por Márcio Jr.
Esther Madrid, fisiculturista, é a nova
Miss América do Norte. Seus sonhos não param por aí: o título de Miss Universo é
uma meta futura. Solitária, vive em um apartamento acompanhada de seu cão, que
atende pelo sugestivo nome Clyde. É também sargentada polícia de Nova York.

Charyn – que completa 80 anos no lombo
dia 13 de maio – sabe das coisas. Respeitadíssimo dentro e fora dos Estados
Unidos, é vencedor de diversos prêmios e honrarias, entre eles o de Cavaleiro
das Artes e Letras da França, e de Melhor Álbum do Festival de Angoulême, em
1986, por La Femme du Magicien, ao
lado do desenhista François Boucq. Ou seja, além de escritor, editor, professor
e crítico de cinema, o sujeito possui uma nada desprezível intimidade com o
universo das HQs.
Parece contraditório: com quase uma
dezena de graphic novels publicadas,
Jerome Charyn jamais contou com a colaboração de quadrinistas norte-americanos.
Seus parceiros são sempre nomes de alto calibre da BD europeia, como o já
citado Boucq, Jacques de Loustal e Massimo Prezzato. El Colmillo de La Serpiente é uma narrativa policial tipicamente
americana, baseada na forte tradição da literatura e do cinema noir. A escolha
de um argentino para transmutá-la em narrativa gráfica, muitas milhas distante
do previsível, não poderia ser mais acertada. José Muñoz é um mestre da noite, das
sombras e daqueles que vivem à margem. Os anos dedicados a Allack Sinner não me deixam mentir.

Felix, descobre-se, possui vida dupla. Uma
segunda mulher, neta do General O’Hara, barão da cocaína. E um jovem filho,
Silvério, que segue a tia sargenta em busca do pai. Em sua vida oficial, um
professor idealista, deslocado, que não consegue se comunicar com os alunos ou
com a própria instituição para a qual trabalha. No Chile, converte-se em líder
religioso da comunidade que passa a ser sua. Esther luta com todas as forças
para trazer o irmão de volta aos Estados Unidos. Mas seria Felix um prisioneiro
do narcotráfico ou estaria ali de livre e espontânea vontade? Qual a sua
verdadeira vida, seu verdadeiro lar?
A cocaína é um território perigoso, uma
droga que conjuga vida e morte, liberdade e aprisionamento, clareza e
obtusidade. El Colmillo de La Serpiente
reconstrói esses tortuosos caminhos na forma de uma brilhante HQ. E abre
caminho para José Muñoz nos deleitar com sua genialidade.
A temporalidade de El Colmillo de La Serpiente dança ao bel prazer do artista
argentino. Há silêncios densos e eloquentes. Saltos no tempo e sarjetas que
equivalem a originalíssimos raccords.
E um uso de nanquim sem par na história dos quadrinhos.

Penso na mesma HQ pelas mãos de Frank Miller – afinal, o velhote reaça é o criador de Sin City, a HQ noir
americana por excelência. Os resultados seriam outros. Provavelmente
desastrosos. Miller estetiza e glamouriza tudo. Sabemos, já num primeiro
instante, que seus personagens não são reais – e ele sequer está interessado
nisso. Miller se pauta pela ação, pelo choque. Muñoz segue na contramão. A
introspecção, o ritmo e a crueza da vida são sua matéria-prima.
Sin
City
é música pop, rock. El Colmillo de La
Serpiente é jazz.
O que nos leva a uma certa Billie Holiday...
Lady Day em estado de arte
![]() |
A linda nova edição da Mino |
O que é o jazz? O jazz é Billie Holiday.
Mesmo que o gênero não se restrinja a ela, ninguém em sã consciência
questionará o titânico talento e o legado indelével de Lady Day. Muito menos a
maneira como a cantora decodificou dor e paixão negras em música celestial.
Ao lado do roteirista Carlos Sampayo – conterrâneo
e parceiro de longa data –, José Muñoz cria uma pérola de rara beleza no mundo
das histórias em quadrinhos. A Billie
Holiday da dupla de argentinos é um expoente das biografias quadrinizadas.
Poucas vezes as HQs chegaram ao sublime como aqui.
Estão em Billie Holiday todo o sucesso e toda a desgraça da cantora – seu
calvário de drogas, prostituição, problemas com a lei, racismo, violência,
amores dilacerados, decadência e morte prematura, aos 44 anos de idade.
Sampayo, todavia, abdica completamente de uma narrativa cronológica e
historicista. Ciente da esterilidade que seria tentar reproduzir a vida de
Billie, prefere capturar sua aura. É a alma da cantora que está ali,
aprisionada pelas tintas de José Muñoz.
O álbum é constituído por três histórias
paralelas que se encontram no infinito. E o infinito é Billie Holiday. Do
firmamento, a dama do jazz vaticina o que sabem todos aqueles que já ouviram
sua música: sua voz não é apenas sua, mas de todos.

Rufos, o velho barman, leva flores ao túmulo de Billie Holiday, 30 anos depois.
Foi seu amigo e confidente. Entendeu, como ninguém, a história do amor ímpar e
metafísico da cantora pelo saxofonista Lester Young.
Do outro lado da cidade, um homem é invadido
por desconcertante nostalgia: recorda-se de ter recebido, ainda criança, um
dólar para trocar o pneu do carro de Billie. Jamais esqueceu seu sorriso e seu
olhar. E jamais soube que foi concebido tendo a música da artista ao fundo, sob
preconceituosos protestos do pai. Seu nome? Allack Sinner.
O que entrelaça as trajetórias de Rufus,
do jornalista em busca da manchete arrebatadora, e de Allack Sinner, é a vida
de Billie Holiday. Em certa medida, é através deles que Muñoz e Sampayo nos
levam a ela. E é através de Allack Sinner – criação máxima da dupla e um dos
personagens mais icônicos do quadrinho mundial – que os dois autores se enredam
na própria HQ.
Em Billie
Holiday, Muñoz e Sampayo passam longe do lugar-comum de uma biografia fiel
e especular da personagem. Do alto de sua maturidade artística, sabem que é
impossível refletir a realidade através dos quadrinhos. Preferem criar uma
realidade outra, a dos quadrinhos, na qual os destinos de Allack Sinner e
Billie Holiday se tocam, arrastando consigo seus criadores. Em Billie Holiday, tudo é real.

Engana-se, porém, quem acredita ser esta
a primeira versão de Billie Holiday
no país. Com o subtítulo A dama negra do
jazz, a HQ foi lançada em álbum pela L&PM Editores em 1991. Nada que se
compare à atual edição da Mino, que mantém o nível das luxuosas reencarnações
internacionais da obra. Capa dura com aplicações em dourado, belíssima
introdução do crítico Francis Marmande e um maravilhoso caderno de extras, com ilustrações de Muñoz acerca do mundo do jazz.
Billie
Holiday, de Muñoz e Sampayo é uma obra-prima. Que abra em
definitivo as portas do Brasil a estes incomparáveis autores. A negra
trajetória de Allack Sinner poderia vir à luz, assim como a bela biografia de
Carlos Gardel. Não custa sonhar. De qualquer forma, será difícil tirar de
Billie Holiday o título de melhor e mais bela HQ publicada em 2017.
![]() |
A antiga edição da L&PM |
0 comentários
Postar um comentário