Machado escreveu, com aquela pomposidade tipicamente machadiana: "Estabelecei a crítica, mas a crítica fecunda, e não a estéril, que nos aborrece e nos mata, que não reflete nem discute, que abate por capricho ou levanta por vaidade; estabelecei a crítica pensadora, sincera, perseverante, elevada, — será esse o meio de reerguer os ânimos, promover os estímulos, guiar os estreantes, corrigir os talentos feitos; condenai o ódio, a camaradagem e a indiferença, — essas três chagas da crítica de hoje, — ponde em lugar deles, a sinceridade, a solicitude e a justiça, — é só assim que teremos uma grande literatura."
Bem, pomposidade à parte (Machado pode), e sem essa de "grande" literatura, as palavras do nosso autor predileto ainda ressoam para a crítica de hoje. Condenar o ódio gratuito, a camaradagem estéril e a indiferença blasé - é o que tentamos fazer por aqui (vejam bem, Machado condenava esse vícios no século 19). Logicamente, nossa crítica é de Internet, e não pretendemos exaurir nada. O texto tem de ser enxuto, e algumas generalizações precisam ser feitas. Mesmo assim, vocês devem ter notado um certo aumento de tamanho (e de maturidade) em relação às primeiras "Rapidinhas". É que nós respeitamos o que lemos. Respeitamos o trabalho do autor de quadrinhos no Brasil.
Dito isso, aquela coisa: quase tudo é bem novo, mas tem coisa velha (tipo um quadrinho do Gerlach de 2012 - mas é Gerlach, p*rra! Esse é outro que pode), pois nosso encalhe aqui parece interminável. Além disso, estreiam nesta seção dois dos nossos colaboradores mais novos, Lima Neto e Marcos Maciel de Almeida (sumidades da cultura de quadrinhos de Brasília). Aguardem mais resenhas e não deixem de mandar coisas pra gente. Lenta como uma lesma presa numa labirinto, a Raio Laser procura cobrir tudo que recebe. Para aparecer aqui, envie seu material para:
RAIO LASER
SQS 212 Bloco G Apto 501.
Brasília-DF
Brasil
CEP: 70275-070
Peace! (CIM)
por Ciro Inácio Marcondes, Lima Neto e Marcos Maciel de Almeida
PIMBA
Nº 3 – Vários (Independente, 2016, 28 p.): aqui na Raio Laser, o Jornal Pimba já dispensa qualquer apresentação. Depois de passarem 2015 em branco, a equipe
radicada em Brasília (Gomez, Mello e Sobreiro, esses apocalípticos), do jeito
que deu, chupando cana e trocando pneu de carro ao mesmo tempo, lançou uma nova
e linda edição do jornal de quadrinhos mais carismático do País (há outros,
como o mais avant-garde Suplemento, ou o ótimo jornal de tiras Graphic, do guerrilheiro das HQs Mário
Latino, ou o novíssimo Altamira).
Como sempre impresso em uma cor dominante (desta vez amarelo) e layout
despojado e eficaz, o Pimba retorna repetindo algumas pratas da casa (Góes, San,
Valente, Belga) e traz novos convidados do indie
brazuca que dão certo peso e responsa à publicação: Chiquinha e Pablo Carranza,
por exemplo, coisas de espectros meio opostos, entregam folhas de quadrinhos
despretensiosos, diria até dispensáveis (dado o potencial); bobos, mas não sem
graça. Já a dupla Bruno Maron e Ricardo Coimbra, de lente e lápis afiados para
um cinismo bruto (que a nossa geração merece ouvir), não parecem ter reservado
seus melhores trabalhos para o jornal. Soou como improviso. Mais interessante,
em quadrinhos, é a metacrítica feita por André Valente “Fazer quadrinhos vai
destruir você, vai partir seu coração”. De fato, ao que parece, vai. Valente
pega esta citação de Schulz e, num sentido mesmo charliebrownesco, constrói uma
visão na verdade desoladora, neurótica e categórica sobre o ofício de fazer quadrinhos
no Brasil. Resta pouca esperança, realmente, se o melhor de uma produção reside
na autoparódia. Tudo fica em tom de despedida.

