O que são BDs? Um segundo corte, parte 3: Moebius

Por Ciro I. Marcondes

Moebius morreu em 12 de março de 2012. Eu havia programado um texto sobre Escala em Pharagonescia, uma de suas histórias mais interessantes e pitorescas, para a série “o que são BDs – um segundo corte”, quando, em 12 de março de 2012, Moebius morreu. Isso me fez repensar algumas coisas sobre como este texto deveria ser conduzido, e resolvi realizar apenas um comentário breve sobre Pharagonescia e encarar novamente, com toda sua complexidade, irregularidade e gordurosas gotas de primorosa intuição lisérgica, A garagem hermética, uma obra que é toda Moebius, uma obra que está toda dentro de Moebius, e a vida e morte de Moebius, de certa forma, atravessa a esteira dimensional que compõe esta obra.

Sobre A garagem hermética, escreveu Moebius: “Ao criar este sentimento de permanente insegurança, eu descobri o prazer da continuidade. Todo mês eu tentaria, com certa dificuldade, recriar uma trama coerente a partir dos elementos existentes. Então, as separaria outra vez para me sentir inseguro novamente e, assim, no mês seguinte, unir os pedaços e começar tudo de novo, até o final da história”. Este procedimento criativo, que intui as próprias hipóteses (e não as respostas) da história a partir das imagens que vão se transvisualizando no lápis do autor, é o diferencial de um artista como Moebius. Ele sai de uma noção bela, simples e ao mesmo tempo inexorável de inconsciente, como se, lá no fundo de nós mesmos, ao invés de palavras tivéssemos imagens (ainda Freud, ao invés de Lacan), e essas imagens é que gerassem nossa consciência, nosso self, tudo o que somos, e daí também, no processo artístico, os diálogos brotam das imagens, a trama brota das imagens, portas abrem outras portas, fiações geram estruturas que abrem mais portas, e a linguagem do sonho parece uma oficina organizada, mas organizada no condensar e no deslocar. É uma garagem, sim, mas hermética.

É curioso que Jean Girauld tenha adotado “Moebius” (“Möbius”) como nome de guerra para sua ficção científica lisérgica, já que o universo da garagem hermética nos coloca na perspectiva de que podemos estar vivendo em um mundo inventado – não por um deus, mas por alguém como nós –, e que a realidade se encaixa em modelos concêntricos de construção, como se, se aplicamos engenharia para construir um prédio, alguém pudesse ter aplicado engenharia para construir a nós e a esse planeta. A fita de Möbius é um espaço sem bordas e sem fronteiras, sem frente nem verso, sem direção e cuja perspectiva é a de se andar para frente e para os lados ao mesmo tempo. A predileção por este fantástico objeto matemático como nome de guerra nos mostra que, realmente, a série A garagem hermética funciona como a própria labiríntica rede de túneis em que o personagem Larc Dalxtré adentra para tentar encontrar Lewis Carnelian: podemos entrar por qualquer lugar, andar sem saber o rumo, pensar que vamos numa direção e ir para outra, mas sempre, sempre chegamos a algum lugar, geralmente o nosso mesmo ponto de partida.

A garagem hermética é uma das grandes obras das histórias em quadrinhos. Foi escrita, de maneira bastante irregular, ao longo de 10 anos (1976-1987) por Moebius para a revista Métal Hurlant, sob editoração de Jean-Pierre Dionnet. É comum que nos percamos na hora de ligar os pontos das jornadas individuais de cada personagem, especialmente na primeira metade da história, bem diferente das últimas (e aventurescas quase num nível de super-herói) quinze páginas, escritas de uma só vez. De certa forma, perder-se no labirinto do real é um objetivo da arte de Moebius. Como em Becket, seus personagens, mesmo parados, trilham caminhos, e encontram sentido (como na fita de Möbius) somente no movimento de trilhar em si, irrompendo na encruzilhada entre a fiação da realidade exterior e a da realidade interior, mediados pela tecnologia (no fim das contas, para Moebius, é tudo a mesma coisa). Para aprofundar (minimamente que seja) uma análise desta HQ, vale pensar em outros dois aspectos:

1: A superfície visual do mundo

Como eu disse antes, Moebius trabalha nesse nível plasmático do mundo, uma superfície visual mutável que faz vezes de diálogo, faz vezes de história. Na Garagem hermética, num espaço de conflito pelos botões que gerenciam a própria realidade, acompanhamos as jornadas becketianas de cinco personagens: o engenheiro (e assassino de um guarda... “pai de dois filhos”!) Barnier, que quebra um aparalho na garagem e precisa fugir (e logo encontra o misterioso Arqueiro); Samuel L. Mohad e sua namorada Okania, responsáveis por espionar os planos de Lewis Carnelian; Larc Dalxtré, por sua vez um espião da mulher do Major Grubert, Malvina, a feiticeira sexual; o próprio Major Grubert, famoso personagem de Moebius, um humano que descobre a chave tanto da imortalidade quanto da criação de mundos, e é o responsável pela criação dos três níveis do universo da mitologia de Moebius, sendo cada nível mais puro que o outro, um como gerador do outro (mais ou menos como no filme “A origem” ou na HQ “O reino dos malditos”); e, por fim, Lewis Carnelian, humano da geração de Grubert, a quem foram conferidos poderes especiais pelo Nagual (“aquele que permanece imóvel e silencioso no centro da teia do tempo”, oh my god...), e que pretende, de alguma forma, tomar conta dos níveis do universo de Grubert, gerando aí toda uma série de tramas, espionagens e desventuras em busca desse centro de poder. Como se pode ver, os entrecruzamentos destes personagens são vagos, num quebra-cabeças impreciso, nada wellesiano, e cercado de paisagens estranhas, dobras e vácuos no tempo e na realidade, a partir de veículos esdrúxulos, culturas esquisitas, indumentárias e modas cruzadas, arquiteturas oníricas, mundos que abrem passagem uns aos outros. Seria, assim, um flanar pela própria estrutura interdimensional do espaçotempo.

