por
Ciro I. Marcondes
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– O paradoxo “super”
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Ziraldo foi um dos que percebeu o "kitsch" em todo super-herói |
Para um fã de
quadrinhos que vá além de ser simplesmente um “fã de super-heróis”, o gênero
mais popular deste meio vai sempre lhe parecer, de certa forma, como um tipo de
paradoxo. Afinal, os super-heróis serão sempre aquele tipo de quadrinho que ainda persiste
na ordem do afetivo, que carece de qualquer racionalidade, mas ainda injeta
vitalidade pela energia dos personagens, pelo carisma de seus conceitos ou por
pura e simples tradição. Também costumo pensar que continuamos lendo
super-heróis (quando isso eventualmente acontece) porque somos quase obrigados
a isso pelo bombardeio midiático que doutrina o gosto de hoje em dia a amar
essa “mitologia” do impossível, essa exaltação do kitsch, do sem-noção, do
ridículo. Afinal, alguns podem até pensar que a figura do nerd tenha alguma
coisa de “cool” nesses anos 2000/2010, mas eu prefiro ajuntá-lo nos balaio
kitsch dos cultuadores de desenhos animados dos anos 80, dos colecionadores de
vinil que não passaram nem pelo CD, ou daqueles que passam 15 horas por dia jogando
qualquer videogame banal achando que estão vivenciando alguma grande forma de
arte. Enfim, me parece que, se a figura do super-herói de algum jeito virou uma
coisa descolada, não é porque ele ficou cool,
mas sim porque o mundo ficou kitsch, sem noção e um pouco preso em seus eternos
16 anos de idade (devo essa ao Pedro Brandt).
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Moebius |
Já discuti a falência
do modelo dos supers antes em Raio Laser (aqui e aqui). Então, por que
continuar com este assunto? Antes de querer parecer ainda mais blasé e
despertar a ira de mais fanboys, melhor dizer na lata: eu ainda leio quadrinhos
de super-heróis (de vez em quando). Não apenas porque ache que ainda haja bons
profissionais na área (tanto em roteiro quanto em ilustração) como gosto,
evidentemente, de reler os clássicos, e entender a relação que faz um assunto
abstruso (para mim) gerar obras incríveis como o Demolidor de Miller, Juiz
Dredd de Brian Bolland, Thor de Walt Simonson, Conan de Roy Thomas, Rocketeer,
Hellboy, etc, etc. Existe, na verdade, um universo de coisas legais feitas
dentro deste formato no passado, coisas que mudaram a indústria e a arte dos
quadrinhos. Como eu disse, um paradoxo: por mais que você rejeite e considere
estes quadrinhos descartáveis e rasteiros, eles continuam voltando, por estes
motivos e outros. O adolescente em você persiste, nunca morre. Mais que
nostalgia, é um eterno retorno de si mesmo, de um estado de alma essencial ao
nosso apego pela vida, algo sem o qual não conseguimos seguir em frente.
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Batman: noir + expressionismo |
O objetivo deste texto,
aliás, caso não tenha percebido, é fazer um elogio a estes quadrinhos. E não
estou falando de Watchmen ou Cavaleiro das trevas ou Miraclemen ou Homem Animal ou Os invisíveis.
Estou falando do quadrinho ordinário de banca, da aventura prosaica, do
divertimento semanal sem compromisso com agendas ideológicas (como o caso do
quadrinho de banca contemporâneo) ou com a HQ state of art. Vejam, por exemplo, o caso das famosas space-operas francesas (nos moldes de Valerian, O andarilho dos limbos, Lone
Sloan, etc), tão famosas por sua “maturidade”, por serem mais “realistas”,
embarcarem no mundo “psicodélico” da sci-fi. Lendo estas obras, que são,
realmente, incontornáveis, vemos que seus conceitos se aproximam mais do mundo
dos super-heróis do que efetivamente de algum tipo hard de ficção científica. São geralmente aventuras engenhosas que
se aproveitam de uma ciência que se aproxima da mágica (quando não é mágica de
fato) para desfilar perfis de criaturas exóticas, lugares hiperimaginativos e
sugestões de sexo (quando não apenas sugestões) e violência. Ora, isso não
difere muito de uma boa HQ de super-heróis. Na verdade, em algum momento
esquecemos no quão (pseudo) científico
o conceito dos supers sempre foi, no sentido de se aproximar da ficção pulp barata do romance de banca do
começo do século (dime novels). O
Super-Homem nasceu assim, como uma espécie de ficção-científica pulp com uma órbita meio torta, e dele
descende toda geração de ouro da DC (nunca esqueçamos que o Batman, por sua
vez, nasceu do noir e do expressionismo, o que talvez justifique sua maior
complexidade).