Assim
como na edição 2, os quadrinhos oscilam, mas há muitos bons momentos em texto
(e ilustração) para deixar o Pimba 3 mais interessante. Com maior participação
feminina, temos, por exemplo, um conto de memória rural (mas de mentalidade
urbana) exíguo e melancólico de Marcella Moraes; e uma ótima, satírica e
perversa leitura de certa tosca mentalidade masculina por Maíra Valério. Temos
Arnaldo Branco, que cria uma pequena exegese para o vício (viva!); temos um
conto bastante prosaico (em tom de crônica, mas sem perder e verve de
Literatura sobre o interior do Brasil) de Milton Sobreiro (o que dá um ar menos
hipster pra coisa toda); e temos uma fritadíssima autorreflexão de Hector Lima
sobre a adesão descontrolada e antissocial a produtos culturais de consumo,
misturado a ciência contemporânea e Literatura de Internet (o que traz um ar
pós-moderno). Não falta ao Pimba, portanto, gente talentosa. A minha impressão,
no entanto, é que a editoração dessa p*rra funciona como uma invasão dos
Piratas do Tietê, espécie de onda caótica de mentes tresloucadas sedentas por
expressão, mas ainda assim se atropelando de ansiedade. (CIM)
Topografias – Bárbara
Malagoli, Julia Balthazar, Lovelove6, Mariana Paraizo, Puiupo, Taís Koshino (Piqui, 2016, 60 p.): se pensarmos a topografia como o mapeamento de um
território, este quadrinho tem dupla função: em primeiro lugar, é um radar para
o melhor da produção feminina no Brasil atualmente, especialmente no meio indie.
A ideia é realmente construir uma cartografia, indicar o caminho, levar a
produção masculina pelas mãos e dizer: “fazemos bem e fazemos diferente”. Neste
sentido (e sem querer avançar mais no chauvinismo da guerra de sexos), Topografias é um material aberto à experimentação
e à sensibilidade radical, um tipo de autoria em quadrinhos que possui outro
DNA, outras preocupações e prioridades. Em segundo lugar, a topografia (escrita
do espaço) também diz muito sobre a qualidade artística do trabalho em si destas
minas. Pouco preocupadas em construir narrativas funcionais ou numa “antiquada”
produção mais tradicional de sentido, estas quadrinistas deixam o espaço falar
(e também o espaço da página) como se fosse uma expressão em si, deixando
balões de fala, texto e mesmo questões políticas em segundo plano.
O resultado em geral é
acima da média. Há uma forte pulsão expressiva na maneira como este coletivo
representa suas ideias em quadrinhos. Em alguns momentos, porém, ainda resvalam
em certos procedimentos naïve, e muitas vezes o texto mais atrapalha do que
qualquer outra coisa. Vejamos o caso de Bárbara Malagoli: ela constrói um
poderoso dispositivo visual inspirado em sci-fi, com trabalho de cores
louquérrimo e embasbacante, mas há uma disjunção entre estas splash pages e os textos, que parecem
excertos (pseudo) filosóficos (“É tudo um sonho, um sonho grotesco e tolo”)
soltos, sem muita conexão com as imagens. Falta aquela “liga” que faria o
quadrinho ressoar melhor na gente. Já Julia Balthazar se sai melhor ao apresentar
uma simples tarde na piscina vivenciada por duas garotas apaixonadas, em sua
exclusividade. Também há uma forte presença do espaço e das cores, como se a
transmissão da impressão do sentimento se sobressaísse a quaisquer palavras (de
fato os diálogos são vagos e não dizem muito).