Poderíamos pensar, sem querer trazer conceitos filosóficos demais (sem necessidade) a este texto, que a  imagem, essa plasmadora do quebra-cabeças, para Moebius, funciona como o conceito de imanência para o filósofo Gilles Deleuze: ou seja, dessa superfície onde repousam todas as coisas tangíveis, brotam todas as outras intangíveis (os incorpóreos). Basta pensar o método de quadrinização de Moebius, que, apesar de mudar no decurso da série, teria uma propensão mais centrípeta (cada quadro é um universo em si, com linhas de ação e tempo acontecendo dentro de uma só imagem) do que centrífuga (a arte sequencial narrativa da HQ de tradição mais americana, muito dependente da sarjeta, sem as lacunas de Moebius, funcional). É comum, n’A garagem hermética, que três ou quatro quadros resumam situações bastante complexas, com diálogos extensos, alongando o tempo de observação das próprias imagens, ou o contrário: diálogos lacônicos cuja função será privilegiar a imprecisão temporal da história. Moebius realizava, durante muito tempo, apenas duas páginas por mês, então é natural que se compreenda a Garagem hermética como uma estrutura de sistema solar, onde cada pequeno núcleo orbita os outros, mas de maneira relativamente autônoma. Neste sentido, o vagar dos personagens pelas fendas do mundo do Major Grubert é ao mesmo tempo o vagar das palavras pela imprecisão das imagens (ou vice-versa) e o vagar dos acontecimentos do mundo por essa estrutura plasmática que seria a imanência deleuziana. É por isso que vemos, n’A garagem, tantas contribuições de metalinguagem, com o narrador dos letreiros cada vez mais aloprado e sem funcionalidade, assim como também uma variação muito exótica entre humor e drama, aventura barata e densidade filosófica. Os túneis de Larc são, em todos os níveis, alegoria da própria transcendentalidade, em todos os níveis (artístico, real, filosófico) da visão de mundo de Moebius.

2: Transmutabilidade

Assim, chegando em Escala em Pharagonescia, é impossível não pensar neste precisamente bem-executado spin-off d’A garagem hermética como um epílogo mais organizado e simpático do que a obra maior de Moebius. Afinal, aqui, Moebius problematiza a situação do estrangeiro, da figura em passagem (mais uma vez, becketiano), que procura se alojar, por um dia que seja, na cultura antípoda, mas isso acaba por revertê-lo numa mutação: no sentido alegórico da história, uma mutação existencial. No sentido literal, uma mutação física. Moebius não explica tecnicamente (é claro. Ele deixa apenas deixa que se antevenha que aquela “magia” possui algum fundamento técnico, ou melhor, mecânico, seja ele qual for) a razão porque, após beber uma coisa de um jeito errado, o terrestre J.D. Foster, numa escala no planeta Pharagonescia (bem na fase IV do dia das mutações! Seja lá o que isso signifique...) passa a sofrer mutações cada vez mais estranhas, com sua estrutura molecular se reorganizando o tempo todo. Chega um momento em que os Pharagos, tentando resolver o problema, casualmente soltam diálogos deste tipo: “Ah! Não é estranho? Saiu do estado de Pnouche... pra entrar no estado ‘ultrafluidez molecular osk-bergam’”. “Estado ‘ultrafluidez molecular osk-bergam,’ claro, claro. O problema é que estamos exatamente no dia da festa das mutações e que a conjunção das três luas e do grande fasma resulta naquilo que vocês bem sabem”...

Ao trabalhar o conceito de mutação como algo pertencendo a um universo absolutamente alienígena (“ultrafluidez molecular osk-bergam”), mas ao mesmo tempo colocando os personagens para discutirem esse cotidiano com imprevisível familiaridade (“O problema é que estamos exatamente no dia da festa das mutações e que a conjunção das três luas e do grande fasma resulta naquilo que vocês bem sabem”), Moebius faz verdadeira ficção-científica. Suas imagens e seu texto servem ao mesmo tempo para que pensemos em seres cuja fragilidade molecular permite que se transmutem, em nível atômico, como atividade ritual, fazendo-nos refletir sobre a fluidez ou cristalidade do mundo subatômico, no que fomos, no que somos e no que seremos; e ao mesmo tempo para criar um cotidiano absolutamente entediante ao redor de quem vê essa cultura de uma perspectiva interna, como um lixeiro tendo que varrer as merdas dos turistas ao final docarnaval carioca. Esta tensão entre humor e metafísica é o que acaba extenuando a qualidade de Moebius como artista sem fronteiras, cujo hermetismo pode variar de edificações de mundos com leis próprias até a simplicidade de um humor anedótico e chulo. N’A garagem hermética, há um momento em que o Major Grubert faz perspicaz observação: “às vezes, o próprio tempo sonha”. E era mesmo isso que seus universos, e o próprio Moebius, faziam parecer querer ser: sonhos do próprio tempo. Em 12 de março de 2012, o tempo despertou, e nos deixou, ao que parece, numa eterna vigília.  

