Mapinguari, de Gabriel Góes e André Miranda: o folclore como revelação

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O romance gráfico Mapinguari, dos brasilienses Gabriel Góes e André Miranda, foi lançado pela WWF-Brasil no finalzinho de 2018. Trata-se de um dos maiores feitos da HQ da capital. Republicamos aqui, portanto, dois textos feitos pelos escribas da Raio: uma resenha de Pedro Brandt para a Revista Roteiro, e a introdução que eu fiz para o próprio livro. Não deixe de conferir esse gibi! (CIM)

O guardião da floresta*

por Pedro Brandt

Reza o folclore que o Mapinguari é uma criatura fedorenta com mais de dois metros de altura, pele grossa, coberta de pelos, apenas um olho e boca enorme, na vertical, no meio da barriga. Este ser horripilante, entretanto, é um defensor da floresta, inimigo de quem a ataca. Mapinguari é também o nome da recém-publicada graphic novel assinada pelo roteirista André Miranda e pelo desenhista Gabriel Góes.

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Nela, o leitor é apresentado a José, filho temporão de seringueiros. Após anos morando na capital, ele retorna ao lar, na selva amazônica acreana, local que, outrora, só pensava em abandonar. Em casa, o protagonista depara-se com uma série de dilemas: a implicância do irmão, que critica seu estilo de vida, a saúde abalada do velho pai e ainda um segredo que o jovem tenta esconder dos familiares, pois bate de frente com a situação vivida pela comunidade de onde saiu. Ao desenrolar dos acontecimentos, somos apresentados a personagens, como a aguerrida Rita Louca, avó do José; e ao passado de seu povoado, fruto de muita luta e sofrimento, em contínuo desafio com as seduções da vida moderna e as ameaças da expansão latifundiária.

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A obra de Miranda e Góes surgiu a convite da WWF – Brasil, o Fundo Mundial para a Natureza, que busca caminhos para uma existência harmoniosa do homem com o meio ambiente. Esta, que é a primeira investida da instituição em uma história em quadrinhos, portanto, deveria abordar determinados temas. Mas com liberdade para criar, a dupla brasiliense construiu uma HQ que foge das armadilhas fáceis de um projeto institucional.

O enredo baseado em fatos históricos, como a saga dos “soldados da borracha” – como ficaram conhecidas as milhares de pessoas alistadas em um projeto extrativista durante a Segunda Guerra Mundial e posteriormente abandonadas pelo governo à própria sorte –, e muita pesquisa, traz credibilidade ao cenário e aos contextos da trama. A novela gráfica seduz pela arte, entre a bande dessinée clássica e o indie comic contemporâneo, e pela maneira como são apresentadas as relações entre os personagens e suas ambiguidades.

Assuntos como ecologia, a manutenção de direitos conquistados e dramas familiares nunca aparecem apressada ou forçadamente, mas com fluidez, proposito narrativo e bons diálogos amarrando a condução da história. A sinergia entre roteirista e ilustrador, uma visão de cinema e outra de quadrinhos, é outro trunfo de Mapinguari. “Foi uma relação tranquila”, conta Gabriel Góes, veterano quadrinista de Brasília. “O André tirou a história do nada e fomos construindo as texturas entre os personagens”. O roteirista comenta que, por ser cineasta, sua visão das coisas está presa à câmera. “Mas o desenho permite uma abstração maior do que isso – o que levou o trabalho para um outro nível”.

Dentro da cena de quadrinhos brasilienses, Mapinguari chega como uma realização de grande envergadura, um verdadeiro marco para a produção local. Se, por enquanto, a publicação está restrita à própria WWF – Brasil, Góes tranquiliza os interessados e avisa que, em breve, a obra ganhará outra edição, disponíveis para quem quiser conhecê-la.

*Publicado originalmente na Revista Roteiro.

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Mapinguari: o folclore como revelação*

por Ciro I. Marcondes

A lenda do mapinguari tem uma forte reverberação simbólica nesta sólida história trazida para nós na forma de romance gráfico por Gabriel Góes e André Miranda. A criatura desfigurada das selvas que, segundo Câmara Cascudo, “é o mais popular dos monstros da Amazônia”, seria o resultado de uma espécie de pacto fáustico realizado por um indígena em busca da eternidade. Ele teria conseguido o que queria, mas acabou se transformando numa abominação devoradora de cérebros, coberta de pelo espesso, garras, pés tortos, odor insuportável e uma bocarra no meio da barriga. Coisa de pesadelos que teria sido inspirada no animal eremotherium, a preguiça-gigante que habitou o Brasil pré-histórico.

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O mapinguari desta história em quadrinhos, defensor das matas, transforma-se em metáfora para combater o verdadeiro monstro que engole a Floresta Amazônica desde o primeiro ciclo da borracha. São cavaleiros do apocalipse: desmatamento, latifundiários, desapropriação, extinção. Neste sentido, a caça ao monstro se torna jogo intrincado envolvendo várias peças no cenário amazônico atual (sem que a história determine com precisão a localidade): seringueiros, investidores estrangeiros, coronéis, atravessadores, traficantes, fazendeiros, agricultores. O mapinguari, ao mesmo tempo benevolente e aterrador, é um monstro-síntese da complexidade mítica desses povos que habitam a região, em oposição à máquina de ganância propulsionada pelo desenvolvimentismo pós-industrial: é Moby Dick, é Cthulhu, é o Leviatã. Monstros simbólicos que representam o inexorável da força natural, para além do bem e do mal.

