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por Ciro
I. Marcondes*
O que pode
haver em comum entre o kammerspiel (gênero de filmes alemães dos anos 1920, voltado à classe operária), Reinhart Koselleck (historiador da segunda guerra
mundial) e Hermann Rorschach (psiquiatra suíço que desenvolveu o famoso teste... e que batizou também um
personagem de quadrinhos)? Em princípio, nada – ou tudo. E este é o mote
desenvolvido por José Carlos Fernandes na história em quadrinhos portuguesa A pior banda do mundo: os elementos que
compõem as fiações do nada. Todos estes nomes são realojados, em algum momento,
em personagens obscuros, excêntricos, desvalidos, que habitam uma espécie de
cidade de sonhos, onde o descartável e o inútil encontram sua ontologia, onde
uma paranormalidade de boteco vai obcecar pessoas acanhadas, onde os ofícios
mais inadequados e obsoletos continuam a existir de maneira cíclica, eterna,
interminável. Um mundo dentro do nosso próprio mundo, escondido em suas
entrelinhas, abafado nas funções ordinativas da nossa realidade.
É assim,
redimensionando as proporções com que os elementos do mundo se encontram nas
coisas mesmas, que o autor cria um verdadeiro fenômeno de atravessamento em quadrinhos. O sistema é muito simples: a cada
duas páginas ocorre na cidade um sketch,
espécie de ensaio de algo improvável de acontecer. Em um momento, acompanhamos
o esdrúxulo ensaio da pior banda do mundo, que toca junta há 30 anos, mas
os músicos não conseguem chegar a um consenso quanto a qual música estão
tocando. Em outro sketch,
temos a história de uma caixa de correio que recebe as sugestões utópicas dos
cidadãos. Em outro, duas velhas irmãs ouvem em suas cabeças a música que o
obececado compositor do andar de cima nunca conseguiu realizar após anos de
tentativas. Outro ainda, igualmente
fantástico, nos leva a um quarto de hotel em que o hóspede atual sonha
os sonhos do hóspede anterior, e ainda há aquele em que um personagem se
descobre como sonho de uma outra pessoa.
Para esta
miríade de personagens e situações insólitas, que se situam entre a poesia e o
conto fantástico, Fernandes vai espalhando nomes de suas referências, sempre de
maneira bem humorada, convidando o leitor a uma verdadeira caçada a seus easter eggs: aparecem, por exemplo, os
nomes de Roy Lichtenstein, F.W. Murnau, Bela Lugosi, etc. De alguma forma, o
autor espalha e compartilha seu mapa de delírios e sonhos tanto através da
paisagem surrealista da cidade, quanto em seu universo de influências e
subtextos. Este universo se revela no gesto de renomeação e duplicação do nosso
mundo, exalando erudição, mas não só isso. O tom modesto do texto, a coloração
pastel das páginas e o aspecto encurvado, espremido, dos personagens, denotam
equilíbrio entre ambição e simplicidade, deixando a leitura lúdica, curiosa,
aguda.
A origem
desta mistura entre modéstia, poesia, erudição e um senso de humor muito
específico é difícil de determinar. Poderíamos pensar em coisas semelhantes ao
vermos os filmes de Wes Anderson, Aki Kaurismäki ou Hong Sang-Soo. Ou lendo as
HQs de Lourenço Mutarelli e os contos de Murilo Rubião. Há um DNA que mistura
surrealismo, existencialismo e humor que pontualmente aparece em expressões
culturais aqui e ali. Porém,
é certamente no imaginário de Jorge Luis Borges que encontramos um parentesco
mais afinado, unindo certa curiosidade filosófica debochada ao fascínio por
mundos adimensionais que ocorrem dentro das mais diminutas manifestações da
nossa percepção. Assim, a obsessão do músico Sikorsky – da Pior banda… – em escrever a peça musical perfeita para o mais banal
cotidiano ecoa na obsessão de Pierre Menard – de Ficções, de Borges – em reescrever, palavra por palavra, o Quixote de Cervantes. Da mesma forma, o
peso e a densidade das palavras buscada pelos irmãos Nazca lembra a metafísica
que tange a biblioteca de Babel em Borges.
Uma
literatura borgeana de boa qualidade já é rara pela própria rarefação
indefectível do gênio do autor argentino. Imagine então encontrarmos em
quadrinhos algo que encante com a mesma propriedade, ainda mais partindo de um
estado lacônico, estatelado no tempo, tipicamente português, como o que
encontramos na HQ de José Carlos Fernandes? A
pior banda do mundo, lançada originalmente nos anos 1990, pode hoje ser
considerada já um clássico, em que a norma é a fragmentação e no qual o punch line das piadas nunca acontece,
mergulhando o leitor em uma ansiedade cíclica pela solução de mistérios
indecidíveis, de coincidências inalcançáveis. É neste hiato que mora o pensamento
poético. É nesta vala que a pior banda do mundo toca sua música.
* Publicado originalmente no jornal de quadrinhos Suplemento.
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