O que são BDs? Um segundo corte - parte 2: Ulysses

por

Ciro I. Marcondes

Para quem está perdido no nosso guia idiossincrático da estética e cultura das HQs francobelgas, pode ler a introdução ao segundo corte e o primeiro texto (

Andarilho dos limbos

)

aqui

, além dos textos do primeiro corte (

aqui

). Li

Ulysses

numa reedição americana,

Heavy Metal Classics

, de 2006, que reúne os dois volumes da obra. É uma leitura leve, deliciosa e estimulante.

Polifemo

2: Ulysses (Georges Pichard e Jacques Lob)

Zeus e os deuses do Olimpo: Legião dos Super-Heróis?

Concorda-se hoje que dia que a

Odisseia

seja uma coletânea de mitos das tribos gregas arcaicas reunidas em textos tradicionais cuja disseminação se dava, primeiro, apenas oralmente, e que depois foram organizadas por dois ou três aedos

que acabaram sendo convencionalmente reunidos sobre a alcunha “Homero”

, no Séc. 8 a.C. À

Odisseia

junta-se a outra epopeia clássica, a

Ilíada

, além de outros textos épicos que se perderam, muitos deles ainda na época da antiguidade. Estes textos sobreviventes fazem parte de nossa fundamentação filosófica, histórica e religiosa, e deveriam ser lidos cuidadosamente por qualquer cidadão que se interesse minimamente por cultura ou história. Estas estruturas míticas, que englobam a criação de arquétipos definidores, preceitos morais e toda uma substância linguística herdada pelo ocidente, se manifestam em grande escala em nossos conceitos filosóficos, literários, psicanalíticos, sociológicos e políticos. Obviamente, a

Odisseia

é um dos textos mais apropriados, parodiados, reprocessados e adaptados da nossa história.

Enquanto outras mídias procuraram sempre reinventar o sentido da tenebrosa viagem de retorno de Ulisses

(ou Odisseu, para os gregos) após vencer a guerra de Tróia, os quadrinhos realizaram apenas leituras tímidas, quase todas adaptações infantis.

A arte safadinha de Pichard

O que torna essa versão realizada pela incrível dupla Pichard/Lob diferente de tudo que foi feito em relação ao peso histórico deste texto é sua alucinante adequação ao

esprit d'époque

no qual os autores estavam mergulhados. O já falecido Georges Pichard foi um dos mais talentosos e inquietos mestres do erotismo francês, e a maior parte da sua obra em quadrinhos foi dedicada ao aperfeiçoamento desta arte, tão cultivada pelos gênios setentistas da

Métal Hurlant

. Pichard detém um traço ao mesmo tempo expressivo e delicado, de alta personalização e identificação. Seus cenários e figurinos são floreados de elegante

art-nouveau

, inundando as páginas com cores suaves e curvas sinuosas, deixando seus personagens com forte carga sensual, inequivocadamente sensual, impterivelmente sensual. Suas mulheres, com olhos grandes e vibrantes, sardas salientes e curvas difíceis de se ignorar, chegam quase a exalar perfume róseo saído de dentro das páginas da HQ. Toda essa imersão em um ideal grego de beleza fez com que ele encontrasse, na

Odisseia

, um foco muitas vezes ignorado nas transposições habituais da obra, que é essa urgente sensualidade e a presença constante de volúpia e desejo nas ações que norteiam os heróis.

As sereias

Por outro lado, o tradicional roteirista de Pichard, Jacques Lob (também falecido), encontra uma segunda maneira (à parte a sensualidade) de manifestar este estilo setentista a uma história tão distante no tempo. Sem perder completamente o embasamento no original de Homero (a época e os personagens se mantêm) e influenciado por uma leitura bem-humorada, sacana e

cool

dos padrões e personalidades dos deuses gregos – que mistura Stanley Kubrick,

Erick von Daniken

,

Stan Lee

e um tanto de outras coisas –  Lob vê na trajetória do rei de Ítaca uma grande afinidade com o estilo sci-fi descolado da

Métal Hurlant

. Assim, transforma os deuses não em criaturas mágicas, mas em sujeitos avançados tecnologicamente e de mentalidade moderna, com visual

chic

e arrojado, comportamentos liberais e pós-modernos; figuras hedonistas, cínicas, junkies, devassas, dândis.

Netuno

Esta combinação robusta de talento e

timing

para se perceber como contar um clássico à luz de sua própria época (a HQ foi publicada originalmente em dois volumes, em 1974 e 75) faz do

Ulysses

de Pichard e Lob uma obra leve e deliciosamente rica, cercada de conceitos ousados para o design de personagens e para invenções retrofuturistas. Espertamente, Lob também limita a adaptação a apenas quatro cantos da

Odisseia

, tornando a jornada de retorno do herói grego menos cansativa (quem leu Homero sabe o quanto) que o original. Assim, a adaptação resume-se aos episódios com o ciclope Polifemo (aqui vertido num robô de Netuno), à perseguição empreedida pelo deus dos ventos Éolo (um sujeito gordo que voa numa poltrona metálica estilo Charles Xavier – em forma de bunda), à estadia de Ulisses e seus marinheiros na ilha da feiticeira Circe (aqui, além de feiticeira, uma diva lisérgica, experimentadora de radicais modalidades sexuais e psicotrópicas) e ao do chamado das sereias em alto mar.