O folclore brasileiro e a cultura indígena sempre estiveram presentes no quadrinho nacional, graças aos esforços que remetem a Angelo Agostini, passando por Ziraldo, Mauricio de Sousa, Mozart Couto e tantos outros. Até mesmo o gênio italiano Hugo Pratt se encantou com os mistérios nacionais. O que Gabriel Góes e André Miranda trazem aqui, porém, tem vários graus de ineditismo e inovação. Com personalidade e introvisão, somos apresentados, em Mapinguari, a um mapeamento social, visual e psicológico das capitais e do interior das sociedades amazônicas. Essa abordagem não guarda lugar para ingenuidades, e as histórias em quadrinhos aparecem como uma mídia afiada para dar conta dessa representação.

De certa forma, Mapinguari está na linhagem da ótima adaptação que os gêmeos Gabriel Bá e Fábio Moon fizeram em 2015 de Dois Irmãos, a obra-prima manauara de Milton Hatoum. Ambas as histórias se passam no mormaço dos rios da Amazônia, e lidam com a complexidade de gerações de famílias crescidas nas ambiguidades do ainda misterioso (para o resto do Brasil) grande Norte. Entretanto, Góes e Miranda estão trabalhando com um roteiro inteiramente original. Nunca indicada diretamente, a preocupação social/ecológica deste quadrinho, que poderia ser didática ou piegas, é perfeitamente inserida em várias camadas de leitura, estando presente em cada desenho e cada ação da narrativa.

O Mapinguari de Colin

O Mapinguari de Colin

Seria interessante lembrar que Mapinguari, ao mesmo tempo, dialoga fortemente com o trabalho de um “monstro sagrado” dos quadrinhos brasileiros: Flávio Colin (falecido em 2002) que, em suas últimas obras, dedicou-se a investigar a cultura e o folclore amazônicos, sempre investindo em questões ecológicas e políticas. Curioso é pensar que Colin também produziu, nos anos 1990 e publicada postumamente, uma história chamada “Mapinguari”. Ali, a mesma criatura metaforizada por Góes e Miranda aparece para devorar (e depois vomitar, enojado) o cérebro de um cientista estrangeiro que chega à Amazônia com um projeto para construir um shopping center dentro de um lago artificial no meio do Xingu.

Colin, nesse caso, é direto e não prima pela sutileza dos autores deste novo Mapinguari, mas o espectro de sua influência vai além de uma mera repetição de lendas e personagens. Ativo desde os anos 1950, este autor atravessou a odisseia dos quadrinhos brasileiros, passando por séries de sucesso como Vigilante Rodoviário e O Anjo, histórias de terror, eróticas, de época, etc. No final de sua carreira, coletando reconhecimento pelas novas gerações de quadrinistas, voltou a produzir, e seu bruto idealismo veio à tona.

Em outra obra póstuma publicada em 2007, Caraíba, Flávio Colin conta a mítica história de um caçador de animais e peles (comercializados com traficantes estrangeiros) que, após ter uma revelação quando em contato com o Curupira, passa a se tornar defensor da floresta, combatendo outros caçadores, magnatas e madeireiros. Colin não tinha pretensões acadêmicas, mas dava vazão à sua consciência ecológica com a crua energia típica de seu trabalho.

Este autor não aparece aqui por acaso e nem apenas por conta da semelhança temática de Mapinguari com seus últimos quadrinhos. Há também uma analogia estilística, como podemos ver na cristalina arte que Gabriel Góes imprime nas vigorosas páginas da HQ. Colin, como se sabe, desenvolveu ao longo dos anos um estilo completamente autêntico e diferente de todo o resto dos quadrinistas clássicos brasileiros, e até mundiais. O traço espesso, estilizado e caricato, carregado de vividez e expressividade, é sempre repleto de detalhes e obcecado com movimento e vigor. Poucos quadrinistas sabem angular como ele.

Góes, aqui longe do “tosco procurado” em seu quadrinho Soco!, em muito se aproxima de Flávio Colin. Basta olhar de perto a fisionomia de seus perfeitamente caracterizados personagens, como o “idiota” Crispim, para detectar, numa influência sagazmente bem processada, a marca do mestre. Assim como Colin, ele busca a fauna e a flora amazônicas (e também as idiossincrasias urbanas) e carrega o visual da HQ com dezenas de inferências e signos que enriquecem o não-dito por personagens e situações. Um quadro na parede, um grampo no varal, um modelo de relógio: detalhes como esses fazem diferença no rastreamento de épocas e pessoas a que o quadrinho se propõe.

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Daí a importância da expertise cinematográfica de André Miranda, roteirista e cineasta, no texto de Mapinguari. Ela aparece não só na imaginação de Góes, que é potencializada por uma espécie de “direção de arte” preocupada com o aspecto de cada minúcia das ilustrações, mas também no grande cuidado com os arcos dramáticos de cada personagem, desenvolvidos como em roteiros de cinema.

Mapinguari, aliás, é também excitante nos diálogos bem calculados, sem traços de estereótipos, que sustentam os dramas (semelhantes às tragédias da antiguidade clássica) que vão se sucedendo em três gerações da mesma família. São histórias que transcorrem em flashbacks bem feitos e sonhos significativos. Esta HQ, portanto, investe forte, ao mesmo tempo, no bruto realismo da inevitável vida de seus protagonistas, e em uma leitura alegórica não tão facilmente perceptível. Mas não se engane: é essa última leitura que prevalece. Aqui, assim como no Caraíba de Colin, é o contato com o sobrenatural folclórico que provoca a verdadeira revelação.

*Publicado originalmente como introdução ao próprio livro Mapinguari.

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MAPINGUARI

De Gabriel Góes e André Miranda. 146 páginas. WWF – Brasil. Conheça mais:

wwf.org.br/wwf_brasil

flickr.com/photos/7childrensbar

vimeo.com/andrefcmiranda