A
sci-fi também está presente nas contribuições sui generis de Taís Koshino e Puiupo. A primeira é a melhor
participação da revista e talvez sua melhor história ever: numa turma de crianças telepatas praticantes de meditação,
temos acesso a certo “museu do futuro”, que conta a história de nossa evolução
(com bem-humoradas alterações). Koshino alterna bem a disposição entre um senso
de humor muito próprio, questões sobre tecnologia, corpo humano e realidade
virtual, além de um intrigante trabalho com cores e empaginação (e aqui o texto
– paródia do cientificismo – funciona). Já Puiupo apresenta uma cena grotesca
em sua visão freak, cronenberguiana, sexy de um jeito inimaginável. Não entendi
muita coisa, mas há personalidade e imagens que não saem da cabeça. Por fim,
Lovelove6 traz um trabalho bastante radical e pessoal, em tons (eroticamente
bem pensados) de vermelho e roxo, também numa cena arquetípica de amor entre
duas mulheres. A topografia em si da história é bastante marcante e virulenta,
mas a mensagem do texto (“o ciúme é bastante antigo”) me pareceu meio moralista.
Enfim, vale também destacar o belo trabalho de editoração de Lívia Viganó para
este que é um dos mais bonitos e significativos lançamentos do ano passado. (CIM)
Cais – Janaína de Luna e Pedro Cobiaco (Mino, 2016):
quando acordamos e relembramos acontecimentos
ocorridos em nossos sonhos, nada parece fazer sentido. Ainda assim, quando
estamos dentro da realidade onírica, tudo parece ter lógica, não é? Agora
imagine poder ver um sonho estando acordado. Foi assim que me senti quando li Cais. Essencialmente intimista, a
narrativa em primeira pessoa nos dá dicas preciosas sobre o inconsciente de
Diana, a protagonista, mas deixa muita coisa em aberto. Confesso que tive de
ler umas três vezes para sacar qual era a onda do gibi, mas isso não é um ponto
negativo. Muito pelo contrário. Numa época em que a informação tem que ser cada
vez mais objetiva e mastigada para agradar a leitores apressados, é saudável
encontrar HQs que nadam contra essa corrente.
A água, em suas diversas formas, é presença
constante no gibi, assim como são as diversas metáforas que ajudam a entender
(ou confundir) quem é Diana e qual a natureza de seu relacionamento com – eis
um nome escolhido a dedo – Martin. As lentas idas e vindas do casal são a
preguiçosa maré que vai embalar o ritmo desta HQ, que poderia se passar em
qualquer vila litorânea do Brasil. A arte é um capítulo à parte. O belo
contraponto em preto e branco deste Cais
com o colorido esfuziante de Aventuras nailha do tesouro mostra que Pedro Cobiaco está à vontade em qualquer praia.
Ouvi dizer por aí que pode ser que Diana volte num gibi de mais de cem páginas.
Espero que o sonho se torne realidade. (MMA)

Quadrinhos Insones –
Diego Sanchez (Mino, 2016, 96 p.): não são poucos os motivos que nos fazem
embarcar em vigílias involuntárias noite adentro. E embora tenha certeza de que
o bem-estar social no mundo é um deles, a grande maioria das insônias são
causadas por pequenos nós íntimos do dia a dia que nosso cérebro insiste em
tentar desatar quando deitamos. E Quadrinhos
insones, um apanhado da produção digital do quadrinista Diego Sanchez
publicado pela Mino em 2016, é uma testemunha disso. O belo livrinho – que
poderia ter uma produção mais modesta em consonância ao caráter despojado das
narrativas – abre com uma pesada descrição da guerra civil no Camboja em 1975,
mas rapidamente a narrativa histórica dá lugar a reflexões e micro-crônicas às
vezes fantasiosas e muitas vezes íntimas e autobiográficas. A arte de Sanchez é
uma delícia de se ver, algo como um Richard Sala hiper detalhado. E, no geral,
o gibi proporciona alguns momentos de entretenimento belos e descompromissados.
A bela “Escalas” e “O estranho caso da baía 4” são bons exemplos disso. Alguns
continhos de uma página também seduzem pela capacidade de síntese. Quanto à
linguagem, o grande destaque é o quadrinho sem título da página 50, uma perolazinha
que traz ecos de Spiegelman e McCloud, que nos lembra novamente por que produzimos
e lemos narrativas neste tipo de mídia.