Atena: belezinha

Cada um destes episódios é contado com encanto próprio, em quadros grandes e dinâmicos, quase como numa HQ de Jack Kirby ou John Buscema, mas ao mesmo tempo privilegiando ângulos pouco convencionais dos personagens, transbordando volúpia, olhares desejosos, pequenas sacanagens. O que também salta aos olhos é a criação de um conceito visual muito próprio e bem-sucedido para cada um dos deuses. Zeus, por exemplo, veste uma espécie de colant que poderia pertencer à Legião dos Super-Heróis, com olhos compenetrados e barba escura, jovial. A deusa Atena, aliada de Ulisses, mistura sua forte presença com irresistível ingenuidade, o que a tornam a personagem mais sensual da HQ, usando um enlouquecedor “tomara-que-caia” às avessas (!). O deus Netuno é uma criatura reptiliana, paranoica e mau-humorada, com ares de cientista, sempre coberto totalmente por um escafandro grosseirão. Já Hermes, o mensageiro do Olimpo, parece um astronauta da era de ouro, não deixando de se lembrar os super-heróis (Flash e Mercúrio) inspirados nele próprio.

Trips

Para finalizar, vale um comentário sobre o episódio de Circe, que achei o mais interessante e perturbador. No texto homérico, Circe é uma semideusa frívola e voluntariosa que vive cercada de ninfas em uma ilha, aonde Ulisses e os marinheiros vão parar após um naufrágio. Lá, ela os seduz e os transforma em escravos (e porcos!) usando poderes mágicos, seduzindo o rei grego e provocando nele o ímpeto para realizar sua primeira traição a Penélope, a rainha que o aguarda há 10 anos em Ítaca. Pichard e Lob se aproveitam do óbvio potencial erótico e moral deste episódio para trazer cenas fortes de erotismo e repulsa (os marinheiros pensando que são porcos, comendo a própria merda, por exemplo). Circe e as ninfas são vertidas em devassas de índole libertária e quase sádica, valorizando um jogo S&M, lembrando muito os quadrinhos de Crepax. É excepcional a entrada de Ulisses no quarto dos prazeres de Circe (aqui, uma morena, sempre seminua, de olhar gótico e lábios carnudos), uma instalação meio

Mary Shelley

com

Russ Meyer

dedicada à experimentação com todo tipo de entorpecentes. Convencido a se drogar indefinidamente e alojado em outro

momentum

do tempo e do espaço, Ulisses fica no quarto pelo período de um ano, em intermináveis

trips

e orgias com Circe, até que desperta, resolve fugir e encontra seus marinheiros prontos para partir sem seu rei. O que se segue é um brutal

cold turkey

para o rei de Ítaca, em cenas macabras e psicopáticas que revelam o grau da abstinência que desaba sobre o herói.

Cold turkey

A graça deste episódio é que, por assustador que seja – Pichard desenha os quadros à maneira dos “

Fillmore Posters

” de Rick Griffin –, ele faz essa conexão bem sacada e maliciosa entre os ideais absolutamente não-puritanos dos gregos antigos e a ascensão da uma contracultura nos anos 60/70, da qual a

Métal Hurlant

acabou se tornando parte importante. Dispensando a obrigação de fazer

uma leitura muito densa e simbólica da obra de Homero

,

Ulysses

retrata o lado leviano e sarcástico, de ironia cruel, escondido sob as tradições de

pathos

e tragédia associadas aos gregos antigos. Esta operação, divertida e primorosa, de transformação do clássico em

cool

, fará com que a obra de Pichard e Loeb seja sempre revisitada, já que seus temas históricos e seus futurismos não têm lugar preciso na nossa realidade. Nem sempre é tão simples quanto parece criar um mito moderno a partir de um mito clássico, e essa obra tem o mérito de sintetizar, deliciosamente, duas épocas em uma só força narrativa .

Circe: encaras?

O que são BDs? Um segundo corte – parte 1: O andarilho dos limbos






















por Ciro I. Marcondes

Dando sequência ao nosso altamente pessoal, idiossincrático e incompleto (reclamações e ausências são bem-vindas – na caixa de comentários) guia pra iniciantes em BDs, vou fazer um pulo ainda mais recortado para falar um pouco sobre um fenômeno que consumiu as HQs francobelgas nos anos 70 e se tornou influência maior para os quadrinhos adultos desde então. Aqui no Brasil, caras como Mozart Couto e Watson Portela rapidamente aderiram ao apelo sci-fi-erótico-lisérgico que o surgimento da revista (1975, França) Métal Hurlant disseminou no imaginário dos quadrinhos. A versão americana, Heavy Metal, (que sempre teve muito pouca relação com a equipe editorial que produzia a original francesa) acabou cristalizando o conceito e eternizando-o. Mesmo assim, esta mistura específica de subculturas pop é ainda signo de HQ europeia, e determina um ponto de virada retumbante na cultura da BD, engolfando outros países de língua latina, como Espanha e Portugal, definitivamente para dentro deste imaginário.

