por Lima Neto
O quanto devemos
ao passado? Não falamos do almoço que foi degustado ontem, mas de ações que
foram tomadas há vários anos atrás e que deixam sua marca no presente com muito
mais força e brutalidade que o agora. Se o tempo for visto como um fluxo
contínuo de decisões e acidentes, então estas ações do passado a que me refiro
são como gigantescas pedras que dilaceram e estraçalham o tempo para sempre.
Estas rochas são marcos, pessoais ou coletivos, que sempre imporão sua vontade
ao tímido e nascituro presente. E a série Escalpo, escrita por Jason Aaron e
com arte de R.M. Guéra, gira em torno desta inevitabilidade de um passado que
se impõe ao presente. Um passado violento e pessoal e, além disso, um passado ainda mais
violento, o passado histórico.
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Shunka e Corvo Vermelho cuidando dos negócios do Cassino Cavalo Louco |
Em Escalpo,
série de crime publicada no Brasil na revista Vertigo da Panini desde seu
início e que se concluirá este mês em uma edição especial toda dedicada à
série, conhecemos a reserva indígena fictícia de Rosa da Pradaria, e seu amargo
povo remanescente dos índios Lakota. A série foca no agente especial do FBI Dashiel Cavalo Ruim e sua missão/punição de retornar à sua terra natal após
mais de 15 anos para angariar provas que incriminem Lincoln Corvo Vermelho, um líder
tribal às vésperas de inaugurar um cassino na reserva e movimentar milhões em
dinheiro sujo. O passado de Corvo Vermelho é uma longa estrada de contravenções
e assassinatos que tinham como objetivo manter o grande plano que ele havia pensado para a reserva. Ele se inicia com o duplo assassinato de agentes federais ocorrido
nos anos 70, e tem entre os acusados Gina Cavalo Ruim, mãe de Dash. O desfile
de personagens e seus passados entrelaçados vão construir uma tapeçaria marcada
por uma violência ainda maior: a colonização e extermínio dos povos indígenas pelos invasores europeus.
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Lincoln Corvo Vermelho e seu totem animal. |
A desolação e a
pobreza dão o tom das ruas da Rosa da Pradaria. Como bem coloca um dos
personagens, a situação das reservas do centro dos Estados Unidos só pode ser
entendida como um país de terceiro mundo no coração dos EUA. Confinados em suas
terras, os cidadãos da reserva se afogam no álcool, o que faz das terras
indígenas os lugares de maior índice de alcoolismo dos EUA. Os jovens, sem
perspectivas ou opções, se dividem entre viciados e traficantes movimentando
uma indústria de metanfetamina e heroína que prospera graças aos policiais
tribais, muitos corrompidos pelas promessas de dinheiro fácil que os cassinos
representam para as reservas. Deste mundo, poucos conseguem escapar. Dash é um
deles, mas que agora retorna com uma missão que lhe foi empurrada garganta abaixo pelo agente especial Nitz, um federal veterano obcecado em vingar seus amigos e
levar Corvo Vermelho para a cadeia.
Jason Aaron
escreve sua saga de crime e sacrifício como um cavalo louco. Superficialmente,
Escalpo pode ser descrito como uma mistura de Família Soprano com romances policiais de agentes infiltrados. Porém, a impressionante pesquisa de sua
ambientação, a maestria com que tece a trama dos personagens e o ritmo
estonteante da narrativa - somada à belíssima arte do sérvio R. M. Guéra –
fazem de Escalpo uma espécie de Chemako on drugs. O percurso das personagens é
sempre impressionante. Mas uma coisa dá o tom da narrativa: sua complexa e sofrida relação com o passado. O retorno
de Dash à Rosa da Pradaria é apenas uma volta no eterno retorno que a história
exerce na narrativa.
Dar más notícias aos filhos de uma prostituta: um dia de trabalho para Dash Cavalo Ruim |
A narrativa
quebrada de Aaron remete diretamente a outros autores semelhantes da editora,
como o Brian Azzarello ou David Lapham. Entretanto, o quebra cabeça que se
monta é sempre duplo: uma situação atual e sua contraparte no passado. Em seus
arcos de história iniciais, o olhar do leitor é sempre entrecortado, invadido
por uma narrativa que se quer a principal, mas que se passa em um outro tempo.
