Fahrenheit 451: distopia transmidiática

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por Marcos Maciel de Almeida

Fahrenheit 451 (233° C) é a temperatura em que o papel queima. Não é por acaso que o corpo de bombeiros da realidade criada por Ray Bradbury usa esse número no uniforme. No futuro distópico imaginado pelo autor, os bombeiros são chamados não para apagar incêndios, mas para incinerar livros. E Guy Montag, protagonista da história, é um soldado do fogo que começa a perceber que existe algo de errado não somente em sua vida pessoal, mas na sociedade como um todo. Esse é o mote por trás desse clássico livro da ficção científica soft, que foi recontado nos quadrinhos e no cinema, com maior ou menor maestria, como veremos adiante.

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Um dos grandes debates levantados por Bradbury na obra é o emburrecimento/embrutecimento das massas a partir da ascensão da televisão. Não por coincidência o livro foi escrito em 1953, apenas sete anos após o lançamento do modelo RCA 630-TS, primeiro modelo de televisor produzido em série. Como podemos testemunhar hoje em dia, a preocupação do autor não era descabida, pois as pessoas estão lendo cada vez menos, tornando-se – mais facilmente – reféns de programas televisivos imbecilizantes e descartáveis, dada sua reduzida capacidade crítica. O que nos leva ao dilema Tostines da vez: as pessoas estão mais ignorantes porque veem programas idiotas ou é o contrário? Independente da resposta, uma coisa é certa: para muita gente, o hábito de ler – além de ser chato – faz a cabeça doer.

No pesadelo futurista antecipado por Bradbury, o poder de atração dos televisores alcança novos patamares. Símbolo de status e felicidade é ter as quatro paredes da sala de casa tomadas por televisores gigantescos. Nesse hobbie altamente imersivo também é possível interagir com os personagens das telenovelas e programas, atividade suprassumo do prazer escapista, voltada para pessoas cuja existência resume-se a contemplar o vazio televisivo.

Como sói acontecer em regimes totalitários, existe uma atmosfera de constante tensão, alimentada por um conflito do tipo “nós contra eles”. No caso em tela há uma guerra que nunca é realmente explicada. Não se sabe contra quem ou porque se está lutando. Pode ser que tudo seja uma cortina de fumaça promovida pelo governo. É mais uma etapa na construção de um clima de desinformação que só interessa àqueles que estão no poder. O papel relegado ao povo permanece o tradicional – servir como joguete para garantir a manutenção das aspirações da aristocracia de plantão.

Esse trabalho de controle das massas é facilitado numa sociedade na qual a simples posse de livros constitui um crime. Qualquer pessoa pode ser denunciada pela propriedade dessas obras, que são rapidamente queimadas pelos outrora denominados combatentes do fogo. Pudera. Um mundo sem leitura é um lugar com baixa capacidade de reflexão, incapaz de questionar as ordens e o status quo. Como gado que caminha para o matadouro, a sociedade privada dos livros simplesmente rumina a falta de pensamentos, cada vez mais próxima do precipício.

As relações pessoais – frágeis como um pedaço de papel – são o espelho dessa população que apenas “cumpre tabela” durante sua existência. A falta de raciocínio faz com que os indivíduos passem pelas diversas experiências humanas com indiferença, como se apenas trocassem de roupa. Emblemática neste sentido é a conversa entre Mildred, esposa de Montag e sua amiga (já no terceiro casamento), que lhe conta: “Meu marido vai para a guerra. Ele disse-me que – se não voltar – não devo chorar, nem pensar nele. Somente casar-me novamente”. Esta frase exemplifica um modo de vida em que as pessoas não pensam, apenas prosseguem suas existências de forma mecânica.  As almas desses autômatos são meras sombras no caminho, lembranças de momentos tão insignificantes e fugazes quanto apertar o botão on/off de um aparelho de televisão.

Tudo isso está em estreita correlação com outro tema importante da obra: atrás de cada livro, existe uma pessoa. E, como pudemos tristemente confirmar no caso do nazismo, uma sociedade que queima seus livros não está distante do ato de queimar pessoas. Além disso, o autor chama atenção para o fato de que relação entre pessoas e livros é de retroalimentação, num caráter quase mutualista. Para tentar ludibriar as autoridades da realidade de Fahrenheit 451, os membros da resistência passam a memorizar os livros, e cada integrante do grupo “torna-se” determinada obra. Trata-se, entre outros significados, de sutil metáfora para o poder de transformação da literatura.

Ao adaptar a obra (Editora Excelsior, 2019) para as HQs, o quadrinista Tim Hamilton conseguiu manter a força e impacto da narrativa original, apesar de ter realizado uma versão um tanto quanto comportada. É altamente recomendado que se faça a leitura antecipada da obra em prosa antes de ler o gibi, já que a narrativa – lacunar – requer conhecimento prévio. Trata-se de leitura agradável, mais que competente, mas senti falta de certa ousadia para tratar dos temas levantados por Bradbury. Resultado mais saboroso teria sido obtido se o artista tivesse utilizado técnicas exclusivas das HQs para contar a história. Mas – no fim das contas – o feijão com arroz do gibi não desagrada.

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Diferente é a sensação provocada após a visão do filme homônimo (de 1966), dirigido por ninguém menos que François Truffaut. Valendo-se de fotografia neutra, típica de um mundo monótono e melancólico, o cineasta usa e abusa dos recursos cinematográficos para criar um clima de desolação, em que qualquer vislumbre de esperança é mais raro que encontrar um pote de ouro no final do arco-íris. A estética fascista/nazista do corpo de bombeiros retratado na película só contribui para construir uma realidade na qual o mais importante é seguir as regras sem questionar, num espasmo existencial de moto contínuo. Outro recurso interessante foi usar a mesma atriz para fazer dois papéis importantes do livro. A britânica Julie Christie é ao mesmo tempo a frívola esposa de Montag e a adolescente que o faz despertar para a sensação de que há algo muito errado com o tecido social. Assim, Truffaut nos convida a ponderar que uma mudança de perspectiva pode estar ao nosso alcance, bastando – muitas vezes – um simples olhar para a outra face da moeda.

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Bombeiros do filme de 1966. Só falta o “Heil, Hitler!”

Bombeiros do filme de 1966. Só falta o “Heil, Hitler!”

A necessária e importante mensagem de defesa da cultura, promovida por Bradbury continua bastante atual e segue ecoando em diversas mídias. Só nos resta torcer para que esse alerta seja ouvido e entendido antes que seja tarde demais. Infelizmente, do jeito que as coisas estão, é difícil ter pensamentos otimistas a esse respeito.

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