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Futuropolis está na origem da coisa toda |
O que quero dizer é:
talvez exista uma permuta maior do que se pensa entre o quadrinho de sci-fi europeu e o comic book de super-herói
americano, não apenas por possuírem esta origem comum (o pulp), mas também porque ambos se ancoram, mais do que num mundo
eticamente complexo e cientificamente acurado, no campo da fantasia livre, no
apelo eterno ao devaneio juvenil, na nossa insistente incapacidade de largar o
sonho como uma possibilidade para a vida. Daí partirmos de coisas grosseiras como
o americano Buck Rogers e o francês Futuropolis,
na aurora dos quadrinhos, e chegarmos a extremos de sofisticação em Richard
Corben e Moebius. Se o quadrinho de super-herói hoje parece uma refração pálida
e impotente em relação ao dínamo de vitalidade juvenil que já foi, talvez não
seja o caso de culpar certa limitação do gênero mais do que culpar uma
indústria estéril e prostituída que continua oferecendo produtos porcos de
baixíssima inventividade a uma legião de fãs-zumbis renovados agora pelo gargantuesco
sucesso dos filmes de super-heróis, que, convenhamos, caiu do céu para estas
editoras à beira da falência. Se a fantasia heroica hoje mostra sinais claros
de esgotamento (por “hoje”, talvez devamos entender desde os anos 80), presa a
moldes e clichês (e implodida por sua própria inviabilidade), é o mesmo sentido
de liberdade de fantasiar que criou estes clichês que permitiu que Moebius
atrelasse esta liberdade à forma, e desenvolvesse seu método de criação livre a
partir dos anos 70, mudando os processos que conhecíamos nos quadrinhos.
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Sci-fi francesa |
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Super-herói americano |
2
– X-babies e o psicodelismo
irracional do quadrinho de super-heróis
Curiosamente, toda este
reflexão me veio a partir da leitura de um quadrinho absolutamente banal, cria
dos anos 80/90 (na realidade ele é de 89, mas foi publicado no Brasil nos anos
90), que poderia ser facilmente tratado como totalmente descartável e até meio retardado.
Trata-se da “edição especial inédita Excalibur e X-Babies” lançada pela Abril
que “encantou” tanta gente numa época em que os quadrinhos de super-heróis
ainda eram um tanto mais inocentes. Veja você: os X-Babies são uma criação de
Mojo, um ser francamente copiado de Jabba The Hutt, que vive em uma dimensão
paralela e comanda uma espécie de programa de televisão cujos astros são justamente
as cópias mirins dos X-Men. Estas pequenas e adoráveis fofurinhas, que imitam
de maneira infantil as características dos X-Men originais (na época daquela
equipe com Cristal, Longshot, Destrutor, etc.) passam então a fugir do regime
de semiescravidão a que Mojo lhes submete e procuram, em nossa dimensão, a
ajuda de Kitty Pride, então no grupo britânico de mutantes Excalibur. Parece
uma história imbecil ou no mínimo um tanto amalucada, fora da casinha? Pois eu
me perguntava o que me atraiu nesta história nos anos 90 e creio que foi
justamente o fato de ela, digamos, “vibrar” numa sintonia mágica um tanto
deslocada da preocupação geral dos super-heróis em serem vergonhosamente
fantasiosos, mas com uma pretensão realista (daí a esteira infinita de technobabbles
destas histórias).
O que atraiu a
juventude dos anos 90 a este gibi, expandindo o argumento, tem origem tripla:
em primeiro lugar, o próprio apelo “fofo” dos “babies”. Impossível olhar para
aquela capa em ação diagonal (posição tão clássica) e não ter curiosidade sobre
quem eram e como surgiram aquelas versões mirins, e mais: como elas podiam
pertencer a um arco “sério” dos X-Men? Em segundo lugar, o roteiro de Chris
Claremont, que, justamente, com todo bom humor e engenhosidade, responde às perguntas
do item anterior. O grande inovador dos X-Men obviamente não vem, em história
tão despretensiosa, querer reiventar a roda, mas brinca de maneira
metalinguística com o processo de criação da Marvel e dos X-Men, criando uma
espécie de “centro interdimensional” cheio de portais por onde os X-Babies
passam. Cada “portal” leva a uma saga clássica da Marvel (como Guerras secretas ou Ataques Atlantes). Quando os Babies passam por um destes portais,
são transformados em suas versões correspondentes a cada saga, ligando o leitor
afetivamente não apenas ao universo da Marvel, mas a um continuum inesgotável
de histórias dos X-Men, sugerindo já a ideia de que todos os quadrinhos de
super-heróis são, na verdade, uma só mitologia.

