Voodoo Child, de Bill Sienkiewicz: a história de dois magos

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por Pedro Ribeiro

A música e os quadrinhos já estiveram entrelaçados durante vários momentos. Impossível ler, por exemplo, as várias minisséries do universo de Sin City, de Frank Miller, e não pensar em jazz ou rock n’ roll dos anos 50, quando a televisão era em preto e branco. Ou as histórias em quadrinhos do Homem Aranha da década de 70, onde todos usavam roupas coloridas e calças boca de sino, parecendo curtir sucessos de Led Zeppelin ou a disco music do Earth, Wind and Fire. Mas no fim dos anos 60 surgiu algo mais colorido, sonoro e incontrolável do que tudo isso: a música e a figura de Jimi Hendrix. E Hendrix virou uma graphic novel de 128 páginas, pintada por um nome único e conhecido por todo mundo que é fã de histórias em quadrinhos: Bill Sienkiewicz. Um verdadeiro manifesto artístico e um tributo amoroso desse artista ao maior guitarrista da história do rock.

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Bill Sienkiewicz, ou “bicho que é bicho”, como alguns colaboradores da Raio Laser gostam de chamá-lo, é uma verdadeira lenda. O artista (Sin-Kev-itch, como ele gosta de enfatizar a pronúncia do sobrenome em seu site oficial, que vale muito a pena ser conferido) tem seus próprios ídolos, como Gustav Klimt na pintura e Jimi Hendrix na música. E o casamento perfeito entre o maior guitarrista do rock e o icônico artista gráfico aconteceu na HQ Voodoo Child, escrita por Martin I. Green e lançada em 1995 pela editora Berkshire Studio. É uma graphic novel de lindo acabamento, capa dura e que ainda por cima conta com um CD exclusivo com gravações inéditas do músico. Diz a lenda que essa graphic novel era originalmente um roteiro de cinema não aproveitado, e quando chegou às mãos de Sienkiewicz, o artista demorou anos para terminá-la, sendo por algum tempo um projeto sem prazo de lançamento definido. Consegui encontrar essa joia numa de minhas andanças pelo Rio de Janeiro, em 1996, creio que em uma loja especializada em música. A HQ é rara, mas pode ser encontrada hoje em sites como Mercado Livre e Amazon a preços não tão convidativos.

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Jimi Hendrix teve sua carreira de sucesso mundial em basicamente três anos, começando com o lançamento de seu primeiro álbum de estúdio em 1967 (Are you Experienced?) e encerrando em sua morte, em 1970, aos 27 anos. O músico viveu esses anos de maneira intensa e produziu muito, prova disso são os constantes álbuns ao vivo e de raridades de estúdio lançados até hoje. Resumindo bem a história de Hendrix, posso dizer que ele aprendeu de maneira intuitiva a tocar guitarra, dominando rapidamente o instrumento. Serviu o exército como paraquedista e em um de seus pulos lesionou o joelho e foi dispensado. Vendo que não iria conseguir fazer uma carreira no exército abraçou por completo a música, servindo como guitarrista de apoio para diversas bandas, como as de Little Richard, Ike & Tina Turner, Sam Cooke, entre outras. Em 1966, após ter tido muitas experiências profissionais e tendo ao seu lado um bom baixista e um talentoso baterista (no famoso molde dos power trios), fez uma versão da música Hey Joe, que o tornou famoso e o possibilitou lançar no ano seguinte o seminal álbum com a banda Jimi Hendrix Experience: Are you experienced?

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Essa foi a transição de um guitarrista de apoio “joão ninguém” para o panteão do rock. Se seguiram a esse álbum Axis: Bold as love e Electric Ladyland, a trilogia essencial de Jimi Hendrix. Após isso, o guitarrista seguiu outros rumos, brilhou com uma performance única no festival de Woodstock, em 1969, evoluindo sua música até a morte por overdose de drogas no ano seguinte. Hendrix foi pioneiro em muitas frentes, sendo um dos músicos que mais investiu em tecnologia de gravação em sua época, ao construir seu estúdio Electric Lady em Nova York. Embora fosse negro, Hendrix tinha uma avó indígena, e é por isso que ele usou a palavra voodoo em uma de suas músicas mais famosas, Voodoo Child. Sua avó participava de rituais místicos e como os americanos rotulam todo tipo de feitiçaria, magia, macumba, ou qualquer outro procedimento não-cristão com a palavra “voodoo”, referente a religião haitiana Vodu, restou a nosso amigo Hendrix ser visto como a “criança vodu” da guitarra.

The video and audio do not belong to me.

“Bicho que é bicho”

Já Bill Sienkiewicz, assim como Jack Kirby e Jim Steranko, é uma referência em vanguardismo e experimentalismo nos quadrinhos. Bill começou desenhando para a indústria no final da década de 70, e de 1980 a 1983 passou por uma jornada consistente no personagem Cavaleiro da Lua, da Marvel. Nesse título, ele começou de maneira convencional, imitando o estilo de Neal Adams, grande referência no quadrinho moderno, usando formas realistas e ângulos arrojados em seu desenho. Sienkiewicz foi aos poucos mudando seu estilo, aprendendo, distorcendo, experimentando. Como Hendrix nas 11 faixas do álbum Are you experienced?. E após 30 edições de Cavaleiro da Lua, saiu fortalecido, era um nome interessante no mercado. Um fato peculiar é que na edição 26 de Moon Knight a trama ocorre paralela a um show de jazz, mostrando aí a primeiro flerte de Sienkiewicz com a música nos quadrinhos.

