Entre a utopia e a distopia: Mickey no ano 2000

Em 1988 a Editora Abril lançou três grandes e lindos volumes recompilando todas as primeiras edições de “Pato Donald”, que não apenas foram as primeiras publicações de Disney no Brasil, como também as primeiras publicações da própria Abril. E, naquela época, levado por meu pai a uma das feiras do livro de Brasília, eu estava lá, observando a linda capa do Volume 1, com Donald xerife de peito de aço recebendo saraivada de balas. Eu estava lá, e pedi a meu pai que comprasse aquele volume pra mim. Tenho certeza de que esta edição de “Anos de ouro do Pato Donald” foi muito importante para a minha formação quadrinística. Lembro-me de ler este volume algumas vezes, bastante afoito. E lembro-me de uma história em especial, que nunca me fugiu à mente depois que o volume desapareceu da minha casa, em meados dos anos 90.

“Mickey no ano 2000” é uma história do ano de 1950, e não faço ideia a quem se deve atribuir a autoria (“Copyright 1950 Walt Disney Productions”). É uma história absolutamente admirável e, nela, o camundongo recebe, de maneira muito não-usual, uma encomenda pelo correio com uma caixa e o seguinte bilhete: “Querido Mickey! Ponha esta capa invisível e verá as maravilhas do ano 2000. – Um amigo da ciência”. Se a própria noção de uma “capa invisível” já parece junk-science o suficiente, imagine o que ela – e todo o resto de vitupérios científicos que viriam nas páginas a seguir – podiam realizar na cabeça de um menino de sete anos. Essa coisa do ano 2.000 sempre me fascinou de tamanha maneira (obviamente, antes que o ano modorrento que ele efetivamente foi chegasse) que eu também aderi de um jeito um tanto irracional a outra obra de retrofuturismo que abordava (de uma maneira, digamos, ligeiramente diferente) a mesma questão: o filme 2001, um odisseia no espaço. Quando encontrei, mais recentemente, num sebo, esta mesma edição por preço até módico, catei ela da prateleria e resolvi reler esta minha incrível história de formação.

Hohoho. E Papai Noel, vai bem?

É surpreendente que uma história tão ingênua tenha sido capaz de me reencantar. Para entender o processo todo, cabe um pequeno exercício de futurologia e análise retrofuturista: após vestir a capa, Mickey efetivamente se materializa no ano 2000. Em primeira instância, temos uma investigação do nosso herói – após atravessar o simbólico portal para a nossa suposta contemporaneidade – da vida, coisas e hábitos do ano 2000. Além de engenhocas como hidrantes esquisitos e máquinas que te vestem e lavam, há um fascínio pela conquista do espaço aéreo, com helicópteros cumprindo todas as funções do nosso trânsito, a ponto de Mickey, ao observar o aero-ônibus “Bonde aéreo à praça da Sé” (a tradução paulistana é impagável), soltar a seguinte observação: “Formidável! Solucionaram o problema de transporte de passageiros!”. Se cabe um comentário ao camundongo, vale dizer que nós, habitantes verdadeiros do ano 2000, nunca sequer soubemos de um “problema de transporte de passageiros” em São Paulo... em 1950! Quão surpreso nosso herói ficaria se pudesse como realmente andam essas coisas nos anos 2000.

