ANGOULÊME É UMA FESTA!

por Bruno Porto

A Raio Laser e o canal Eurocomics realizaram uma cobertura conjunta do 49º Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême que aconteceu na França entre 17 e 20 de março deste ano. Ciro Inácio Marcondes e Bruno Porto estiveram lá, gravaram uma dúzia de vídeos — que você pode conferir nesta playlist — com entrevistas, reportagens e visitas à exposições, dois episódios do Lasercast (aqui e aqui ), e escreveram relatos desta inesquecível experiência.

. . .

Terceira edição do Festival de Angoulême para mim, quinta vez na cidade, é de se supor que não existiriam mais mistérios ou grandes surpresas, certo? Errado, erradíssimo… Algumas coisas obviamente continuam as mesmas, e isso cria uma curva de aprendizado interessante, que te faz evitar roubadas e principalmente ganhar tempo. E ganhar tempo em um festival — o maior do maior mercado europeu de quadrinhos, diga-se de passagem — que oficialmente dura só quatro dias, não é pouca vantagem. Pragmaticamente falando, confirmei que deve-se almoçar pontualmente ao meio-dia para evitar os restaurantes cheios; que o forte da casa da Pizzaria La Sicilia é real e obviamente a pizza (não invente moda); e que o kebab do turquinho é realmente a melhor pedida para aquele fim de noite (se você não pedir pimenta, no meu caso).

Com o cartaz de Chris Ware e na L’autre Librairie, onde Jean-Pierre Dionnet faria uma sessão de autógrafos da nova Métal Hurlant.

Mas mesmo que você ganhe todo o tempo do mundo, a primeira regra do Clube da Luta do Festival de Angoulême é que você não vai conseguir ver tudo que está na programação (das 10h às 19h). Esquece, nem tenta. Sempre haverá uma pá de coisas que você não conseguirá ir, e tudo bem, as que você viu / verá já deram conta do recado. Eu, por exemplo, nunca fui ao Mangá City, o pavilhão de quadrinhos japoneses perto da relativamente afastada (do epicentro do festival) Médiathèque, passei batido pela exposição do Sonny Liew em 2018, não consegui chegar na do Robert Kirkman em 2020 e me faltaram forças para ver a do Edmond Baudoin esse ano (e, segundo relatos, todas estavam formidáveis). Conscientemente pulei o Pavilhão dos Jovens Talentos, as exposições dos mangakás (exceto a do Shigeru Mizuki, que cobrimos aqui ), a mostra anual dos artistas residentes na Maison des Auteurs e, bem, a larga maioria dos debates e mesas redondas por motivo de idioma francês, troglodita que ainda sou.

Originais de Shigeru Mizuki, retratado aqui com os personagens que criou.

Além disso, havia algumas coisas na programação que eu gostaria de ter feito mas não consegui, como conversar com o pessoal da Mediatoon, que distribui e licencia propriedades intelectuais de grandes editoras como Dargaud, Dupuis e Le Lombard, ou assistir (e tentar entrevistar) os espanhóis Juan Díaz Canales e Juanjo Guarnido, autores de Blacksad, em uma palestra. Nem consegui perguntar para o holandês Peter van Dongen — desenhista dos últimos álbuns de Blake & Mortimer com quem já havia conversado na Feira do Livro de Bruxelas 2020 — se ele já recebera as edições da revista Piauí para a qual fizera capas. Mas nem de longe senti-me frustrado. Foi uma belíssima edição do Festival para mim, e enumero aqui os motivos.

Para começo de conversa, o Festival estava bem mais vazio que nas edições anteriores em que estive, há dois e quatro anos. Mesmo com a França tendo suspendido o uso de máscaras (exceto nos transportes) poucos dias antes do início do evento, a insegurança com o Covid afastou autores e público. Teorias conspiratórias que habitam minha cabeça cogitam que as editoras possam ter chamado menos autores do que normalmente por que estes agora passaram a ser remunerados (€230 por dia) pelas sessões de duas a quatro horas de dédicace (dedicatórias) nos stands. Mais do que um autógrafo, no caso dos desenhistas, uma dédicace se assemelha mais a um elaborado croqui, muitas vezes pintado. Na última edição presencial do Festival, em 2020, os autores pararam por uma hora em protesto pela ausência de remuneração em festivais e feiras.