O restante do quadrinho, entretanto, é prejudicado pela intimidade autobiográfica
que esbarra em alguns lugares-comuns do modo de vida “indie”, tornando
egocêntrico o que poderia ser distinto. Essa irregularidade do título, assim
como seu caráter despojado, me fazem pensar em como ele seria melhor se lido
com uma produção mais baixa – uma lombada canoa, papel jornal e algumas páginas
a menos fariam deste Quadrinhos insones
um sono mais agradável. (LN)

2015 – Antônio Silva,
Augusto Botelho e Daniel Lopes (Org., MÊS, 2015, 152 p.): mais uma pira de
Brasília, esta antologia é o resultado do trabalho de curadoria da galera da
Mês, que em 2014 lançou religiosamente 12 zines (e repetem a fórmula em 2016).
Em 2015 eles resolveram fazer diferente e financiaram no Catarse uma antologia
a partir de uma convocatória. O resultado é um livro responsa com mais de 20
colaboradores e uma ampla diversidade de estilos. Alguns nomes (Diego Sanchez,
Laura Athayde, Renata Rinaldi, Taís Koshino) são já conhecidos no meio indie, mas há muitos aventureiros
também. Isto torna o conteúdo da revista irregular, como é de praxe neste tipo
de publicação. Conhecendo o perfil editorial da galera, já se pode esperar da
Mês um incentivo à experimentação, ao ato subversivo de romper certas barreiras
que margeiam escapar dos quadrinhos. Artes visuais, colagem, fotomontagem,
ilustração abstrata e rabiscos não são estranhos à mentalidade dos caras, assim
como forte apelo ao nonsense e
quadrinhos que parecem pura zoação. Memes, enfim. Não sou contra essas coisas,
mas é um terreno pantanoso. Dentro desta perspectiva, destaco a bela expressão
de angústia juvenil de Gustavo Magalhães, em amplos quadros que dizem muito
pouco, mas transmitem forte intensidade emocional: é uma equação precisa para
se produzir bom quadrinho experimental.
Porém, mesmo com certa
quantidade de coisas apressadas (e logo esquecíveis), 2015 tem quatro trunfos, que fazem a revista valer a pena. Em
primeiro lugar, a história de abertura de Diego Sanchez: voo livre num
surrealismo bem próximo dos sonhos (talvez tenha sido um), com sua arte em
grande forma e sensibilidade na medida certa. É assim que se faz poesia em
quadrinhos (e não recitando seu diário de adolescente junto a imagens
expressionistas). É uma das melhores histórias que li dele. Em segundo lugar, a
participação dos editores, bem mais calejados, com uma preocupação séria em se
pensar a expressão em quadrinhos. Antônio Silva ainda vacila um pouco: sua história
é tão doidona que parece ter sido desenhada em “escrita automática”. Mesmo
assim, tem vigor nos movimentos, e intensidade. Lembra o estilo do querido
Mateus Gandara. Já Augusto Botelho também oferece seu melhor trabalho até aqui.
Ele conta a história (muda, profundamente inteligente e expressiva) de um
menino (alter-ego?) numa praia que encontra um totem num barco e quer levá-lo
para casa, mas a “entidade” não permite. Botelho trabalha bem o uso de luz,
ângulos e expressões (seu traço está em consonância com sua geração, vide Pedro
Cobiaco), e o sentido metafísico da história tem um quê de cabalístico, sem
exageros. Por fim, temos a também muda história de Daniel Lopes, sobre o
encontro entre um menino e um astronauta, também onírica (e esotérica), que
remete ao ciclo infindável de nascimento e morte, com ótimas referências a 2001, Marco e até Incredible