Além de algumas previsibilidades interessantes e acertadas, como as videoconferências e a emulação de algumas contingências sociais derivadas disso, a primeira parte é toda motivada por um espanto do personagem (junto com Pluto) em relação a uma tecnização absoluta do mundo: pessoas se alimentando de pílulas, vendendo terrenos nas nuvens, mendigos dormindo em redes flutuantes. Há outros tipos de comentários sociais neste “admirável mundo novo”, como a presença de um “olho elétrico” que impede que Pluto entre num mercado avesso a animais. Todo este ato, corolário da eficiência da tecnologia (e de um mundo racionalizado pela técnica) ganha seu comentário definitivo quando Minnie é sequestrada por Bafo de Onça (“Pete”), e Mickey se dirige à polícia. Lá ele toma conhecimento de que “não há crimes no ano 2000” (estranho: se não há crimes, pra quê existe polícia? E estranho essa designação de “ano 2000” como um lugar, e não como uma época). Em 2000, uma conquista do espaço aéreo como espaço de habitação e convivência (alguém aí lembrou o Elevado de São Paulo?) e uma tecnologia capaz de realizar tudo que precisamos (inclusive plantando árvores artificiais para nós) leva o mundo a uma utopia. Quase uma utopia comunista, conforme Marx havia imaginado que teleologicamente aconteceria. É irônico que esta história tenha sido escrita dentro da empresa de maior pegada industrial de quadrinhos dos EUA, no meio da era do macartismo.

 A essa altura, a história já era suficientemente interessante sob vários aspectos, mas ela melhora ainda mais no segundo ato quando descobrimos que Bafo de Onça (conflito!) vive dentro de uma nuvem onde existe uma outra abordagem sobre a tecnologia, complexificando enormemente a versão ingênua do primeiro ato. Aqui, nosso herói deve se deparar com um mundo perversamente tecnizado, dominado por um ditador à 50’s (o próprio Bafo), que pretende, nada mais e nada menos, que “conquistar o universo”. Neste seu reino particular, Bafo controla um exército de autômatos (“robots são como autômatos”, eles precisam explicar) que usufruem de todo tipo de armas e techno bubbles, assim como compõem as divisões de defesa, política e organização de uma sociedade inteiramente não-humana. Prevê-se uma substituição completa da humanidade por duplos mecanizados, obedientes, seguidores de programações . Uma distopia se anuncia, e Mickey se depara com horripilante perspectiva ao perceber que Bafo havia construído um clone mecânico seu, com suas virtudes de herói, mas revertidas para a servidão. Um problema do complexo de Frankenstein, da tecnofobia, e um comentário sobre cibercultura contemporânea se estabelece: se nosso duplo fáustico for um duplo mecânico, devemos temê-lo mais ainda?

Bafão

Tudo caminha, então, para a concretização desta distopia que nos levaria à extinção quando, mais uma vez, esta engenhosa história que – à parte uma análise futurista ingênua que apontaria apenas os itens sonhadores que não se concretizaram –, numa imanência subliminar, parece entender de alguma forma nossa própria época e ao mesmo tempo lançar os antídotos para solucioná-la. Assim como Mickey, Minnie também tem um duplo robótico (a sensual Mimi, não exatamente igual a Minnie, mas cumprindo mesma função narrativa). Mimi, o robô humanizado, tão retratado na ficção científica, se apaixona por Mickey, e, lançando-se à vontade de se tornar indefectivelmente humana, sabota a operação de Bafo, reprograma os outros robôs, salva o mundo e – pasmem – ainda é tragicamente assassinada pelo facínora. No final das contas, à maneira de outro conto sombrio que também denunciava metaforicamente a tecnização do mundo (O gabinete do Dr. Caligari), Mickey desperta e percebe que tudo aquilo não passara de um sonho que ele tivera após brincar com seu sobrinho e seus bonequinhos de “robots”.

Bem, que leitura eu poderia retirar desta fábula tão bem construída em dois atos sólidos e excelente quadrinização, altamente problematizadora e invertendo relações na cabeça de um modesto garoto de sete anos? Neste mundo de 2000, excetuando-se a bobagem de prever o futuro (sempre o erro dos que pensam que sci-fi serve pra isso), vemos um ambiente onde algumas das principais questões do século 20 são retratadas de maneira dinâmica, com a possibilidade de reprogramação da distopia pela utopia utilizando das mesmas ferramentas que levaram a sociedade ao colapso: o velho paradoxo da tecnologia. Não é à toa que Mickey fantasia este mundo através de um objeto infantil, cuja premissa de repetição é a mesma da técnica. A criança que brinca (já dizia Walter Benjamin) quer continuar brincando (e não há mal nisso). Mas o adulto não pode mais brincar, e, ao invés disso, cria uma fantasia narrativa sobre o processo cumulativo, repetitivo e asséptico da técnica, que, felizmente, ainda pode ser reprogramado.