A menor quantidade de público tornou a circulação pelos pavilhões e exposições bem mais agradável, rendendo filas bem menores para dédicaces e a rara experiência de pegar navettes — os ônibus que circulam gratuitamente entre os principais pontos do festival — que não estivessem lotadas. E como alguns editores com quem conversamos disseram que o menor número de visitantes não impactou negativamente as vendas, ganhamos todos.

Entrevistas com roteiristas de HQs sobre suas metodologias e processos de criação, e exemplos dos seus roteiros.

A valorização dos profissionais de quadrinhos continuou presente nessa edição do Festival, em especial no âmbito de gênero — afinal, foi a primeira edição a ter apenas mulheres como finalistas do Grand Prix. Os crachás para quadrinistas, por exemplo, vieram com designação AUTEUR-TRICE, sutilmente propondo uma forma de não discriminação baseada em gênero (na última edição presencial eram crachás distintos). Outro aspecto dessa valorização passou por manifestações de maior reconhecimento pela contribuição dos roteiristas de quadrinhos. A roteirista Loo Hui Phang, laureada com o Prêmio Goscinny 2021, optou por usar sua exposição como uma forma de dar visibilidade ao trabalho dos colegas de ofício. Ao invés do tradicional formato de uma mostra com as artes dos álbuns que escreveu — que invariavelmente acaba destacando a destreza dos artistas visuais em interpretar o enredo criado pelo argumentista — ela expôs painéis com três ou quatro dezenas de entrevistas que conduziu com roteristas que admira sobre seus métodos de trabalho e processo criativos, incluindo exemplos de como cada um tangibiliza sua escrita para quadrinhos. Estavam lá croquis decupandos as páginas, folhas detalhadamente datilografadas, cadernos de anotações manuscritas, pilhas de referências fotográficas, e outros exemplos que claramente estabelecem que não existe uma única maneira de se escrever quadrinhos.

Protesto pela valorização dos roteiristas de HQs.

Batizada de Loo Hui Phang, Écrire est en métier (Escrever é um trabalho), a mostra realizada na galeria do térreo do Espaço Franquin incluía também uma seção com placas de protesto, típicos dos piquetes grevistas, denunciando as fragilidades das autoras e autores de quadrinhos no país. Começa listando o percentual do preço de capa que cada integrante da cadeia produtiva do livro recebe, com o segundo menor índice destinado aos autores: 8% a 10% (excepcionalmente 12% no caso de grandes medalhões), que só é maior que o imposto pago no país (5,5%). E este percentual ainda é dividido, nem sempre igualmente, entre roteirista e desenhista(s). O manifesto argumenta que a lei francesa protege mais a obra do que os autores em si, freelancers desprovidos de renda mínima, férias e, segundo clamam, até mesmo definição de quando serão pagos. Também protestava-se o menor grau de reconhecimento dos roteiristas frente aos desenhistas, seja em premiações — o único Gran Prix de Angoulême para um roteirista aconteceu em 1986, outorgado ao também desenhista Jacques Lob — ou financeiramente: os roteiristas geralmente não recebem um percentual da venda de artes originais das páginas dos álbuns, ou mesmo de comissions, quando foram co-criadores dos enredos e dos personagens ali desenhados. Merchandising, então, nem pensar. Por último, a mostra expõe a mesa da quadrinista — com seus livros, cadernos, referências, lâmpada — cercada por pequenas instalações representando sua inspiração, ideias, personagens, etc. como em uma tentativa de tornar o ofício do roteirista de quadrinhos algo concreto, visualizável enquanto exposição. E ao fazer isso, demonstra como esta intenção é, no fundo, inócua.

Neste sentido, a exposição contrastava diretamente com uma das principais atrações do Festival, a (maravilhosa) mostra René Goscinny Scénariste, Quel Métier! (Roteirista, que trabalho!), dedicada a um dos pilares da bande dessinée europeia, René Goscinny (1926-1977), que ironicamente dá nome ao prêmio recebido por Loo Hui Phang no ano passado. Montada no Museu de Angoulême, a exposição ilustrava a trajetória do quadrinista, contada em textos e linhas do tempo, principalmente com algumas publicações, reproduções de fotos e muitas artes originais de Albert Uderzo (Astérix, Humpá-Pá), Morris (Lucky Luke), Sempé (Le Petit Nicolas) e outros desenhistas com quem Goscinny colaborou ou editou na seminal revista Pilote.