Mas em quê consiste? Bem, o recorte aqui será pontual e pessoal, podendo ser estendido ad infinitum, de acordo com a vontade deste resenhista de continuar escrevendo a respeito. A ideia de tragar as culturas sci-fi e de fantasia (sempre eminentemente britânicas e americanas – Júlio Verne e Georges Méliès à parte) para dentro do cânone dos quadrinhos nunca foi nova. Basta lembra Flash Gordon, Bucky Rogers, o próprio Superman (coisa derivada do sci-fi pulp em suas origens). O onírico/lisérgico já se anunciava desde os early comics, como comprovam Little Nemo, Félix, Mickey Mouse, etc. Além disso, evidentemente, a longa série de sci-fipulp da EC, qualquer coisa em Tintim, alguma coisa ainda em Mandrake, e até mesmo o Brasil entra no balaio com o sincretismo mecanoide que era Garra Cinzenta. Na Argentina, a partir de El eternauta, o gênero cria uma forte tradição.

Logicamente, tudo que ocorre nos anos 60 – direitos civis americanos, guerra do Vietnã, desbunde, flower power, panteras negras, maio de 68, summer of love, Bob Dylan, Beach Boys e Beatles, libertação da Argélia, descolonização da África, Che Guevara, crise dos mísseis, 2001, tropicalismo, feminismo, nouvelle vague, etc, etc, etc... – acaba por transformar (e transtornar) profundamente o artista dos anos 70, e creio que, nas HQs, Guido Crepax e sua Valentina acabam se tornando um paradigma para gerações de HQs europeias vindouras. Aquela coisa linda – belas, poderosas e libertárias mulheres; abuso de lisergia, drogas e psicodelia; as formas modernas de artes plásticas instiladas no conteúdo e na forma das HQ; e uma dose cavalar de mundos fantástico, sci-fi como leitura do mundo e influência do sonho e do delírio – se tornaria paradigma, ainda que, creio eu, poucos tenham chegado aos pés do mestre italiano.

Portanto, este é um mundo de vastidão cósmica e, no meu caso, vale mais fazer meu próprio guia do que sair por aí arrotando regras. Escrevo sobre quatro álbuns específicos que me impressionam, de autores fundamentais, em quatro posts, e defino aqui, agora, instantaneamente, os subgêneros que lhes cabem. Boa viagem intergaláctica!


1 -  Le vagabond des limbes (“O andarilho dos limbos”, de Christian Godard e Julio Ribera) e a space-opera interdimensional ou onírica: esta brilhante e longeva série francesa não é tão adulta quanto o material da Métal Hurlant. Surgiu nos anos 1970 pela tradicional editora Dargaud, e mistura fantasia científica (tipo Star Wars) com viagens astrais, outras dimensões e outros temas próprios ao campo do fantástico.


2 – Ulysses (de Georges Pichard e Jacques Lob) e a mitologia científica: clássico da Métal Hurlant dos anos 1970, adapta a coletânea de mitos gregos feita por Homero para um curioso contexto em que os deuses – absurdamente cativantes e sensuais – têm o domínio de tecnologias e culturas sci-fi.


3 – Escala em Pharagonescia (Moebius) e a ficção científica lisérgica: juntamente com o roteirista Jean-Pierre Dionet e o quadrinista Phillipe Druillet, Jean Giraud (é, o Moebius mesmo) foi fundador da Métal Hurlant e é até hoje o maior mestre nesta miscelânia. Esta história compõe, junto com a série A garagem hermética, sua obra-prima. Moebius, com sua visão espacial individual e irrepetível, faz da sci-fi esteira para um mundo onde tudo é possível, motivado por “visões”, experiências místicas e psicotrópicas.

4 – Yragael ou la fin des temps (“Yragael ou o fim dos tempos”, de Phillipe Druillet e Michel Demuth) e a fantasia científica filosófica: nesta obra maior e megalomaníaca de Druillet e Demuth, os quadrinhos se tornam grandes painéis sobre os temas mais ancestrais, as guerras mais arquetípicas, os renascimentos mais mitológicos. 


1: O andarilho dos limbos – Os demônios do tempo imóvel (Christian Godard e Julio Ribera)

Novamente de volta aos bons anos 90 (segunda metade), cheguei a escrever uma boa quantidade de contos (pelo menos uns 20) baseados em um universo de ficção científica que eu mesmo criara (devo confessar que para jogos de RPG) – hoje tudo ilegível, salvo um conto e um outro incompleto, escrito já na fase “adulta”. Como jovem estudante de literatura e ávido devorador de Dostoievsky, Machado, Rosa, Kafka, Shakespeare e os gregos todos, podia parecer ainda estranha minha contínua adesão à literatura de ficção-científica (favoritos: Heinlein, Clarke, Silverberg), que certamente nutre alguma pobreza estilística (foda dizer, mas é verdade), mas compensa muito nos sistemas criativos, em alegorias intrigantes, em aventuras e mundos inesquecíveis. É este último nicho que engloba a space-opera, derivação bem pop do sci-fi que mistura geralmente universos vastos, incluindo muitos planetas e até galáxias (por abstruso que possa parecer, à luz da física atual, viajar de uma galáxia pra outra), polícias espaciais, impérios estelares, raças exóticas, culturas diversas alienígenas e quase sempre um twist de fantasia, preservando a beleza do inexplicado num mundo “cientificamente” dominado. Star wars acabou se tornando a mais famosa space-opera.

