poderes quase divinos, seria a salvação da lavoura.

Resumo da ópera? Neste primeiro volume temos o despertar de um Deus.

Miracleman síndrome de rei vermelho.jpg

Livro Dois – Síndrome do Rei Vermelho

O Rei Vermelho, de Alice no País das Maravilhas, está sonhando e nenhum dos outros personagens tem coragem de acordá-lo, por temerem serem parte de seu sonho. O despertar do soberano seria, portanto, a ruína de Alice e seus amigos, que seriam tragados para o esquecimento. Por meio dessa alusão ao clássico de Lewis Carroll, Moore alerta para os perigos do despertar de Miracleman, afinal ninguém saberia o que poderia ocorrer numa realidade que passaria a contar com a presença de divindades super-humanas.

Nessa fase da história, Moore aprofunda o mito em torno de Miracleman, construindo as colunas e vigas que sustentarão os voos mais altos que serão alçados pelo seu Superman. Fazem parte do recheio a menção à tecnologia alienígena que contribuiu para a criação de Miracleman, o parto de sua filha, numa das cenas mais explícitas jamais vista na história dos comics , e o gradual aparecimento dos personagens que farão parte do dodecateão olímpico de Miracleman que, obviamente, reservará para si o papel de Zeus.

Verdade seja dita, o segundo volume serve apenas como transição para o terceiro, momento em que o bicho pega geral. Podemos dizer então que, após acordar, Deus ainda está grogue e tenta, de forma cambaleante, sacar o que está acontecendo. E não há nada de estranho nisso, afinal passou quase duas décadas dormindo o sono dos justos.

Livro Três – Olimpo

Sempre achei os versos iniciais de “Fixing a Hole”, dos Beatles, bastante enigmáticos. “I´m fixing a hole where the rain gets in and stops my mind from wondering... where it will go”. Após várias audições passei a acreditar que o trecho em questão falasse sobre o desejo de permitir que o próprio inconsciente vagasse livremente pela Terra. Se isso for verdade, creio que Moore também estivesse propositadamente deixando espaços livres na cobertura do Olimpo que imaginou para abrigar os super seres de Miracleman. Essa espécie de “teto conversível” veio bem a calhar, porque depois dos eventos do terceiro volume, não seria nada fácil engaiolar os novos deuses do panteão olímpico.

Contado de forma retrospectiva em primeira pessoa pelo protagonista, o último livro é todo formado por capítulos que remetem à Mitologia grega. Em “Cronos”, Miracleman enfrenta as criaturas indiretamente responsáveis pela sua criação, numa trama que remete ao nascimento de Zeus e seu confronto com o Titã Cronos. Em “Hermes” somos tragados numa jornada pelos confins da galáxia e devidamente introduzidos às raças alienígenas que dominam o universo. Essa “star trek” tem highlights incríveis, como na splash page abaixo, em que as cores são usadas como ferramenta narrativa. Como explicado nos extras da edição encadernada norte-americana: “cada quadro evoca uma cor do espectro para ilustrar o esplendor de mundos alienígenas e a nova lente pela qual Miracleman enxerga a vida”.

Miracleman splash page.jpg

Do mesmo modo, quando Miracleman retorna para a Terra e para sua esposa, a grade de quadros é monótona e claustrofóbica, em comparação:

Miracleman contraste.JPG

“Panteão” é um dos meus capítulos favoritos. Os acontecimentos das páginas são sempre anunciados por cenas de uma espécie de “dança cósmica” de Miracleman. Cada gesto emula a lembrança daqueles momentos para o herói, evocando perda, arrependimento e angústia. Também há espaço para o insólito e sinais de alerta para um devir trágico. A filha do herói, ainda recém-nascida, dá uma banana para ele e vai embora de casa. Quando retorna, demonstra tamanha independência que não seria improvável imaginar o desenrolar de uma nova Titanomaquia. O penúltimo capítulo traz a batalha final entre o niilismo personificado pelo Kid Miracleman e a nova ordem a ser trazida por Miracleman. E o desfecho do confronto é, sem dúvidas, uma das cenas mais impactantes – senão a mais impactante – da história dos supers em todos os tempos.

Miracleman dançando e rodando.jpg

O último capítulo, “Olimpo”, traz a utopia planejada pelo super-homem de Nietzsche. Aqui, Miracleman assume sua devida posição como Deus e cria uma sociedade pós-socialista. Uma de suas primeiras providências, por exemplo, é a extinção do dinheiro. Mas as mudanças trazidas pelo autopropalado arauto da evolução são objeto da desconfiança da população e do iconoclasta Moore, que lança pistas de que o futuro talvez não seja tão promissor. Em uma das páginas, um dos personagens lê um jornal com a seguinte manchete: “Sonho ariano ou pesadelo branco?”. A frase faz referência ao discurso nazista, que se apropriou de muitas das ideias de Nietzsche. Fica então lançada a pergunta se o herói seria o salvador do mundo ou seu ditador mais bem sucedido.

Durante todos os capítulos o leitor é brindado por pequenas imagens da residência de Miracleman, seu Olimpo particular. Somente vislumbrado na cena final, o imóvel é um desbunde tão desvairado que deixaria Gaudí babando de inveja. É uma casa majestosa, feita para deuses. O pé direito é altíssimo e denota morada para seres alados. Sua característica mais impressionante, entretanto é sua aparência etérea, como objeto feito de matéria onírica. Não à toa muitos apontam semelhanças entre o Olimpo de Miracleman e diversas páginas de Little Nemo in Slumberland. Como apontei antes, referências a sonhos não são elementos estranhos no gibi, estando presentes nos títulos dos dois primeiros volumes: “Um sonho de Voar” e “Síndrome do Rei Vermelho”. Neste derradeiro encadernado, entretanto, o rei já está plenamente desperto. O problema é que o pesadelo pode estar apenas começando.

vislumbre do olimpo.jpg

Conclusão

Embora hoje seja lugar comum falar em heróis escritos sob premissas realistas, Miracleman destaca-se por ter sido a primeira HQ tratar o tema com propriedade, antes de baluartes como Watchmen e Cavaleiro das Trevas. Assim, o bruxo barbudo foi pioneiro em mostrar que combates entre super-humanos gerariam consequências drásticas, como vemos na página abaixo:

“As lendas contam que o carro que lancei contra Kid Miracleman estava vazio. Sinto muito, mas isso não é verdade”

“As lendas contam que o carro que lancei contra Kid Miracleman estava vazio. Sinto muito, mas isso não é verdade”

Nas inúmeras menções às histórias originais do personagem, das décadas de 50 e 60, Moore inseriu uma espécie de alarme na cabeça de Miracleman, que estranhava o fato de que os confrontos daquele período nunca causavam danos físicos e materiais realmente graves. Quando despertou para a realidade, Miracleman percebeu o tamanho do impacto positivo ou negativo que as divindades eram capazes de produzir na vida humana. E então mudou o mundo à sua volta. Ninguém foi necessariamente mais feliz depois disso. No fim das contas, o grande mérito de Moore foi dar uma resposta à altura para a pergunta: “Por que não escrever um super-herói como um ser realmente divino, sem restrições ou limites humanos?”. Para saber, basta ler Miracleman.

imagem final.jpg