A cenografia da mostra, no entanto, se esforçava para materializar o trabalho do roteirista a que o título se refere na forma de letras, principalmente tipos de máquina de datilografia. Elas estão recortadas em papel descendo do teto, adesivadas nas vitrines que protegem páginas originais de roteiros, decorando as paredes em larga escala, inseridas em instalações com citações e dados biográficos, e, já na entrada, em uma animação que constrói o rosto do homenageado.

Bruno e Ciro ao lado dos originais do cartaz desta edição do Festival de Angoulême e de um página quadrinhos.

É difícil apontar uma única exposição favorita desta edição do Festival. Seguramente a de Loo Hui Phang é a que mais me fez refletir, mas vou dividir minha indicação em duas outras. Os trabalhos que mais me impressionaram foram os orginais de Chris Ware, pelo seu perfeccionismo, detalhe, capricho e, oh baby, tamanho. Como são enormes aqueles originais! Fiz questão de tirar fotos de pessoas ao lado das molduras na exposição (Building Chris Ware) que ocupou a galeria inferior do Espaço Franquin para me certificar que alguns tinham mais de um metro de altura. Ouvi-lo falar sobre sua relação com seu trabalho na concorrida Masterclass que ministrou no sábado pela manhã também foi um ponto alto para mim.

No entanto, sem desmerecer todas as outras, a mostra que mais me encantou foi Camille Jourdy & Lolita Séchan, Cachées ou pas!, título do livro publicado pela Actes Sud BD que reúne persongens das duas quadrinistas em um jogo de esconde-esconde. Montada na pequenina torre do Hôtel Saint-Simon, a pequena mostra faz excelente uso do espaço peculiar e muito apropriadamente se divide em duas partes, cada uma dedicada a uma das autoras, que se unem no segundo andar da exposição, onde estão as artes originais do livro (e a lojinha). O universo de cada uma é representado não apenas pelos originais, mas também por rascunhos e trabalhos que as influenciaram, revelando o processo de criação das autoras em meio a uma cenografia lúdica e caprichada.

A produção individual (ao alto) e em conjunto das quadrinistas Camille Jourdy e Lolita Séchan, e um painel de trabalhos que as influenciaram.

Mas Angoulême, me perdoem Hemingway e Paris, é uma festa. Principalmente se o seu amigo sai de lá com o Fauve D’Or, merecidíssimo por um álbum que dói de tão bom que é. Dói porque você é brasileiro, carioca, e os perrengues vividos pelos personagens de Marcello Quintanilha em Escuta, formosa Márcia são a mais pura realidade rotineira para pessoas com quem você conviveu em outra vida. Sem dúvida chovo no molhado ao afirmar que a universalidade de Escuta, formosa Márcia transporta a grossa maioria de seus leitores — que arrisco dizer, não se parecem com Márcia ou Aloísio — para dentro dos personagens com aquela insuportável sensação de “e se fosse comigo?”. E quando isso acontece, quando você vibra, sofre, sente alívio, sente raiva, aí, meu amigo, já era. Não é todo livro que faz isso, nem com tanta gente. O esquema tático em que trama, diálogos e desenhos formulam uma bem azeitada linha de passe para Quintanilha golear, ganhou uma Copa do Mundo enfrentando outros 45 títulos selecionados dentre cerca de seis mil álbuns publicados na França no ano passado. Quando o prêmio é anunciado e você está no estádio, você comemora, urra — e assim que a foto oficial para a capa do Jornal dos Sports é batida, você desce para invadir o campo e abraçar o artilheiro.

Em 2023, o Festival de Angoulême completa 50 anos. Acho que nem preciso dizer que recomendo.

PS. Agradecimentos mais do que especiais ao quadrinista Flávio Luiz que não apenas acompanhou nossa cobertura à distância mas nos presenteou com a fantástica caricatura que ilustra este post.