Mundos de Aldebaran: dainbaía de hâmbrios

A história de vida do amigo Marcos Maciel de Almeida se confunde com a história dos quadrinhos em Brasília. Ávido leitor de comics, este fã de Beatles, Monstro do Pântano e Warriors – Os selvagens da Noite foi fundador, junto com Nonato Natinho, da Kingdom Comics, primeira loja especializada em quadrinhos da capital brasileira. Marcos foi sócio da Kingdom até 2007, quando vendeu sua parte no negócio. A paixão pelos quadrinhos, entretanto, nunca diminuiu. Apresentei Aldebaran para o Marcos como uma das séries mais impressionantes que eu li recentemente. Ele foi atrás da obra, leu e teve a mesma percepção sobre a HQ. Aproveitei o entusiasmo do Marcos e perguntei se ele gostaria de escrever suas impressões sobre Aldebaran. O texto – esperamos que o primeiro de muitos – segue abaixo. (PB)

por Marcos Maciel de Almeida

Dinbaía de Hâmbrios: essa estranha expressão me veio durante um sonho. Não consta nos dicionários. Apesar disso, não consigo deixar de pensar que teria algum significado para mim. É como se já tivesse esquecido o que é, ou talvez seja algo que ainda conhecerei no futuro.Usei esse exemplo para tentar explicar a sensação de familiar estranhamento que a leitura de Mundos de Aldebaran causou em mim. A HQ, escrita e desenhada pelo brasileiro Luiz Eduardo de Oliveira – mais conhecido pelo acrônimo LEO – já é publicada desde 1994 no mercado franco-belga.

Mais que uma história de ficção, o carioca LEO lançou as bases de um novo futuro para humanidade, que enfim logrou colonizar outros planetas. Em um deles, Aldebaran, os colonos foram deixados à própria sorte. Os terráqueos nunca mais retornaram a essa parte do universo, e, por essa razão, os habitantes não tiveram outra alternativa senão caminhar sozinhos.

Nessa HQ singular, os personagens são o pano de fundo para o cenário, e não o contrário. OK, Marc e Kim são dois bons protagonistas, mas parecem coadjuvantes para a geografia e a fauna dos mundos dessa nova realidade. Sobreviventes de uma vila destruída pela Mantrisse – criatura misteriosa cujas aparições servem como fio condutor da saga – a dupla tem uma química interessante, mas que parece ter sido criada somente para permitir o desenrolar de situações que, gradualmente, desvendam os mundos exóticos construídos por LEO. Em busca de respostas para sua catástrofe pessoal, Marc e Kim acabam conhecendo diversas pessoas que também tiveram suas vidas afetadas pela Mantrisse, numa investigação que os levará a outros planetas e a se deparar com seres e provações tão bizarros quanto incomuns.

A primeira aparição da Mantrisse foi bastante traumática para Marc e Kim, habitantes da vila de Arena Blanca em Aldebaran. A cidade natal da dupla foi erradicada após a passagem da criatura. Nada permaneceu de pé, e eles só conseguiram escapar com a roupa do corpo. Familiares e amigos também não foram poupados da onda de destruição. Esse foi o preço pago pelo fato de os habitantes não terem ouvido Driss, forasteiro que os tinha avisado do perigo que se aproximava. Os raros sobreviventes da catástrofe pouco a pouco se encontram, e descobrem que Driss é um homem procurado pelas autoridades de Aldebaran, planeta marcado pelo autoritarismo de líderes religiosos prontos a eliminar qualquer ameaça ao status quo. Outra personagem de destaque, ligada a Driss, é Alexa, que também tem um passado em comum com a Mantrisse. Gradualmente, o autor revela a conexão de ambos com a criatura, a partir de um encontro que mudaria para sempre seus destinos.