science fiction (da EC Comics – a famosa história do astronauta negro). O
quadrinho de Daniel tem preciso timing,
delicadezas e figuras de linguagem, revelando, assim como no caso de Botelho, exímio
domínio da linguagem muda. Estes quadrinhos destoam muito do resto da edição,
mostrando que estes caras estão prontos para saltos mais ambiciosos. (CIM)
The
Concept – Um quadrinho inspirado na canção da banda Teenage Fanclub (Clube do
Single Volume 1) – Fábio Lyra (Beléléu, 2014, 18 p.): eu havia criticado o estilo de Fábio Lyra em outra publicação, mas, como a vingança é um prato
servido frio, preciso dar o braço a torcer aqui. Lyra bolou este projeto “Clube
do Single”, que é o de escrever pequenas HQs inspiradas em canções, no formato
físico de um single. A escolha para o primeiro projeto (lá de 2014) não poderia
ter sido mais acertada: o Teenage Fanclub é das bandas que mais agregam loucos
e apaixonados, desembocadouro para qualquer introvertido, indie ou ser antissocial dos anos 90. Há quem vire o nariz, mas o
som deliciosamente melódico da banda, com as melhores influências (Beatles,
Neil Young) e sem perder a personalidade discreta, tímida, mas generosa e
cativante (capaz de transformar o rock numa crônica do cotidiano), este som é o
de uma das minhas bandas favoritas. E The concept é, tipo, a melhor música do Teenage Fanclub. Pequeno épico do power
pop, funciona como se o Big Star cruzasse com o Pink Floyd. E Lyra usa uma
estratégia inteligente: ao invés de transcrever a letra da música para uma HQ,
ele inventa uma história bastante diferente, sobre o encontro fortuito e fugaz
entre dois jovens na madrugada (a garota como mote tanto na canção quanto na
HQ), para procurar capturar o espírito
(ou o mojo, ou sei lá o quê) da
música na mídia quadrinhos. O traço de Lyra é bonito, e ele sabe tirar dos
quadrinhos instantes que parecem paralisados na nossa percepção, memórias que
ficarão para sempre. Assim, o Concept
de Fábio Lyra é despojado e melancólico, mas que se vale de mini-emoções. Seria
uma coisa assim, digamos, low-profile
mas de bom coração. E não seria esta uma boa maneira de descrever o som dos
escoceses? (CIM)

Alvoroço – Diego
Gerlach (Vibe Tronxa, 2012, 28 p.): pode ser dito com segurança que Diego Gerlach é um dos traços mais ativos do quadrinho nacional. E em Alvoroço, gibi de seu personagem Boy
Rochedo, se vê claramente também sua verve de artista gráfico. Do projeto da capa,
de visível inspiração na produção gráfica de Emilio Damiani, até seu traço
afiado que parece cortar a folha do papel, tudo expressa a psicodelia
contundente como navalha que é marca do seu trabalho. Ao lado de uma produção
gráfica mecânica e tradicional, Gerlach incorpora ainda uma tecnologia lo-fi
nas suas retículas digitais e degradês deliciosamente piegas. Alvoroço conta o retorno de Boy Rochedo,
invocado de sabe Deus onde, renascido de uma fumegante vagina de beijú (tapioca
para os ocidentais). Um nonsense transpirante que não vê incômodo em não ter
início ou fim, e está mais interessado em expressar a amoralidade mambembe de
seu personagem. Essa amoralidade acidental contrasta com o início da revista e
seu ar de manifesto, mas, na soma de tudo, o que há é uma sensação e “com o
passar do tempo a sensação passa a importar muito mais que a própria resposta”.