Meus contos se desenhavam num conceito como esse, em que a humanidade, viajando pelo universo havia milhões de anos, encontra um sistema de planetas perfeitamente harmônico, socialmente e evolutivamente controlado por seus habitantes, altamente receptivo a visitantes longínquos. A gente chega lá e esculhamba com tudo, mas não é isso que quero dizer. Quero apenas lembrar meu fascínio pelo conceito do space-opera. Sua gama de combinações e possibilidades, sempre aberto à invenção; sua licença poética para não se preocupar (muito) com a coerência científica; seu namoro com a fantasia. É por isso que, antes de passar propriamente às HQs que possuem relação com o mundo da Métal Hurlant, resolvi falar sobre esta série infanto-juvenil (?) escrita pelo mestre Christian Godard (sem relação com Jean-Luc) e ilustrada no traço muito requintado de Julio Ribera. O andarilho dos limbos começou a ser publicado pela clássica editora belga Dargoud em 1975 e até hoje mantém certa regularidade, tanto no título principal quanto com spin-offs. É uma das mais longevas e melhores séries de Ficção-Científica em HQ e chegou a ser lançada em Portugal como O vagabundo dos limbos (cabe uma tradução do título para o português brasileiro) primeiro pela Livraria Bertrand e depois pela Meribérica-Liber.

Apesar de não ser tão chegada aos excessos de sexo, filosofia e lisergia que caracterizaram a geração da Métal Hurlant, O andarilho dos limbos fez parte da ascensão deste então novo gênero das BDs que valorizaremos neste corte. Mesmo assim, não é uma HQ pudica e busca lindo equilíbrio entre um imaginário infanto-juvenil (tipo Salgari, Stevenson, Swift, etc.) e uma possibilidade de leitura adulta. O álbum que comento aqui, Os demônios do tempo imóvel (Les demons du temps immobile) foi publicado em 78 e é um dos mais líricos da série. O herói em questão é Axle Munshine, espécie de Flash Gordon sagitariano, antigo conciliador (portanto, embaixador e explorador) da Guilda galáctica que acaba se tornando foragido e pária. Axle então viaja através do cosmos em sua nave (hoje kitsch), o Golfinho de prata (ah! Os anos 70...), juntamente com seu sidekick andrógino Musky, um menino(a) preso na idade 13 anos (há 300 anos), física e mentalmente. O motivo do banimento de Axle é sua persistência em invadir o mundo dos sonhos (que, segundo o mote geral da série, deve se manter separado) para buscar uma figura hipnótica e irresistível, uma beldade loira convenientemente apelidada “Quimera”, levando-o constantemente à fronteira entre o real e a fantasia. Axl é irascível e fatal como um Príncipe Valente, mas ao mesmo tempo obstinado e enlouquecidamente apaixonado, como um Dom Quixote.


Kanybs: belas almôndegas
 Em Os demônios dos tempos imóveis, três aspectos me chamam a atenção. Primeiramente, no arco que inicia a história, o respeito à criação de culturas alienígenas sem o propósito de vincular isso necessariamente ao desenrolar da trama em si. Axle e Musky desembarcam em Omphale, “o planeta dos tempos imóveis”, supostamente perigoso porque não vinculado à Guilda, e lá se deparam com uma paisagem vulcânica, cheia de cavernas e gêiseres, habitada por estranha espécie, os Kanybs. Diante dos medos e boatos que Musky faz questão de informar ao leitor (“famosos por não obederecerem às leis da Guilda e pela prática do canibalismo”), Godard procura elaborar uma pequena “antropologia” como exemplo de criatividade em space-opera. Os Kanybs são criaturas quase ovais (ótimo design), como que feitos de pedra (tipo trolls), com olhos grandes e profundos, e que vivem em um andamento lento, praticamente incomunicáveis.

Deparamo-nos, então, com uma fêmea (bem peituda) desligada do resto do clã, diante da carcaça de um macho morto. Logo descobrimos que as fêmeas grávidas são afastadas do grupo para devorar as carcaças dos mais velhos do clã, gestando o bebê para morrerem logo após o parto. Essa caracterização cultural dos aliens (claramente baseada em culturas indígenas) está longe dos requintes de detalhamento de um Gods themselves (Asimov - leia), mas a antropomorfização não chega a ser um problema especialmente se considerarmos que todo mote da série alegoriza uma exploração da vastidão interior humana, além de sua diversidade.

Assim, o prosseguimento da história nos leva a um segundo atravessamento que chama a atenção: Axle e Musky entram em uma caverna e se encontram com o xamã espiritual e governante dos Kanybs, o único capaz de falar a língua geral. Cobrando um antigo favor, Axle insiste ao xamã que o deixe adentrar num certo “labirinto dos três monarcas”, uma espécie de portal interdimensional que o levará a um universo de tempo estático e transversal, arriscando ter sua consciência aprisionada e seu corpo esvaziado. Este arco concentra quase todo o volume da história, e nos revela o grau de obstinação de Axle para encontrar sua Quimera, ao mesmo tempo em que, no timing da HQ de aventura, precisa enfrentar seus próprios “demônios” (enriquecendo o trocadilho do título, certo? Os demônios, afinal, não eram os Kanybs).

