O Soldador Subaquático: Eu, passarinho

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O Soldador Subaquático já havia sido resenhado pelo Márcio Jr. AQUI, mas nosso colaborador Lucas Reis tem também um olhar diferenciado sobre esta elogiada obra de Jeff Lemire. Confira! (CIM)

por Lucas Reis

O Soldador Subaquático tem uma ligação umbilical com a graphic novel anterior de Lemire, Condado de Essex. Não porque trate dos mesmos personagens, mas porque nas três histórias que compunham aquele gibi, assim como nesta aqui, há uma dívida com o passado em que os personagens não sabem como lidar. O que aconteceu anteriormente ainda é a causa de feridas expostas que transparecem nos sujeitos retratados. Entretanto, ao contrário de Condado de Essex, O Soldador Subaquático se aprofunda em apenas um personagem, Jack Joseph. Por mais que a esposa e a mãe do personagem também sejam personagens relevantes da trama, tudo desemboca como pedaços de encaixe da vida do protagonista. Por exemplo, o livro se divide em quatro capítulos e o terceiro é um sonho de Jack em que ele vaga pela cidade vazia, sinal que a exposição das dores do personagem são centrais para a construção narrativa.

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Jack é um homem de trinta e três anos e está esperando seu primeiro filho. Sua esposa, Susie, está grávida de oito meses e eles estão com todas os receios normais de um casal que está prestes a expandir a família. Jack, contudo, sofre por algo mais, ele sempre parece distante do mundo que o cerca, como se precisasse fugir de algo que o atormenta, mesmo que ele não saiba direito do que se trata. A esposa e a mãe frequentemente comentam esse afastamento do rapaz e se mostram preocupados com o tempo em que o homem se dedica ao trabalho, sem se importar com o que acontece ao seu redor. O trabalho de Jack consiste em fazer soldas em embarcações. Em outros termos, ele deve mergulhar nas profundezas do oceano para reparar problemas em navios, barcos, submarinos e etc. Uma atividade solitária, mas que parece ser o único momento em que ele se sente bem, à vontade com o mundo a sua volta.

Logo de início, descobre-se que é a morte do pai que deixa Jack desordenado, mesmo que o acidente tenha acontecido muitos anos antes, quando ele ainda era uma criança, a dor continua a atormentar o protagonista. O fato dele estar esperando o primeiro filho somado à data de Halloween (seu pai morreu no feriado de Dia das Bruxas) são o estopim para ele, que passa a ir atrás do fantasma que o persegue por mais de vinte anos.

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Os anseios do personagem estão caracterizadas por um tempo cronológico linear: passado - presente - futuro. Se a lembrança do passado machuca, a expectativa do futuro amedronta e o presente pressiona. O protagonista, então, não tem outra saída, a não ser lidar diretamente com o passado para extinguir os medos. Neste ponto, o símbolo do relógio que costura a narrativa, pode parecer óbvio, mas não dá para negar a força dramática e a precisão cirúrgica de Lemire ao inserir o objeto como símbolo de aproximação entre pai e filho e (por que não?), entre avô e neto. 

A busca incessante de Jack é de reestabelecer uma ordem no mundo à sua volta e conseguir minimizar o sofrimento que o agride reiteradamente. Para isso, é necessário aceitar a inevitabilidade da morte, algo duro, mas que faz parte do fluxo da vida. A postura taciturna do homem, desde o início da narrativa é a de quem não dá conta de lidar com seus fantasmas. A gota de sangue que cai na pia cheia de água enquanto ele se barbeia antes de ir para mais um trabalho, é basicamente, o próprio Jack nas profundezas do oceano, um pontinho de dor na imensidão infinita do mar.

A arte de Lemire, que pode parecer grosseira, a princípio, é quase como a visão de Jack para um mundo que se modifica a cada instante. Assim como o preto e branco, como se não houvesse cor no mundo. Em certo momento, porém, há uma revoada de pássaros enquanto Jack passa despercebido por ela. Lemire dá um tempo para o leitor contemplar aqueles quadros bem compostos que, de alguma forma, altera a arte da história como um todo. São esses pequenos momentos que o protagonista tem de trazer de volta para a própria vida. Lemire não os nega, coloca em quadro esses momentos de singela beleza. Jack precisa reencontrar esses momentos. E, se não dá mais para tê-los no passado (os passarinhos já voaram), é possível reencontrá-los no futuro.

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