Claremont se aproveita
do ambiente londrino da história para brincar também com a cena roqueira da cidade, com casamentos reais e outras piadas bem sacadas, dando a ela um tom de
aventura tresloucada recheada de citações não tão manjadas. No final das
contas, você se sente carregado pela leveza infantojuvenil desta one shot não porque você seja bobo ou
porque a história seja particularmente cativante, mas sim pela série de
estímulos que todo gibi honesto naturalmente traz: movimento, leveza, humor,
cores, desenvoltura, etc. Ou seja: basicamente, o que encantou os primeiros fãs
de quadrinhos nas páginas coloridas das sunday
strips e também o que encantou os primeiros fãs do comic book quando ele apareceu nos anos 30. Ainda é, acima de todo
e qualquer gênero, a cor vibrante, a emulação do movimento, diálogos espirituosos
e um mergulho no surreal que nos encantam nos quadrinhos. Sem este estímulo
semiótico básico os quadrinhos não existiriam como uma arte que possui suas propriedades
específicas.
Por isso é uma pena que
os quadrinhos de super-heróis, cada vez mais sombrios, realistas e obscuros,
estejam perdendo esta miríade de estímulos porque, como o gênero não se
sustenta por si só, vai acabar se transmutando para um animal diferente e
esquizofrênico, se é que já não o é. Pensemos, portanto, no terceiro, último e
mais importante fator de apelo de Excalibur
e X-Babies: a arte de Arthur Adams. Rica em detalhes mínimos, rostos com
expressão forte, lindo modelamento dos personagens, cheia de movimento e
angulações – tudo sem parecer a pasteurização grosseira que temos hoje –, esta
arte é a síntese do que representou o quadrinho de super-herói desde a
“revolução Marvel”. Ou seja, por ao menos quatro décadas. O que nos leva a
pensar em como o apelo icônico (ou seja: da plasticidade da imagem) do
quadrinho de super-heróis muitas vezes supera a narrativa em si, carregando-nos
pelas páginas como num fluxo verdadeiramente psicodélico que, efetivamente, não
fica tão longe daquele dos quadrinhos sci-fi europeus.
Percebi isso tudo
justamente quando pude ver mais de trezentos originais em uma exposição “A arte dos super-heróis Marvel”, que contava com pranchas de nomes como Kirby, Ditko,
Buscema, Romita (pai e filho), Byrne, Adams, entre dezenas de outros. Olhar
para aquelas páginas fora de contexto, a maioria sem cores, com pequenas
imperfeições, correções, lápis à mostra, títulos recortados e pregados com
cola... tudo aquilo ativou um certo senso plástico inativo sobre os
super-heróis. Mesmo atrelados a uma indústria desgastante e injusta (Kirby que o diga), trabalhando como operários em busca de um ganha-pão, estes artistas
intuíam um senso plástico que não difere, em essência, do de um Michelângelo. O
que estes mestres fizeram foram esculturas em quadrinhos, quando o que se
ordenou a eles foi que fizessem sabonetes. Quero dizer que, além de resgatar o sonho de voar, há no quadrinho de super-herói
uma atração por formas, cores e volumes em movimento que não se distanciaria de
uma arte abstrata ideal em duas dimensões prevista pelo filósofo Berkeley – um
mundo exclusivo de cores e formas, que existe a não ser para ser isso, de
maneira pura. Para além de qualquer sociologia, estes quadrinhos, enfim, se
encontram com elementos primevos de qualquer arte: atraem pelo irracional. E foi este impulso (repito:
mais do que um sentido nostálgico) que me fez olhar para esta edição de Excalibur e X-Babies e retirá-la da
estante puída do sebo sujo na qual ela repousava, pagar cinco reais por ela,
lê-la meses depois e mergulhar num turbilhão de reflexões. A mesma
irracionalidade que me faz ser ao mesmo tempo um fã idiota e um hater dos
super-heróis.
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A psicodelia inerente a todo quadrinho |
2 comentários
Excelente texto. Realmente esse tipo de escrita me auxilia nas reflexões sobre a relação de amor e ódio que eu tenho com os quadrinhos de super-heróis, talvez até com outros níveis culturais nos quais existe algo semelhante a esse tipo de tensão.
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