Esta passagem nos permite visualizar melhor todo o potencial de ilustração de Ribera, de traço fino e claro, usando linda paleta de cores frias, baseada em um estilo sci-fi de realismo clássico, mas com toda a deferência associada à cultura das BDs: sombreamentos quase obsessivos, planos distantes detalhados em minúcias e intensa imersão na concepção de cenários exóticos e verossímeis. Os “três monarcas” com que Axle se defrontará no labirinto são nada menos que três versões dele mesmo: uma, envelhecida e amarga, sem sua Quimera, rei de um mundo mortos-vivos; outro, um jovem petulante e excessivo, trivial e leviano; e por fim uma criança assustada, guardiã obcecada de uma loira linda e espectral, cercado por um exército de brinquedos. A variação onírica dos cenários permite a Ribera recriar a HQ na própria maleabilidade do universo dos sonhos, deixando sua atmosfera tenebrosa e fantasmagórica no primeiro monarca, psicodélica e bucólica no segundo, e neurótica, muito surreal, no terceiro.


Quimera: loiraça
A busca por si mesmo acaba nos levando a uma terceira grande sacada deste álbum, que é a busca do herói por sua identidade temporal (nesse mesmo sentido, sempre vale ler a excelente história “Futuro imperfeito”, do Hulk de Peter David) enquanto desdobramento de sua busca por uma certa “Quimera”, idealizada, fantasmagórica, muda, e que nunca chega. Não custa aproximar essa relação da obsessão com a fantasia erótica e o sonho tanto com Little Nemo de McCay, que desperta a cada vez que seu sonho se aproxima de uma resolução, quanto com o famoso mito grego de Sísifo, que tem a pedra que carrega pela montanha derrubada sempre que se aproxima de seu destino final. Axle Munshine (como o nome diz), está em uma linhagem mais lunar de heróis românticos, influenciado pela tradição americana, mas subvertendo-a no sentido de que problematiza sua própria existência a partir de sua obsessão erótica e romântica, colocando-a acima da justiça e do “bem”. Pode-se ver que O andarilho dos limbos é um exemplo ideal para se argumentar que, na boa ficção científica, a viagem pela vastidão do cosmos é uma imagem para uma viagem pela vastidão de nós mesmos.

Próximo da série: Ulysses, de Georges Pichard e Jacques Lob.

            
A linda arte de Julio Ribera

LEÃO NEGRO: um realismo de vanguarda






















por Ciro I. Marcondes

Após assistir à primeira temporada da inspirada série Game of thrones, da HBO (baseada nos livros cultuados de George R. R. Martin), um estalo: há uma demanda por mundos de fantasia instilados de realismo, violência e verossimilhança. O caráter implacável e intempestivo – certamente mais cruel do que as coisas a que nos acostumamos no imaginário do gênero, tipo Senhor dos anéis ou Caverna do dragão – desta série trouxe um fôlego novo e inesperado para o crescimento do gênero, e os mundos de fantasia se desdobraram para possibilidades obscuras e degeneradas, reflexo estranho de nossas possibilidades, na mesma toada que a ficção científica se aprimorou especialmente a partir da ficção dos anos 70, de Gibson a Dan Simmons.
Nos quadrinhos, este entendimento também se antecipou ao cinema (no caso, TV), especialmente desde a francesa Metal Hurlant. Nomes como Moebius, Hermann, Godard e Ribera já haviam percebido o quão perturbador, antípoda e contracultural poderia ser um mundo de fantasia. Eu particularmente considero mesmo o Príncipe Valente, obra máxima de Hal Foster, como algo de suprema maturidade, não só gráfica e narrativa, mas também na escritura do seu humanismo. Essa linhagem chega a coisas que beiram o surrealismo. Basta lembrar de Miiazaki ou dos irmãos Hernandez. Logicamente, por mais infantil que seja, o Conan de Roy Thomas também deu valiosa contribuição. Porém, o que a maioria das pessoas não se lembra é que uma HQ nacional se antecipou em décadas a esta compreensão de que a fantasia medieval poderia ser um triturador de tabus, um processador do nosso mundo social.

Para adultos

Conheci as histórias do Leão Negro por puro acaso. Nunca ouvira falar, ainda que a série clássica date dos anos 80. Com a recente republicação do material antigo, e a retomada da série em 2010 (pela HQM Editora), os belos álbuns foram parar em algumas bancas mais dedicadas, e consumi estes quadrinhos à moda antiga: folheei, procurei sacar qual era o conceito, e fui convencido pela curiosidade. Na contracapa da edição que comprei (“Histórias de família”), alguns chamarizes que me atraíram: "Duas aventuras com Humor * Violência * Erotismo". Mais embaixo: "PARA ADULTOS". As ilustrações (de Danusko Campos), com acabamento refinado e interessante sombramento, lembram misto não-usual de HQ americana (anabolizada) e europeia (detalhista). Foi o suficiente.

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Leão Negro se passa em um planeta sem nome, com geografia e topografia próprias, onde “diversas culturas de felinoides, canídeos e hienas”, com tecnologia medieval e convívio com seres fantásticos (como dragões), precisam medir forças – militares e políticas – em um trânsito sem fim de guerra e brutalidade. Acho de interesse particular que uma série tão focada em uma cultura de violência e machismo (autoconsciente, claro) tenha sido elaborada pela mente de uma mulher, Cynthia Carvalho, roteirista de excepcional perspectiva detalhista, mestre em ambiguidades e em desarranjar maniqueísmos.