Alvoroço é um gibi curioso, bate
aquela familiar vontade de acompanhar para ver o que acontece. Mas Gerlach tem
uma intenção artística e anárquica que dispensa essas estratégias tradicionais
de “storytelling”. É a “vibe” que importa. Pelo menos, no caso de Gerlach, a vaibe é boa e autêntica. (LN)
Quadrinhos Perturbados – João Rabello (Avocado, 2015):
eis um gibi contendo tiras com um tipo de humor
bastante peculiar. Fazendo uso de tiradas e trocadilhos – escritos ou
imagéticos – João Rabello dá protagonismo às suas manias e obsessões, como
piratas, crânios e bigodes. Sim, bigodes. É um tipo de humor que poderá agradar
a gregos, mas não a troianos, devido ao fato de representar a particular
maneira através da qual o autor enxerga a vida e os fatos cotidianos. Por meio
de várias referências à cultura pop – especialmente personagens de HQ – Rabello
dá voz a um universo essencialmente pessoal. Confesso que me identifico com o
tipo de piadas nonsense que estão
espalhadas pelo gibi, cuja leitura me remeteu a James Kochalka em seu "The
Horrible Truth about Comics". Neste último, o autor norte-americano
destaca um dos recursos mais importantes dos quadrinhos: sua facilidade em favorecer a
expressão individual. Em sua HQ, Kochalka ensina que talento ou dom são meros
coadjuvantes diante de uma das grandes forças da nona
arte, que é a capacidade de difundir visões e opiniões de forma
visceral, autêntica e direta. Seguindo – consciente ou inconscientemente – esta ideia, Rabello acerta ao se permitir trazer para a
superfície sua visão de mundo e de humor. (MMA)

O Diabo e Eu – Alcimar Frazão (Mino, 2016, 64 p.): Eu amo country blues. Nada como se render à simplicidade de três acordes e à emanação de toda uma época. Música pura, de inconfessáveis verdades. Simples, mas que nos atinge de primeira. Lonnie Johnson, Leroy Carr, Blind Willie McTell, Big Bill Broonzy, Memphis Minnie. E Robert Johnson, é claro. Esses cantores ainda emocionam porque estão atrelados a uma realidade onde música e vida não podem ser separados. É esta realidade que Alcimar Frazão traz aos quadrinhos ao elaborar, de maneira radicalmente pessoal, a história de Robert Johnson e o pacto com o Diabo. O Diabo e eu é uma história muda, cheia de signos sinistros, legítima gothic south, onde nos sentimos imersos no mundo apodrecido dos pântanos e deltas nos Estados Unidos do começo do século XX. Frazão legitima o terror ao fazer reverência à tradição brasileira do gênero: Shimamoto, Rodolfo Zalla e Mozart Couto parecem influências. Além de trabalhar grafismos cheios de psicologia (como uma menina com cabeça de cachorro), o quadrinista ainda discute a ideia do Diabo, que aqui aparece (quase) como metáfora da podridão da sociedade americana pós-escravocrata, e o mal absoluto brota na imagem do pai de Johnson, facínora violento que prostituía a própria esposa. Tudo isso sem perder o horror literal (o diabo está mesmo lá) e associando o silêncio do texto em quadrinhos à tristeza inerente ao blues rural, como se este silêncio e a música pudessem dizer a mesma coisa, mas em meios diferentes. (CIM)

Lavagem – Shiko (Mino,
2015, 72 p.): este talvez seja o melhor trabalho do paraibano Shiko (ainda que
eu goste muito do experimentalismo poético de Blue Note). Lavagem
guarda muitas semelhanças com O Diabo e
eu: é uma história de assassinato num lugar “abandonado por Deus” com a
presença de um Diabo personificado. Fórmula de terror e símbolos ocultos. A
arte de Shiko, porém, é mais dinâmica e cinematográfica, com ótimo domínio do timing narrativo. Lavagem também retoma nossa tradição de quadrinhos de terror, mas
acrescenta algo de cinema novo (eu ouvi Portodas caixas?) e Brasil contemporâneo à coisa. É um sincretismo eficiente e
Shiko mira direto no oportunismo dos pastores evangélicos (“sometimes satan comes as a man of peace”) para fazer sua interpretação do mal. Mesmo não sendo
brilhante (ainda acho que o movimento no quadrinho e as expressões dos
personagens podem ganhar mais vida), o autor aproveita bem a sua chance de
socializar o horror com questões sobre opressão feminina, desemprego e pobreza
no Brasil. Lavagem satisfaz, mas
também produz aquela velha sensação: “agora que já fez esse, vai lá e faz um
melhor”. Ou seja: mais e melhor Shiko, por favor. (CIM)

2 comentários
Oi Ciro! Essa história no Topografias foi uma experiência diferente pra mim e tenho sentimos ambíguos a respeito. Obrigada por comunicar sua perspectiva a respeito, fico mtoo satisfeita com as críticas e lisonjeada por você se dedicar à leitura e reflexão do nosso trabalho.
Legal, Gabi! O Topografias tem ótima curadoria e a edição ficou bem foda. Quero ler mais produções de todas.
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