MELHORES LEITURAS DE 2023 POR BRUNO PORTO

Diferente dos companheiros da Raio Laser que estão fazendo suas listas de Melhores Leituras de 2023, decidi dedicar-me a um título apenas. Não só por que este livro definitivamente se encaixa nessa descrição mas também porque seu tema me apresentou vertentes culturais interessentíssimas do Canadá, país onde moro há um ano e meio. (BP)

Imagens de divulgação

A graphic novel Are You Willing to Die for the Cause? (2023, Drawn & Quarterly), de Chris Oliveros, oferece um mergulho fascinante em um episódio conturbado e pouco conhecido da história canadense, cujos efeitos ainda são fortemente presentes nos dias atuais. No início da década de 1960, a cidade de Montreal se viu às voltas com atentandos realizados pela Frente de Libertação do Quebec (FLQ), um movimento socialista que visava lutar pelos direitos dos trabalhadores francófonos oprimidos pela poderosa minoria anglófona na região. Na época, os salários dos anglófonos eram duas vezes mais altos e, embora correspondessem a mais de 80% da população da província, menos de 10% dos francófonos chegavam ao ensino superior. Apesar das primeiras ações da FLQ — como explodir caixas de correio e lançar coquetéis molotov em fábricas — não deixassem vítimas, a incompetência amadorística de seus brancaleônicos integrantes rapidamente cuidou para que isso se alterasse.

A intenção original de Oliveros era produzir uma HQ sobre a Crise de Outubro de 1970, quando o governo canadense recorreu ao War Measures Act de 1914 — que ampliava os poderes do governo visando manter a segurança e a ordem, e para isso suspendendo liberdades individuais da população — após a FLQ sequestrar e assassinar o Ministro do Trabalho Pierre Laporte e raptar o diplomata britânico James Cross. Durante sua pesquisa, o quadrinista foi se deparando com mais e mais informações sobre os acontecimentos na década anterior, e o que seriam apenas algumas páginas de introdução acabaram se tornando este primeiro livro, que se encerra em 1970, abrindo caminho para o segundo volume (que o autor já está produzindo).

Depoimentos contraditórios dos personagens revelam múltiplas perspectivas e diferentes discursos.

Baseando-se em uma caprichada pesquisa em documentos oficiais, livros, jornais e revistas, Oliveros adota como fio condutor da narrativa depoimentos de ativistas, políticos, trabalhadores, policiais e outras testemunhas dos fatos. Desta forma, constrói uma envolvente exposição histórica por meio de vieses pessoais, explorando habilidosamente a parcialidade conflitante dos relatos, que chega a provocar insegurança no leitor sobre os ocorridos. O estilo cartunesco da arte fica a serviço desta inquietação, levando-nos muitas vezes a focar no que é insinuado, ao invés do que provavelmente seria transmitido por um visual mais realista. Embora realce o humor involuntário dos planos fracassados, o desenho caricatural não minimiza a violência das ações ou o drama das famílias (inclusive dos revolucionários), nem prejudica a representação detalhada dos locais e circunstâncias retratadas.

A construção e a disposição das imagens e balões de diálogo garantem a fluidez da narrativa.

A bem cuidada edição do livro (16,5 x 20,5 cm, capa dura, 170 páginas) proporciona uma leitura imersiva da HQ, valorizando os diferentes ritmos que o autor imprime aos episódios. O uso convencional de transições visuais e disposição dos requadros está a serviço da clareza história e de sua compreensão. É preciso também reconhecer o exímio trabalho invisível de Oliveros na escrita dos diálogos e recordatórios, que se mostram precisos, ricos em esclarecimentos, e contam com excelentes soluções na configuração dos balões e seus apêndices. Outro artifício simples mas bastante engenhoso e elegante, em se tratando de uma HQ centrada em um embate sócio-econômico com raizes culturais e idiomáticas, foi diferenciar as falas originalmente em francês e em inglês por meio do letreiramento (feito pelo próprio Oliveros), respectivamente em caixa baixa e caixa alta.