E neste momento a pena de Guéra brilha. Sua caracterização de personagens, com
muita influência da escola italiana e francesa de faroeste, é tão precisa que
garante que você identifique um personagem 30, 40 anos no passado. Esse passado
é tão vivo que deixa o presente para trás. Transforma o presente em frágil
memória. Impossível não
lembrar do trabalho do pensador romeno Mircéia Eliade. Para Eliade, nas
culturas míticas, há um tempo marcado pelo retorno ritual do passado. As datas
comemorativas, como São João por exemplo, são um momento em que se sai do tempo
mundano e individual e se retorna a um passado coletivo e mítico. É o eterno
retorno de Eliade. Este retorno marca o ciclo temporal e a passagem do tempo de
forma compartilhada. O ser humano atual não partilha deste eterno retorno da
mesma maneira que os povos antigos. O homem moderno está preso ao tempo mundano
e sua infinita evolução onde desenrola os dias em direção a um final para o
qual não está preparado. O tempo sagrado do eterno retorno, heterogêneo e
ditado pelo mito vai ser deixado de lado por um tempo profano, homogêneo e ilusoriamente
livre. O homem moderno vai enxergar no tempo profano a possibilidade de
escrever sua própria história, sem perceber que de fato é uma peça minúscula
dentro de uma história muito maior dominada por uma minoria que impõe sua
narrativa ao cotidiano deste homem moderno.
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Flashback com Gina Cavalo Ruim e Lincoln Corvo Vermelho. |
Esse conflito
entre uma forma sagrada e coletiva de agir e uma liberdade profana e ilusória é
uma boa metáfora para o grande pano de fundo da Rosa da Pradaria e seus
habitantes. Todos os personagens de Escalpo se encontram emaranhados nas cordas
que lhes dão a ilusão de movimento. Corvo Vermelho, um personagem de carisma
ímpar, esticou as cordas da tradição para que estas se dobrassem à sua vontade.
Dash Cavalo Ruim foge de suas cordas apenas para se ver emaranhado por outras
ainda mais traiçoeiras. Outros personagens, como Gina Cavalo Ruim e o índio
branco Diesel, lutam para que suas cordas não sejam trocadas pelos fios
profanos do tempo histórico. Enquanto que personagens como o testa-de-ferro
Shunka e Carol Corvo Vermelho sabem o que é preciso para sobreviver em um mundo
sem redenção. Esse balé estressante de
esforços quase sempre culmina na mais palpável frustração. O passado dos
personagens de Escalpo não permite que eles se arrastem para muito longe de
Rosa da Pradaria. Nessa realidade pós-faroeste, tempo profano e sagrado
sucumbem e se misturam na esmagadora gravidade que a história vai instaurar nesse
povo. Em Escalpo não há heróis, nem vilões, só há vermes se contorcendo para se
verem livres de seu passado, e falhando miseravelmente.
1 comentários
Bem interessante a sua exposição sobre o tema em Scalped. O que você diz sobre "inevitabilidade de um passado que se impõe ao presente" é algo um tanto quanto recorrente na escrita do Jason Aaron, principalmente nos quadrinhos autorais. Este ano ele começou duas séries que amplificam isso, Southern Bastards (pela Image Comics) e Men of Wrath (Marvel/Icon), e em ambas os personagens, aparentemente principais, estão envoltos em situações que se inciaram antes deles (SB sobre o filho de um xerife que volta a cidade natal décadas depois; MoW sobre um assassino que descende de uma família de criminosos).
Creio que muito disso venha do fato do autor ter nascido no Alabama, sendo que é uma tradição sulista o terma abordado. Aaron sofre muito influencia de Faulkner e Cormac McCarthy, dois dos autores que ele assumidamente admira. Do primeiro é interessante notar o estilo narrativo, dividido entre personagens, para preencher a mesma história (vide, principalmente Cassino Boogie, o segundo arco de Scalped), já de McCarthy a violência afluente que não podemos deter, vinda, principalmente, do passado e nossas escolhas.
Espero que você tenha a oportunidade der ler as novas obras do autor pois ambas são excelentes.
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