Após ler o volume “Histórias de família” (da nova série) e ter ficado impressionado com a maturidade na elaboração dos personagens e das tramas, além da não-gratuidade dos tais “humor, violência e erotismo” que encontrei por ali, tive por sorte contato também com um álbum da série clássica, esta desenhada por Ofeliano de Almeida, não através da republicação, mas sim porque ela apareceu na tradicional revista portuguesa “Selecções BD”, da qual comprei (também por sorte) dezenas de volumes de uma vez, num sebo. Nestas revistas pude ler o ciclo “O filhote”, que acabou servindo para criar um elo importante entre os personagens das duas séries, tornando tudo mais fascinante e de longa prospecção narrativa.

Polígamos, incestuosos, escravistas, lascivos, infanticidas

Mesmo sem ler a série completa, é possível perceber a beleza toda desta injustiçada HQ nacional. As histórias clássicas se focam no “leão negro” em si, um macho dominador e violento chamado Othan. Através de um mundo flagrantemente hostil (que não fica assim tão atrás de Game of thrones em relação à problematização da própria violência medieval), estes felinos antropomórficos (que não perdem os trejeitos dos animais que os inspiram: leão, gato, lince, tigre, hiena, etc.) precisam justificar ou exorcizar seus próprios demônios internos, e, em meio a soldados, mercenários, prostitutas e loucos, as relações entre eles não poupam resoluções sórdidas, injustas ou imorais. Vale ressaltar a bravura de Cynthia Carvalho em fazer de seu protagonista um legítimo anti-herói. A despeito da simpatia que exerce no leitor, Othan é um macho infiel e selvagemente egoísta. Abandona seus inúmeros filhotes bastardos sem piedade, e com frequencia assassina suas próprias amantes. Herdeiro falido de uma dinastia que anuncia seu próprio fim, ele divide um velho castelo com seu irmão mais velho (Isauh) e sua jovem criada e pretendida (Hera), e um antagonismo de gênios opõe os dois. 

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O arco de “O filhote” se concentra especialmente no abandono de um destes bastardos, o pequeno Kasdhan, filho de leoa militar, Tchí, que acaba se transfigurando numa épica força feminina na saga do Leão Negro. Divida entre a devoção por Othan e uma paixão descontrolada pelo próprio filhote, ela acaba encontrando morte trágica, sendo a única fêmea a convencer o orgulhoso guerreiro a levar um filho para casa. Cynthia cria tensão ambígua e verdadeira entre os conceitos de masculino/feminino em toda a série. Os leões são polígamos, incestuosos, escravistas e radicalmente lascivos, mas ao mesmo tempo a submissão feminina é colocada como um estado mais complexo do que devia parecer, com grande poder de ruptura e penetração na brutal escala dos machos. Neste sentido, a autora procura olhar a cultura do mundo que criou como insider, com poder de relativização, sem tomar partidos, tornando excitantes, na série, tanto o ethos feminino quanto o masculino.

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Enquanto as histórias do arco clássico são mais dinâmicas e aventurescas, alinhadas à perspectiva mais juvenil que esse gênero tinha na época (elas foram publicadas no jornal O Globo entre 87 e 88, e coloridas pela própria Cynthia), as da série de 2010 provocam interessante reviravolta no conceito geral. Em primeiro lugar, há um salto no tempo: Othan e Isauh são leões velhos e amargos, e o filhote Khasdan, um guerreiro de lascívia insaciável, mas mais justo que o pai, é o chefe da família. Ao invés de um castelo sombrio e leões misantropos, temos um lugar povoado por inúmeros bastardos de Khasdan, suas duas esposas gêmeas (filhas de Isauh e Hera), escravos e outros, além dos personagens originais. As relações de família, dentro do contexto bárbaro da cultura dos leões, se torna uma tônica importante da série, que cresce não apenas ao amplificar o potencial psicológico dos personagens, mas também na violência moral e no erotismo.


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As duas histórias curtas, mas bastante primorosas, de “Histórias de família”, servem para trazer à tona a excelência da série nova. Na primeira delas, um pequeno leão negro, filho de um estupro cometido por Othan e rejeitado cruelmente pela mãe, torna-se um militar psicopático e calculista, e visita o castelo para acertar as contas com o velho pai. Não se espante se perceber que temas como estupro e infanticídio são tratados com naturalidade pelos personagens e verossimilhança pela autora, que incendeia os atos deles com pesada contextualização. Os quadrinhos da nova série são mais literários, com mais ajuda dos letreiros, mas, ao mesmo tempo, uma arte mais madura e sensual carrega todas estas atrocidades com humanismo e beleza. Na segunda história, uma das esposas de Khasdan, a delicada Helena, acaba descobrindo sentimentos desavisados quando passa a se aproximar demais de um escravo afeminado e eunuco, apreciador das artes e dos livros. Aqui, Cynthia posiciona seus leitores contra seus protagonistas, que são brutais e insensíveis às necessidades femininas de Helena, que convalesce em legítimo dilema.

Certamente o que encanta em Leão Negro é o fator niilista do antiheroísmo dos “heróis” da saga, criados em uma época em que isso não era moda e nem enfadonho como hoje em dia se tornou. Como podemos verificar em nosso íntimo e nas pessoas à nossa volta, esses leões muito humanos têm razão de serem detestáveis quando o são, e têm razão de serem amáveis quando assim os identificamos, fazendo do Brasil um tipo obscuro de vanguarda quando pensamos em trazer para mais perto de nós estes mundos distantes, criados pela fantasia e infantilizados pela cultura pop. 

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