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cavaleiro da lua

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Inquieto, experimental e prolífico, Sienkiewicz consolidou seu estilo quando assumiu a revista dos Novos Mutantes, junto ao roteirista Chris Claremont. A entrada de Sienkiewicz trouxe tons mais sérios, sombrios e psicodélicos à trama e aos personagens. Foi ele quem cocriou a entidade Urso Místico (a famosa Demon Bear, saga publicada em formatinho nas HQs do Hulk em 1989) e Legião, o filho de Charles Xavier (que virou seriado de TV disponível na Netflix). A arte em alto contraste e repleta de hachuras e borrões de Sienkiewicz era poderosa, gráfica. Mas ele, que também estava experimentando o trabalho em cores, consolidando o estilo pintado expressivo e único mostrado na minissérie Elektra Assassina.

Elektra assassina

Elektra assassina

novos mutantes

novos mutantes

A história escrita por Frank Miller e protagonizada pela famosa personagem do universo do Demolidor foi sucesso de público e crítica, levando Sienkiewicz ao topo da fama em 1986. A minissérie, que envolvia ultraviolência, sátira política e psicodelia, rendeu a Sienkiewicz o importante prêmio italiano para histórias em quadrinhos Yellow Kid. Seu estilo pintado, que ele havia começado a desenvolver na graphic novel do Demolidor meses antes de Elektra, emulava a arte de pintores clássicos, como o austríaco Gustav Klimt (1862-1918). Esse estilo de arte de Bill gerou outros “filhos” no ramo: Dave McKean por exemplo, começou emulando ao máximo Sienkiewicz em seu primeiro trabalho, a graphic novel Violent Cases. Ashley Wood, famoso por artes pintadas do Spawn e criador de Zombies vs. Robots também começou com um estilo muito parecido com Sienkiewicz. A lista é grande, de Simon Bisley até um dos desenhistas queridinhos de hoje, Mitch Gerards (que ganhou o Eisner em 2018 com a arte de Mister Miracle), muitos parecer ter um pouco do DNA de Bill Sienkiewicz em seus traços.

Jornada para a vida de Hendrix

Mas vamos seguindo ao que interessa, a graphic novel em si: Voodoo Child é um trabalho fluido, belo de se ver, e que combina totalmente com a liberdade, delicadeza e peso das músicas de Hendrix. “Fui procurado pelos responsáveis da editora, e me ofereceram o trabalho dizendo que minha arte era a perfeita representação gráfica da música de Jimi”, disse Sienkiewicz. O artista realmente se empenhou de corpo e alma: leitores fãs de sua arte pintada irão ver que ele chegou em seu auge em Voodoo Child, seja na arte detalhada, cores, composição de painéis e onomatopeias musicais (muito importantes para mostrar o desenvolvimento da música de Hendrix) e narrativa gráfica.

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Não há em nenhuma de suas 128 páginas um desenho preguiçoso, tudo é bem colocado e segue uma narrativa rica em ilustrações, cores e experimentações. Outro ponto positivo é que a HQ foi impressa em uma década onde a tecnologia gráfica já estava mais apurada, o que infelizmente não ocorreu com Elektra Assassina (mesmo nas recentes versões encadernadas da minissérie, a Marvel infelizmente não conseguiu remasterizar o trabalho de Sienkiewicz). Mais um detalhe interessante sobre Voodoo Child é que o pioneiro em arte sequencial Will Eisner é creditado como consultor criativo do projeto. Ou seja, Eisner deve ter dado um bom direcionamento para Sienkiewicz, além de ter esboçado layouts para o projeto. Alguns sites, porém, contam essa história de maneira diferente, dizendo que a graphic novel seria feita originalmente por Eisner, e que ele resolveu passar o projeto para frente.

Para oferecer ao leitor a experiência de Voodoo Child de outra maneira, se encontra encartado na graphic novel o CD Jimi by himself – The home recordings. O álbum traz 6 faixas de alta qualidade de um Hendrix intimista em seu estúdio, com microfone e guitarra limpos, sem efeitos. O álbum é tanto fluido quanto descompromissado, tanto que na última faixa pode se ouvir o telefone tocando, fazendo Hendrix encerrar a música e ir lá atender.

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Por fim, resta a nós leitores aguardar que um dia Voodoo Child seja publicada aqui no Brasil, já que tantas obras clássicas de quadrinhos dos anos 80 e 90 tem sido lançadas aqui, algumas de mais relevância que as outras, na minha opinião. Uma nova edição da graphic novel foi impressa nos Estados Unidos em 2007 pela editora Kitchen Sink, já em uma nova fase do legado de Hendrix. Eu explico: quando Voodoo Child foi publicada em 1995, os direitos de som e imagem de Jimi Hendrix estavam nas mãos de algumas corporações, passando por grande embate judicial envolvendo a família do músico. Após anos de luta, todos os direitos autorais de Hendrix foram felizmente passados para a família, que criou a empresa Experience Hendrix  para administrar absolutamente tudo relacionado ao artista, mas não se sabe se ela tem a intenção de republicar Voodoo Child mais uma vez.

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Em nosso presente ano de 2019, nosso amigo Sienkiewicz trabalha em um ritmo menos acelerado: se dedica a capas de HQs, participações em feiras de quadrinhos, comissions (desenhos de personagens sob encomenda) e trabalhos de arte conceitual para a lucrativa indústria de filmes e seriados de TV de Hollywood. E o legado de Jimi Hendrix continua a ser administrado por sua família de maneira atenciosa, mas não imune a deslizes. O guitarrista foi tema de um pouco inspirado filme em 2013, estrelado pelo rapper da dupla Outkast, André Benjamin, e recebeu duras críticas. De qualquer forma, se você quiser saber mais sobre a história de Jimi Hendrix, não é necessário ver um documentário ou ler uma biografia: dê um jeito de ler Voodoo Child, será uma grande jornada pela vida do homem que mudou a história do rock e de seu principal instrumento musical.