Aura de Eisner





















Estive em São Paulo recentemente, mas a passagem foi muito curta (apenas uma segunda-feira, praticamente). Logo após sair de um importante compromisso, queria voar até o Centro Cultural São Paulo para ver esta exuberante exposição de Will Eisner e escrever algo aqui para a RL. Bem, segunda-feira os museus fecham e fiquei na mão. Ainda bem que essa figura de impressionante solidez intelectual e artística que é Lima Neto foi e executou, com primor, a minha intenção, para a página da Kingdom Comics. Ele liberou o texto pra gente. Salve! De minha parte, apenas uma modesta contribuição: estou disponibilizando o arquivo de power point (aqui!) sobre Will Eisner que usei para aulas de História e narrativa de Quadrinhos na Universidade de Brasília (Valeu Lima! - CIM).
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por Lima Neto
fotos de Rafael Felix

Se você é assíduo leitor deste blog já deve saber do que é feito uma boa História em Quadrinhos. Aquela mistura mágica entre narrativa gráfica e ou texto, uma arte fluida e convincente e aquela habilidade cada vez mais rara de saber como contar uma história. Se esta definição lhe traz o nome de Will Eisner à mente, então você precisa ir urgentemente à exposição “O espírito vivo de Will Eisner” que está rolando no Espaço Cultural São Paulo, ou torcer para que ela visite sua cidade. Mas, para apreciar a beleza desta exposição é preciso que deixemos todas essas qualidades citadas acima de lado, o tipo de magia que se pode experimentar na mostra é de um tipo bem diferente e secular.


Antes de explicarmos a aparentemente paradoxal afirmação acima, vamos nos recordar que as Histórias em Quadrinhos como conhecemos hoje é fruto de uma necessidade comercial nascida da imprensa do começo do século XX com as possibilidades tecnológicas de reprodução das imagens que começaram um vertiginoso avanço com a invenção da fotografia. O surgimento destas tecnologias também foram responsáveis pela mudança no paradigma das artes plásticas, que, colocando de maneira bem simples, deixaram de lado a representação da realidade após perceberem a extrema eficiência com que as fotografias realizavam essa função e passaram a explorar questões mais abstratas e conceituais do fazer artístico. O crítico Walter Benjamin discute amplamente o impacto das novas tecnologias na arte em um texto seminal intitulado “A obra de Arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Neste estudo, ele afirma que esta mudança radical da arte é decorrente da morte da “aura” – uma qualidade específica das obras de arte que está ligada à sua existência real na história e só pode ser sentida na presença da obra original – mas, com as possibilidades de reprodução que começaram a se desenvolver, esta aura já não fazia mais sentido. Dos escombros da arte tradicional, nasceram as HQ’s.

E o que isto tem a ver com a exposição “O espírito vivo de Will Eisner”? Ao entrar na galeria, previamente sinalizada com dezenas de banners com imagens clássicas de Graphic Novels de Eisner e de seu mais famoso personagem, o Spirit, pode-se perceber que se você quer ler um bom quadrinho, o melhor lugar é na sua casa sentando confortavelmente acompanhando de uma boa xícara de café. O que está sendo mostrado na galeria montada na Gibiteca Henfil no Centro Cultural São Paulo, mesmo sendo páginas de HQ, exala uma qualidade única, tocante, fantasmagórica e poderosíssima – uma aura, digna das pinturas mais clássicas da história da arte!