O contato de Marc e Kim com Driss os torna procurados pela lei, já que esse último é um fator de instabilidade para o governo, que não consegue compreender e tampouco controlar sua agenda. A baixa cooperação da dupla com as autoridades faz com que eles sejam presos. A precariedade da situação os torna mais suscetíveis a fazer alianças arriscadas, com personagens de índole duvidosa, como o velho Pad, cujo auxílio nunca vem de modo gratuito. Esse personagem mostra-se um mestre da manipulação, sempre hábil a encaminhar as circunstâncias para obter benefício próprio. Sem grandes alternativas, Marc e Kim são compelidos a seguir a orientações de Pad, o que nem sempre se revela uma boa decisão.

Com o passar do tempo, Marc e Kim conseguem reunir um grupo de pessoas interessadas no mistério da Mantrisse. Ou talvez tenha sido a Mantrisse quem os selecionou para seus propósitos secretos. O fato é que todos ficarão cara a cara com a indecifrável criatura, num encontro que marcará o conflito final com os líderes de Aldebaran e trará consequências radicais para cada um dos participantes. Esses fatos marcam o desfecho do primeiro ciclo da história.

O grande mérito de LEO é não economizar na criatividade. Sim, os mundos de Aldebaran são bastante semelhantes à Terra, mas quando o autor decide mostrar a fauna e a vegetação alienígenas, a imaginação viaja longe. Os seres dos outros planetas parecem estranhos não por sua aparência, mas pela autenticidade que parecem transmitir. Assim, pode-se dizer que seriam espécies menos extra-terrestres que comuns, talvez até menos ficcionais que reais. Quem pode dizer em que formas evoluiriam os animais de nosso planeta diante de outras necessidades de adaptação? Talvez essa seja a explicação para a sensação de familiaridade/estranhamento com as criaturas de Aldebaran: perceber que elas poderiam estar aqui em nosso plano de existência, não fossem os desígnios secretos da natureza.

Os cenários também são de tirar o fôlego. Partindo de soluções aparentemente simples, LEO cria uma ambientação inovadora, que inclui despenhadeiros verdejantes no deserto, oceanos gelatinosos e pântanos habitados por seres terríveis. O senso de composição nunca parece exagerado ou inverossímil. É uma realidade coesa e espontânea, que independe de quaisquer outros universos exteriores, como o nosso.

Quanto às ilustrações, LEO revela-se um desenhista apenas regular, que carece de estilo e marcas pessoais. Entretanto, essa deficiência é compensada por sua grande habilidade em criar seres únicos, que poderiam habitar paraísos ou pesadelos. Sua originalidade é decorrente da capacidade de produzir figuras pouco convencionais, como gorilas aquáticos, répteis humanoides e vegetais flutuantes, muitas vezes revestidos por cores inesperadas, o que confere um clima bastante lisérgico ao universo criado. Seu domínio da figura humana é inquestionável, como comprovam as inúmeras cenas de sexo que permeiam a trama.

Um dos pontos altos da narrativa são as pitadas de suspense habilmente despejadas. Aos poucos os leitores vão depositando maior confiança no autor, já que ele entrega o que dele se espera. As migalhas de mistérios são gradualmente solucionadas e prontamente substituídas por outras, para que nosso apetite não seja saciado. Aqui não há espaço para embromações ou cenas desnecessárias. A história já está pronta, bastando degustá-la. Não há o temor de que surgirão soluções previsíveis ou meros tapa buracos. O autor tem algo a contar e vai fazê-lo a seu modo, porque está seguro da qualidade do enredo. Isso não quer dizer que a história não se permita surpresas ou reviravoltas, pelo contrário. O inesperado está ali, na esquina, pronto para derrubar nossas convicções. 

Com 18 álbuns já lançados no mercado franco-belga, pela Editora Dargaud, Aldebaran teve 10 histórias publicadas em 5 edições duplas no Brasil pela Panini, entre 2006 e 2007. Se puder, não hesite em mergulhar nessa dainbaía de hâmbrios. Serão águas não navegadas, mas insolitamente conhecidas.