O uso de letras maiúsculas para sinalizar a programação anglófona da rádio escutada pela população francófona.

Tido como um quadrinista ocasional — ele também é autor de The Envelope Manufacturer, sobre o declínio de um pequeno empresário do ramo de papelaria —, em 1989 Chris Oliveros fundou a editora Drawn & Quarterly. Esta tornou-se a principal voz das HQs autorais canadenses publicando Julie Doucet, Chester Brown, Seth, Guy Delisle, Michel Rabagliati, Philippe Girard, Joe Ollmann e Kate Beaton, entre outros, além de editar nomes como Adrian Tomine, Chris Ware, Daniel Clowes, Craig Thompson, Ebony Flowers, Joe Sacco, R. Sikoryak e Jason Lutes. Em 2015, Oliveros deixou a editora para trabalhar neste projeto. Desde a mais recente edição do Toronto Comics Art Festival (TCAF), sigo o Instagram da D&Q , através do qual soube do livro e de sua turnê de lançamentos. Compareci ao que foi realizado aqui em Toronto, no pequeno auditório da bela Biblioteca Pública Lillian H Smith. A programação contou com uma palestra de pouco mais de meia hora do autor, seguida por um bate papo com Chester Brown, perguntas da platéia, e sessão de autógrafos.

Inicialmente causou-me certa surpresa o fato da apresentação de Oliveros — bem como da grande maioria das perguntas dos presentes — ser praticamente toda direcionada aos acontecimentos históricos que a obra abordava, mas não diretamente à graphic novel em si. Talvez tenha sido a primeira palestra que assisti sobre uma obra de quadrinhos sem imagens da mesma (bom, apenas a capa, no slide inicial). Nela, o autor se amparou em imagens das centenas de publicações que consultou, bem como fotografias de Montreal na época dos acontecimentos, retratando, por exemplo, a abundância de letreiros comerciais e placas de sinalização exclusivamente em inglês. Distante do tradicional enfoque sobre o processo de feitura de uma história em quadrinhos, esse ambiente me remeteu a festivais de literatura, ou mesmo de quadrinhos realizados na Europa, em que o relevante é o ponto de vista do autor, independente do suporte ou da natureza da obra. Em retrospecto, certamente contribuiu para esta minha percepção ver-me sentado entre dois formidáveis quadrinistas que conheci em edições passadas do Festival de Angoulême, Seth e Chris Ware, que vieram prestigiar o amigo e ex-editor.

Chris Ware, Bruno Porto e Seth; Chester Brown conversando com Chris Oliveros.

No entanto, houve espaço para se discutir a HQ. Entre a palestra e as perguntas, o veterano quadrinista Chester Brown (com quem já havia cruzado no TCAF) , conduziu uma interessante conversa com Oliveros. Familiarizado com a obra — Brown foi um de seus primeiros leitores, como se vê na seção de agradecimentos do livro —, abordou algumas decisões narrativas, como deixar dúbio a veracidade do encontro de um dos fundadores da FLQ com Fidel Castro (vide imagem abaixo), apesar de relatos de que isso (provavelmente) aconteceu. Muito sutilmente, o aspecto provocativo das perguntas — como questionar a liberdade artística ao mencionar uma determinada cena que possuia um registro fotográfico diferente do que o livro traz — incitava a curiosidade dos presentes pela obra, abrindo espaço para o autor falar sobre os desafios do seu processo de trabalho. E até mesmo do motivo do seu nome estar bastante escondido na capa.

Are You Willing to Die for the Cause? representa um excelente exemplo do poder narrativo inerente aos quadrinhos. A perspicácia de Chris Oliveros na condução das ambiguidades deste recorte histórico só se vê possível pela capacidade única de explorar, intensa e simultaneamente, imagens e texto (este segundo também tratado como expressão visual) no mesmo espaço. Após sua leitura, fica difícil imaginar qualquer outra materialização tão rica ou tão prazerosa para dar conta dos amplos fatos que ele analisou e, com muita lucidez e empatia, com que nos brindou.