A mostra é recheada de páginas originais de quadrinhos, abrindo com belíssimas artes de Contrato com Deus, passando pelos traços paranóicos de Um Sinal do Espaço, pelo colorido etéreo de O último Cavaleiro Andante e através dos quadros/quartos de Avenida Dropsie. Estão presentes ainda os aguados de nanquim de Fagin o Judeu e muito mais páginas de várias outras Graphic Novels que dão forma à primeira parte da curadoria. A segunda parte é focada no Spirit e segue com mais páginas impressionantes diretamente dos anos 40. Separando as duas alas está uma mesa-painel com objetos pessoais do artista, como seus famosos óculos e cachimbo, esboços, quadrinhos raros e quinquilharias temáticas. Na ala de Spirit podemos ver ainda ilustrações do autor, inacreditáveis originais de capas clássicas de Spirit e reproduções em Silk Screen. Fechando a exposição há ainda uma ala separada construída com uma cenografia toda especial representando o cemitério Wild Wood (onde supostamente está enterrado o corpo de Danny Colt), onde podem ser vistas raríssimas peças como uma estatueta original produzida por Eisner em conjunto com o artista plástico Peter Poplasky representando o justiceiro de Central City em toda sua força. Mais belo ainda é o quadro de Spirit pintado em tinta acrílica sobre papel de pão que iria servir como design para uma tapeçaria encomendada pela esposa de Eisner.

Porém, nem esta narração da mostra, tampouco as fotos abaixo, são capazes de expressar o forte sentimento que pode se sentir ao observar a belíssima exposição. Ao olhar atentamente as artes originais, apreciar os traços firmes e expressivos, observar as camadas de nanquim e a maneira precisa com que se acumulam e se dispersam dando vida às sombras dos cortiços da Nova Yorque de Eisner e a saborosa ilusão causada pelas pinceladas de branco contrastando com os tons escuros, pode-se desconstruir os desenhos, refazendo cada passo em um processo impressionante que nos leva ao lápis, do lápis à folha em branco, e da folha em branco diretamente para dentro da cabeça deste que foi um dos maiores gênios do século XX. Neste momento abro mão da impessoalidade do texto jornalístico para escrever aqui um relato sincero. Nos mais de 10 anos estudando arte, e dos 30 anos em contato com quadrinhos, nunca pude me deparar com o fenômeno da aura artística. A razão é óbvia. Nunca tendo visto uma obra clássica do calibre de um Velásquez, por exemplo, de perto, nunca pude experimentar esta sensação atemporal de desconstrução que pode nos transportar à presença quase tangível do artista. Se as histórias em quadrinhos, como uma mídia do século XX, não gera tal sensação, ou gera um outro tipo de sensação específica que ainda carece de estudos mais aprofundados, a obra viva de Eisner transborda desse sentir. A cada painel, cada pincelada, cada estratégia percebida para compor as páginas de seu quadrinho, podemos sentir, como que olhando por cima de nossos ombros, a presença de Eisner.



Termino parabenizando a equipe responsável pela mostra (especialmente o belíssimo trabalho de iluminação de Marisa Furtado e Tadeu), pois através dela pude realmente descobrir e experimentar o que é a Aura artística de Benjamim, ainda mais emanando de uma exposição que, embora não sendo uma história em quadrinho em si, expõe o seu corpo irreprodutível. Se, ao ler uma Graphic Novel de Eisner, podemos experimentar o seu pensamento, sua filosofia, sua maneira de ver o mundo, ao ver seu traço exposto, seu trabalho braçal de desenho, podemos sentir uma corporeidade fantasmagórica. Como olhar para um corpo, mas não um corpo morto, sem vida. E sim um corpo vivo, ativo e animado pelo encontro dinâmico do observador com a obra. Se algum quadrinho de Eisner já lhe tocou em algum momento, caro leitor, então arranje um jeito de ver esta exposição!

Confira abaixo as fotos da cobertura exclusiva Kingdom Comics (a agora Raio Laser!) e também um vídeo feito pelo mestre Evandro, do blog Esfolando, onde o dono da maioria do acervo da exposição, Denis Kitchen - da editora Kitchen Sink, faz um tour especial pela versão carioca da mostra que rolou na Rio Comicon!

A mostra está ficará em São Paulo até 18 de Dezembro, então ainda dá tempo de conferir! (Valeu James!)